A minha filha perguntou-me o que era para a vida inteira e eu disse-lhe que era para sempre.
Naturalmente, menti, mas também os conceitos de infinito são diferentes: é que ela perguntou depois o que era para sempre e eu não podia falar-lhe em universos paralelos, em conjunções e disjunções de espaço e tempo, nem sequer em morte.
A vida inteira é até morrer, mas eu sabia ser inevitável a questão seguinte: o que é morrer?
Por isso respondi que para sempre era assim largo, abri muito os braços, distraí-a com o jogo que ficara a meio.
(No fim do jogo todo, disse-me que amanhã queria estar comigo para a vida inteira)
Ana Luísa Amaral (lido pela autora no programa Câmara Clara aqui)
ar iluminado na frente dos teus lábios é contigo que falo, na proximidade das sedas -
estendo os olhos, alienado, nas linhas vermelhas e embalo os braços por uma nave sem tempo querendo o pormenor branco, o desvendar de segredos, tão extremos, nas pontas agudas da pele, nos cabelos -
procuro a medida exacta, a forma dos dedos nos outros dedos que tremem, um terramoto de consequências inusuais mas de supremos habitáveis porque elevados ao vestir do fogo, ao segurar das cinzas e o recomeçar, um eterno retorno à origem do teu rosto, um destino -
é contigo que falo ar sapiente de cores no limiar de um interior fulminante na proximidade de terras sem nome; o descobrimento do mercúrio a tabela do sonho, o novo elemento -
é contigo que falo ar medonho porque no curto espaço seguras o tempo, um íman de cada lado e misturas o intervalo dos cimentos; afastas a resistente sobrevivência de sons, ecos distantes, tambores, címbalos e colocas terras, montes, cidades, pequenas aldeias alcatrões longos, planícies de longínquas azinheiras, no prolongamento de um Cronos sem paciência, no adiamento da soldadura das asas, fechadas na almofada dos ombros, na epopeia dos lábios contínuas prímulas e a repetição das noites -
haverá o dia do nascimento quando dédalos verdes fixarem as telas e as aguarelas inconstantes, qual Penélope de longos cabelos na urdidura de um tapete -
haverá destinos mais maduros nas vinhas de todos os vinhos e os bagos rolando sobre as ruas e os labirintos porque são imensamente fortes, são mais fundos, os lugares habitados das raízes que engolem a terra e aproximam horizontes -
María Valencia Insignia. O corpo condecorado de sal. Não demorou muito. Não demora muito, normalmente. As certezas têm mil patas e asas. As certezas são insectos a sul de todas as eventualidades possíveis. As certezas matam um homem em menos de um hino, que é a partícula de tempo imediatamente inferior ao instante abissal. E a evidência viaja à velocidade da luz. E o sal deposita-se no fundo, tão insolúvel e estéril como o enigma do olhar e o rosto aflito, a pose pretensamente indelével, pouca ou nenhuma maquilhagem visível, não fossem os demónios às avessas e às cegas conferir ao número um tom difícil, negro e difícil, com as secreções todas em teu poder, María, com a facilidade com que encarnaste o complemento directo numa frase onde o sujeito era a vítima. E eu, casualmente, o vilão. Amar é defender a tese da nudez antes mesmo de esta ser vista. Numa rua deserta, alguém apregoa o impossível. É cálculo divinatório cheio de probabilidades de falhar, mas sem nenhuma inveja ou medo do dia seguinte. É humano, como as fezes. Mas é também eco da distância e a soma mais bela que se conhece de insucessos astrofísicos. Por isso eu não respeitei o teu credo, María. E depois de termos arrumado os teus estorvos e os meus, fomos brincar para onde a culpa beija a mais anaeróbia mentira. Nus, necessariamente nus, em Marienbad.
Ao decalcar o céu, reconheci-me estrela de ósseas pontas, despojada de luz O meu corpo recusava a força de ser fósforo, caía sem lume na vegetação e só roçava o chão das eiras, sabendo-o fruste
Caminhei pela manhã, a cada dia entumecendo a paz em redor do túmulo (trazia-o junto ao peito, o pequeno ossário de um pássaro no granito)
Ao passar pelos acampamentos invejava às tendas a prontidão para a elipse, sem violência resumia os movimentos do corpo
Dormi em albergues e estábulos onde um cavalo ou uma peregrina muito velha tinham morrido
Aprendi a descansar no perecível feno, junto ao íntimo esterco dos outros Não sustive a respiração
a intensidade nunca saiu do seu rosto; não indigno, não perdido, não indefinido, um pouco gasto -
ontem como hoje sempre a viu e sempre a via como a única mulher nas areias longas, apertando os sentimentos como água salgada, soltando o branco e a chegada, à praia -
sempre sentiu os sons da janela, a chuva e as dilatações do vidro; os seus ruídos, e os ruídos longínquos dentro de si; como ela o conhecia… nas mãos de asa… sabendo as linhas… as curvas… os lábios entreabertos no lado interior da carícia -
sempre sorriu e sempre sorria, interiormente, na permanência incontida; aquela dança lenta de baixar os olhos, erguer os ombros, abrir os dedos, encurtar de gestos a planície iluminada, pela lua, em mil cinzentos -
sabiam-se assim, no rodear do tempo,de areia muito fina, única, macia, que não é relativa nem complicada pela física; e corriam pelas noites magníficas na identidade dos espíritos, vestidos pela luz sibilante dos diferentes, em vício e adrenalina:
na dependência de escutarem o poema de Shakespeare sempre, qualquer que fosse a distância,
Ay luz, ay luz do céu antigo, não me trazeis novas do meu amigo que em vós morreu tão cedo? Novas nenhumas, minha amiga, que a luz desta cantiga é agora como o vosso amigo Ay tempo, ay tempo tão parado, que parastes ao ver o meu amigo, que novas lhe haveis dado?
