JOÃO FAZENDA (ilustração)
Ana Luísa Amaral
Poeta, professora universitária, 1956Obras seleccionadas:
O Cavaleiro da Dinamarca Sophia de Mello Breyner
Toda a poesia de Emily Dickinson
O Jogador Dostoievski
As peças (quase todas) e os sonetos de William Shakespeare
A canção Veinte años Patxi Andión
A poesia toda de William Blake
A canção A noite passada Sérgio Godinho
O acto O coro dos escravos hebreus, Ópera Nabucco, de Verdi
A tapeçaria A Dama e o Unicórnio
Tempos ModernosCharlie Chaplin
O que é que pode lançar mundos no mundo? A arte, o pensamento, a palavra — e talvez, no exercício dela e na paixão por ela, a palavra da poesia, porque é a menos sujeita às leis do mercado, a mais livre. A palavra faz sentir e faz pensar. Por esta razão, por exemplo, para o estado de ditadura social em que nos movemos, a incultura e a falta de pensamento são úteis: porque uma pessoa que pensa é uma pessoa que questiona, que exige, que resiste.
Se pensarmos que a palavra “cultura” vem de “cultivar” e que se refere inicialmente ao amanho da terra, então ela tem que ver com preparação, com cuidado, com aprimoramento de capacidades que estão latentes em todos e todas nós e que vão sendo desenvolvidas através da comunicação. Ter cultura geral incluiria conhecer a Bíblia, claro, tanto quanto a Pietá, incluiria saber do folclore de um povo, tanto quanto apreciar Bach, incluiria entender as razões para a Revolução Francesa, tanto quanto perceber a guerra económica e social movida pelo que foi a chamada “bolha de Wall Street”...
As pessoas que passaram pela minha vida e que foram fundamentais para a minha formação foram várias. Penso na minha tia, Manuela Amaral, que eu amava e admirava; em duas professoras que tive no colégio onde andei, Dora de Vilhena, que lia poemas em voz alta na aula, e Isabel Lago. Com a Isabel Lago li O Cavaleiro da Dinamarca, e essa leitura foi fundamental: senti a beleza da palavra, quase no seu estado puro. Muito mais tarde, já na faculdade, uma professora de Cultura Norte-Americana, Cristina Ribeiro, abriu-me o mundo para “os outros” Estados Unidos, na sua dimensão de discriminação, de violência, de racismo. Deu-me autores como Langston Hughes, Aimé Cesaire (ainda me lembro de cor de partes de Cahiers d’un retour au pays natal). Mais tarde, Maria Irene Ramalho, que me orientou o doutoramento e me ensinou a verticalidade que a literatura traz. Depois, os meus alunos todos, ao longo de tantos anos de ensino; com eles me formei também. De alguns, destaco Marinela Freitas, minha colega agora. E ainda o meu pai, que me ensinou uma ética de vida. E a minha filha, que me ensinou e continua a ensinar a crescer e a ser melhor pessoa. Com todos eles e todas elas, aprendi a ler o mundo — e a ler mundos.
Eu acho que devia ser ensinado o que faz parte das artes, da ciência, da ética, do conhecimento, do pensamento humanos. Acharia muito bem estudar os Beatles, desde que se falasse dos anos 1960 e do que eles significaram em termos de movimentos sociais, e do feminismo, e das minorias; tal como, no caso do jazz, de como ele nasce, e a propósito disso, da questão da chamada “Renascença de Harlem” nos Estados Unidos e, ligada a ela, da exploração da identidade e, com ela relacionada, do racismo e por aí fora...
“Grandes descobertas/acontecimentos”: é de ordem enciclopédica. Mas falar na relatividade implicaria mostrar o seu impacto a diversos níveis. O que quero dizer é que uma disciplina de Cultura Geral, a existir, deveria ser transdisciplinar e comparatista, relacionando tudo com tudo. Como tudo está, de facto, relacionado com tudo. Até mesmo mostrar que, em 1940, um escritor como Hemingway oferece a um romance seu um título como Por quem os Sinos Dobram porque existiu três séculos antes dele um poeta chamado John Donne que escreveu um poema que dizia: “Não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.”
Platão expressou-se de uma forma que é comum às Ciências e às Humanidades. Ou seja, expressou-se em palavras. Mais facilmente uma pessoa das Ciências consegue ler o que Platão escreveu do que uma pessoa de Letras consegue perceber Física Quântica. Porque Platão usa uma linguagem que, embora servindo-se de conceitos filosóficos, é mais comum a todos nós. E essa linguagem organiza o pensamento, ordena-o, cria questionamentos sobre o nosso lugar como humanos no mundo, interroga-nos e interroga o mundo, na própria constituição de conceitos.
Excerto de Público 11 Janeiro 2015: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-que-e-cultura-geral-1681554