sexta-feira, 30 de abril de 2010

o prédio no meio dos outros prédios


Cidade de S.Paulo no Brasil



-----------------------"o eu é um movimento na multidão"
-----------------------Henri Michaux


o prédio no meio dos outros prédios
tem paredes tem alicerces
mas não tem braços.

por vezes assim a noite
de um lado e de outro lado
os ombros férreos apertados.

o prédio no meio dos outros prédios
tem janelas e uma porta clara iluminada
nas costas o tijolo cego
de costas um outro prédio.

por vezes assim são os lugares do medo
cintilantes na claridade frontal
sombras de cera e chama ténue
no interior de um quarto vasto.

o prédio no meio dos outros prédios
quando chove conduz as águas nas telhas
para o espaço contínuo de um pequeno rio:
é esse o objectivo
que as águas se juntem se tornem maciças
no som no ritmo na procura dos caminhos.

por vezes assim é o pensamento
que acrescenta esta e aquela sequência
e a consequência de um sentido uma linha
feita de asfalto granito ou terra batida.

há uma mão gigante atrás de cada indivíduo
recolhendo a linha como um fio
enrola enrola agarra o novelo
como um muro sem porta
aponta o caminho em frente sem reverso:
- não há regresso continua!

o prédio no meio de outros prédios
pode ganhar braços comos as árvores
arrancar raízes no orgulho de ter pernas
abrir janelas e andar pelo meio das ruas
dos carros autocarros e bicicletas
até encontrar um parque, muitas árvores
desfolhar cortinas –

por vezes assim são os quadros os poemas a escrita
a revolta de um grito -

Do amor ufano e descortês




Não, nem mesmo inscrito em aulas de cavalaria
lendária, cursos de idealização à distância,
seminários sobre as últimas consequências
de estar vivo eu pude permanecer.

Os livros diziam que os teus olhos criavam um campo magnético
sinistro, e que depois matavam o macho que havia nos meus.

Todas as cartas de amor se revelaram de leitura difícil,
aplicada a prisão preventiva em todos os meus interesses.

Contei uma a uma as tardes de hipocrisia geral,
tardes de folclore, sorriso inacabado e detergente.
Meu deus: o que eu tentava permanecer
sem permanecer!

Agora chega.
As minhas mãos têm GPS integrado
mas tão longe das tuas estão
que não há satélite que as enuncie
na rua onde vives, na casa onde moras
no quarto onde dormes, talvez vestida de drama
de amor ufano e descortês.

Nem a espada, nem a bússola assintomática que comprei
nem o mapa do tesouro do teu corpo pixelizado no meu
no momento em que liguei a câmara e todas as luzes doeram
fizeram com que eu permanecesse
no ecrã e na tua relativa ucronia.

Quixote tinha razão: havia com certeza um vírus qualquer
na forma como os moinhos de vento agitavam as suas velas
sem se verem.
E claro: um rocinante de 1987, cheio de ferrugem,
dejectos de memória imprópria, cinzas e infiltrações
de todo o tipo, nunca fora muito favorável
às prosaicas esperanças das raparigas.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Vapor de água

O amor é óbvio como a dor
Lavra rios na pele
Desfaz o meu olhar em luz

Luz e água
Um mar
Grande, gigante, sem nome

O infinito não tem cor
A morte é óbvia como a dor
Grande, gigante, sem nome

A tarde triste morre em noite
As casas estão mudas
O meu amor é óbvio como a dor

Preso, atado e mudo
Fecha os olhos
Cheios de luz e água

Grande, gigante, sem nome
No deserto do nada
As casas cantam alto

Hoje o meu amor morreu —

Poética*





Faz um mundo.
Desfaz um mundo.
Agora faz Undo.