Novas nenhumas, minha amiga, que o tempo da cantiga é agora como o vosso amigo
Ay mar, ay mar tão escuro e fundo, que convosco ficou o meu amigo, não me dais curtas novas desse mundo?
Novas nenhumas, nenhumas, minha amiga, que a luz, o tempo e o mar desta cantiga são agora como o vosso amigo:
não têm som, nem cor, nem hora, só paisagem de fora como em quadro maior é a moldura Ay, canto, ay canto tão parado, mesmo que o tempo e o mar não iluminem nada, deixai-me pelo menos ficar do meu amigo algo lembrado
Só se for, minha amiga, um instante de luz: que se abrande a cantiga fiquem lentas as horas e os sons
E como o tempo e a luz lhe foram forma, dele fique o cuidado Ay canto em canto desolado, é fraco mantimento esse cuidado, pois é sem carne ou pele, e eu queria o meu amigo devolvido
Não me chega este canto, cantando o seu cuidado
Bastava, em vez do canto, o meu amigo, ele: gentil e imperfeito
E a sua pele –
Ana Luísa Amaral
P.S. Este poema é dedicado ao seu grande e saudoso amigo Paulo Eduardo Carvalho, ver mais aqui
O maestro sacode a batuta, A lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado O deslizar dum cão verde, e do outro lado Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância De repente entre mim e o maestro, muro branco, Vai e vem a bola, ora um cão verde, Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música, Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo... (Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela Atravessa o teatro todo que está aos meus pés A brincar com um jockey amarelo e um cão verde E um cavalo azul que aparece por cima do muro Do meu quintal... E a música atira com bolas À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos De batuta e rotações confusas de cães verdes E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda, Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa Com orquestras a tocar música, Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba, A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
nunca me preocupei em reproduzir exactamente aquilo que vejo e observo a cor serve para me exprimir théo: amarelo terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho arles sulfurosas cores cintilando sob o mistério das estrelas na profunda noite afundadas onde me alimento de café absinto tabaco visões e um pedaço de pão théo que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra os pomares estão em flor o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras arde continuou a arder quando tentei matar aquele que viu a minha paleta tornar-se límpida mas acabei por desferir um golpe a mim mesmo théo cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo em auvers voltei a cara para o sol apontando o revólver ao peito senti o corpo como um torrão de lama em fogo regressar ao início num movimento de incendiado girassol
Al Berto in A Secreta Vida das Imagens (lido aqui)
E o mistério? Ainda transfiguramos o mistério no rastro inacessível da verdade, ainda trocamos o crepúsculo por outra linha fugaz no horizonte ígneo? A sombra fugitiva que habita o nosso corpo, a alma, a insegura alma de existirmos?
Nascem e morrem, as cidades, sucedem-se os dias, as estações, os anos, esfuma-se o tempo, foge entre os dedos a vida que nos religa à fuga uma outra vez ainda, a solidão ameaça, procura-nos a morte com o medo de querermos instintivamente resistir, a verdade efémera, o amor.
Outro cigarro?
Outro mistério, ainda, na auréola de fumo sobre as cabeças - e o mistério, a que devastação conclama?
O destino das coisas, o mundo de instantes à deriva?
Eu não sou um nem outro: Sou qualquer coisa de intermédio M. de Sá-Carneiro
Se eu fosse o outro, o do chapéu macio e do bigode eternizado em cúbico arremedo, angústia dividida em tantas partes e óculos redondos, podia-te contar eu guardador e sonhos
Se eu fosse o outro, o delicado e bêbedo génio de nós todos, o que amou estranho e sabia dizer coisas enormes numa pequena língua e fraco império, se eu fosse aquele inteiro ditado de exageros e exclusões, falava-te de tudo em ingleses versos
E mesmo se não foi ele quem disse ( e podia até ser, que eram amigos e o século a nascer arrepiava como já não o fim) há razão nessa história do pilar e do tédio a escorrer de um para o outro