* Esta fórmula também serve o interesse dos leitores.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

a hemoglobina que fervia




começou de forma suave.
abriu-se de uma porta leve na adolescência
idade em que os medos se admiram sem ciência
de uma alergia persistente uma febre de fenos
na intensa cor de um nascimento.

usava botas altas e mascava chiclete.
ele jogava ping pong. perdeu um ponto.
agarrou a bola fitando o rosto.
olhou-a de cabelos dentro de um lenço.
convidou-a para um bolo.
juntou no inconsciente o melhor dos seus momentos
as graças imprecisas e diferentes de um non sense.

a continuidade foi o estranho estado
em perfeita dessintonia com as tempestades
que lançava excessos de águas. os pés molhados. navegava.

não é normal abraçar candeeiros sorrir a todos os estrangeiros.
não é normal a ausência de malícia no sonho de outras raparigas.
partilhava relvas e abria asas. O equilíbrio estável de mãos e braços
em cima de um muro que não tinha limos seguro liso.

começou o lugar primeiro e a reprimenda
de todos os outros que o julgavam louco. A luz.
a luz emanava sem corrente. Um ar de primavera
mesmo a escorregar no gelo a partir o pulso no tombo
a tinturar o joelho. Tudo em movimento. Luminoso.
os lábios ora totalmente calados nos espaços
ora em velocidade na presença da libelinha.

manhã tarde fim de tarde e um crepúsculo no mar.
de noite os olhos sempre abertos redondos como os mochos
vermelhos como os peixes que sabiam de cor toda a água
e rodavam rodavam à volta por cima das gavetas da cómoda
e sonhavam sonhavam os corais a leveza das algas
flutuantes e mergulhadas.

os olhos abertos abertos nas frases dos diários
e a distância de uma noite longa que separava o dia
e a surpresa de um postal de uma pequena flor silvestre
mais de branco e verde ou mais colorida e larga
como as pétalas de amores perfeitos e lírios e lilases.
tantas tantas que antes de mudarem de mãos parecia que falavam
orgulhosas nos seus vestidos breves de máxima importância.

algodão e algodões. doces. fofos. de forma suave.
tão suaves. fofos. doces de uma nova culinária.

mais tarde tentou justificar as continuidades do estranho estado
de um outro tamanho de um outro modo.
sem o conseguir utilizou muita e muita tinta
coloriu todos os sonhos de forma analítica
registou nos cadernos princípios e complexas
numerologias cronologias e terminologias.
tentou a tese e a forma científica. Deu-lhe um nome:
a hemoglobina que fervia

não consta que tenha havido conclusão
nem ao menos a sequência de um índice
uma argola fechada nas margens
uma capa mais dura a transparência de um plástico

mas é certo que lê e relê e procura sempre
a explicação alquímica do estranho estado -

A tradição de estar triste




Da perspectiva da morte
a vida é como se nunca
tivesse havido.
É isto que nos ensinam na escola
dos cépticos:
a morte dispensa planos
e apresentações.

A morte tem os horários parecidos
com os nossos e os corolários
mergulhados na desfeita.
A morte é arte de crianças hipersones
uma greve de fantasmas vestidos a preceito
para nenhum dia seguinte nem depois.

A vida fabrica apenas paliativos genéricos
e soluções onde a nitidez é corrompida
pelo hálito quente da especulação.
Também simpósios onde a tarde acentua
a tradição de estar triste
sem pára-quedas nem efeitos laterais
manhãs previamente mordidas
mesmo quando as frutas são as mesmas

o sabor um dia pode revoltar-se
a morte deixar de ser fiel
tornar-se tudo de repente
num lugar barato e habitável.

Ensaio sobre a cara

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Conseguiram-lhe anular a expressão, vidrar o pulso: manter o cabelo na cor original - injectar na sua cara, características de todos os homens vivos, a expressão era viva, mas anulada, a sua cara era multiforme: a de todas as pessoas, mas ninguém a conseguiria descrever. Quem a olhasse de frente morria, e aí, no centro experimental de Dallas, todos os matemáticos, químicos e médicos conseguiram recriar o mito de Medusa, e torná-lo real e prático, uma mulher pronta a entrar em acções de resgate. Alterada geneticamente para que a sua cara matasse, se calhar foi sempre a cara que matou - descrevia Kluge , em "Ensaios sobre a Cara" baseado em estudos anteriores e multidisciplinares que tinham sido publicados na Universidade de Hamburgo no início dos anos oitenta: "História da Cara" publicação em três volumes de difusão rara, recentemente digitalizada embora em língua alemã na Biblioteca Digital da Universidade. Só alguns poucos estudantes de sociologia ou antropologia alemães a citavam em frases curtas nas suas teses de mestrado.
E a mulher que chamaram "Maria" para dificultar a interpretação, em guerra, de um mito pagão, foi conduzida de helicóptero até outra base e depois acompanhou os exércitos na primeira invasão do Afeganistão. Ia ser usada apenas em casos de buscas a domicílios, emboscadas de assalto e de salvamento de reféns, em espaços fechados. Entrava primeiro ela; depois as tropas só entravam quando todos os que a tivessem olhado na cara, já estivessem mortos. Uma mulher penitenciária, alterada geneticamente para que o seu olhar e cara toda matasse. Uma Medusa de cara nuclear, mas de viso irreconhecível. As operações mantiveram-se secretas apesar de algumas investigações de jornalistas, logo anuladas. Era legal, a cara da Medusa matar, era legal as armas matarem, era legal a própria guerra depois das legitimações na cimeira das Lajes. Era sobretudo legal que a cara matasse, porque a cara sempre matou: (muitas vezes por causa dela, muitas vezes ela própria)

Maria sonhou que caminhava para o mar, por um caminho estreito, e várias raparigas de cabelo curto caminhavam também para o mar numa espécie de romaria radioactiva porque o céu estava roxo e todas cantavam e dirigiam-se para o mar que no sonho estava branco, espesso e gorduroso, as ondas criavam-se pequenas porque todo o mar era de um branco gorduroso, como o leite condensado, e as raparigas de cabelo curto aproximaram-se para encheram de mar os ouvidos e com os pés no líquido, enchiam de mar o sexo e lavavam os seios e do mesmo líquido, faziam gel que punham nos cabelos e na cara até ficarem sem cara: Esse era o sonho - Um pescador tinha-lhes avisado que nesse ano as baleias se tinham vindo de mais, de uma forma nunca vista, e as baleias macho produziam esperma em quantidade e havia nesse ano um cio sub-aquático como nunca tinha havido e o esperma em breve encheu todo o mar e tornou-o branco e espesso e gorduroso e quente, e as raparigas vinham para a praia para meterem mar no sexo e nos ouvidos e para perderem a cara e a identidade: a sua - Para ganharem todas as outras - Todas as outras caras dizia o pescador. Todas tinham uma sugestão doce na boca e sabiam que era também esperma de baleia primitivas, mas ainda vivo e quente, aquilo que corria dentro dos cactos alucinatórios do norte do México. O transe e a alucinação eram naturais e marinhos.

Maria foi acordada para uma missão, no norte do país, era preciso descobrir um dos maiores plantadores de papoilas do Afeganistão. Um dos maiores transformadores de flores em heroína. As tropas precisavam de alucinação e Maria devia estar com o homem, para que este a olhasse na cara, depois de revelar o local.

Aconteceu depois a Maria, ser violada por vários soldados americanos, que usavam capacetes de espelho que cobriam toda a cara, violadores Perseu, Medusa via vários espelhos - a penetração anal, no sexo, na boca, o sémen a escorrer pelas pernas reflectido num dos capacetes de espelho, e Medusa a ver-se a si própria - cara que mata, e por isso morre. E aqui o autor termina a ficção e relembra que ela, a ficção é a Criadora da realidade. Relembra uma passagem de "Pequenos animais sem expressão" de David Foster Wallace em que um apresentador de um concurso televisivo norte americano, vai ao psicanalista, e lhe conta o sonho que teve na noite anterior - Passava em frente a um restaurante pouco aconselhado num beco escuro - Espreitou por uma pequena janela que dava para a cozinha, e viu um cozinheiro cheio de tédio, e numa sertã que estava ao lume viu a sua própria cara: A ser frita. O cozinheiro esperava.
Há outros casos semelhantes do tratamento da cara na Literatura Ocidental, sobretudo da cara tratada como factor-devir: de Fuga: A cara como perda dela própria - Algo que foge, algo que está em fuga. É o caso de um conto de Papini em que uma das personagens secundárias que vêm falar com Gog é descrito com uma cara triangular.
"A cara em fogo" é tratada por vários autores - O escritor (todos os homens - produtores de comunicação - normalmente com problemas nela própria) precisa de perder a identidade como refere Jean Deleuze - Perder a cara - A identificação - Para ganhar todas as outras. A partir da Baixa Idade Média que na iconografia cristã Deus deixa de ser representado como um indíviduo, uma pessoa (com rasgos de velho, cabelo branco, aspecto de sábio) e a doutrina cristã assume-o como algo incorpóreo. Ao contrário da cara de Cristo, que é procurada ao longo da História por sudários e cuja evolução na iconografia é a própria evolução do Cristianismo enquanto doutrina, que se reforma. O que não tem cara assusta; não existe - Se Deus não a possuí na iconografia é mitificado e visto como simples energia ou simplesmente - tudo quanto fluí.
A cara como espelho da alma é adulterada, entra em rede, é tratada em photoshop e é causa de morte.
Outro caso interessante é o referido no conto - "O crocodilo - relato de duas faces como a moeda do Vaticano" da obra "O Espelho do Túnel" que escrevi no ano passado. A História é verídica e retrata a vida de um homem toxicodependente que numa prisão mexicana, é mandado mutilar por um traficante de droga do interior da penitenciária, porque este não lhe paga. A mutilação a que recorre este traficante, depois de vários avisos é sempre a mesma, ordenar que os seus homens deitem água a ferver por cima do que incumpre o pagamento: Água a ferver no corpo nu, que origina queimaduras de elevado grau em todo o corpo, e a consequente desfiguração - O homem tratado no conto "personagem principal" - Fica com a alcunha na penitenciária de "crocodilo" por ter a pele às manchas. O homem sai da prisão e procura emprego e não o consegue. É encontrado poucos meses depois o seu corpo morto no rio, porque contínua a consumir cocaína e é morto numa tentativa de assalto.


Poderia ter sido tratada a história da cara, como a história do degelo, uma cara que derrete e se transforma em mar e faz aumentar o nível das águas, que as cidades marítimas temem: Uma cara que cobre toda a Holanda de água quente, ou uma cara que entra pela Basílica de São Marcos em Veneza e depois cobre Veneza toda, e os funcionários camarários apressam-se a retirar a cara incómoda do degelo da sua praça, para que os turistas venham - Tudo é cara e boca e olhos e identificação. Outra possível História da Cara seria ela ser um sol líquido que pinga: E por entre a cara líquida os homens passam nas suas vidas, ou para sul ou para norte, entre o sol líquido que cai entre eles. O cavalo marinho não se pensa a si próprio: a nuvem humaniza. O estado de fusão - de reconhecimento é o único possível - O Amor é perder a cara, e ter a cara do outro, porque se a sente. É comum depois do sexo, os amantes sentirem-se com a cara do outro. E no evoluir da relação são cada vez mais as expressões do outro que o amante adquire. O mesmo se passa com os afectos: A cara como abstracção - Algo a ser transformado, a estar condenado (beneficamente para a fuga - fuga de si próprio). A anulação da interpretação e a vida exclusivamente da sensação. A cara é sensação e recriação / revitalização / Potência - Mas isto apenas quando há relações de afecto. Caso contrário a cara torna-se inexpressiva, sem ânimo (alma) sem cor. E qualquer relação (anula) a identidade para Criar uma nova: Como aparece numa das cenas do filme "Nostalgia" de Tarkovsky, escrito na parede: 1+1 = 1.
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No Afeganistão cortam as orelhas às pessoas que ouvem música estrangeira, pode um afegão ouvir toda a discografia do Chico Buarque, de Sonic Youth e Gardel, depois cortam-lhe as orelhas e desenrolam os fios das cassetes e pegam fogo às cassetes e aos fios das cassetes:
E o homem contínua com memória mas sem conseguir ouvir e ouve para dentro de si a música que é tão internacional como a saudade ou as formigas. E ouve dentro de si as formigas a caminharem enquanto os exércitos americanos invadem o seu país: Os soldados passam de jipe, com a música muito alta em colunas enormes na parte de trás dos jipes, rock americano e os homens que têm orelhas ficam com ódio aos Estados Unidos. Os homens que não têm orelhas não ficam com ódio a nada.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Hoje ponho a leitura em dia, que bem que sabe.

Também queria agradecer o tão bem que soube o jantar!



13

um prato

um copo

partilhado



tão bem

passado, surpresa

e sentir



que bem calhou

vinil, guitarra

olhar-vos nos olhos

poemas

nos vossos sorrisos

sentir também o meu



que bem que soube

um doce sal

e as gargalhadas



que se for banal dizer

sermos diferentes poemas

um colorir sentidos



saudades de futuro

que sei que tenho!

El más pequeno


Cartier Bresson


Es el más pequeño de todos, el último.
Pero no le digáis nada; dejadle que juegue.
Es más chico que los demás, y es un niño callado.
Al balón apenas si puede darle con su bota pequeña.
Juega un rato y luego pronto lo olvidan.
Todos pasan gritando, sofocados, enormes,
y casi nunca le ven. Él golpea una vez,
y después de mucho rato otra vez,
y los otros se afanan, brincan, lucen, vocean.
La masa inmensa de los muchachos, agolpada, rojiza.
Y pálidamente el niño chico los mira
y mete diminuto su pie pequeño,
y al balón no lo toca.
Y se retira. Y los ve. Son jadeantes,
son desprendidos quizá de arriba, de una montaña,
son quizá un montón de roquedos que llegó ruidosísimo
de allá, de la cumbre.
Y desde el quieto valle, desde el margen del río
el niño chico no los contempla.
Ve la montaña lejana. Los picachos, el cántico de los vientos.
Y cierra los ojos, y oye
el enorme resonar de sus propios pasos gigantes por las rocas bravías.

Vicente Alexandre

segunda-feira, 26 de abril de 2010

para que os peixes saibam


Amadeu Sousa Cardoso "Entrada"


nunca por nunca de qualquer modo
quis pálpebras tristes janelas fechadas
sem asas sem aves sem árvores.
corro.corro. junto ao jardim da buganvília
à fonte da boca d'água e cara de teatro.
desço.desço. a rua inclinada
até à margem só de madrugada
de orvalho sem vivalma. e grito. grito.
para que todos os peixes saibam
que nunca. nunca por nunca
quis teus olhos tristes
os braços como espadas
os ombros altos de muralhas
e os lábios a sete chaves
sem o sopro das palavras.

Dying Mannequin




Tens quilómetros de vida debaixo do vestido
restos de documentos históricos célebres
praças chumbadas a geometria descritiva
e ainda assim nódoas negras belíssimas
lesões que dão flor na primeira primavera
de cada mês
rotundas iluminadas por minúsculas intempéries
a circulação condicionada nas artérias
de maior afluência e imperícia.

Tens, em certa medida, um apartamento
com vistas para a intermitência de riscos
e promessas de enciclopédia na pele
onde a vastidão e as areias convencem
e os olhos repetem estranhas litografias:
uma caixinha consagrada à convergência
de um homem melhor no seu mistério
a noite, como uma jóia irrequieta qualquer
dentro da caixinha
e principalmente um pedaço de juventude
acrítica e leve
posta à prova num livro entreaberto
censurado pelo vento e lido pela líbido
e os direitos autorais do teu suor
agora sou eu que os protejo e incito.

domingo, 25 de abril de 2010

Xilofone

Vou desfazendo estrelas com as mãos
Enquanto partes

d-o-r
deposito o pó em vasos
em embriões ingénuos de passado

um testamento de memórias na pele
que a água não apaga
não lava

nem as lágrimas são estrelas
— a ausência é um planeta isolado

distante o sol deseja não ser nada
só luz
perder o corpo

vou desfazendo estrelas com as mãos
enquanto partes

p-ó
nascem flores do pó
com pele de seda e água

a matéria presa
—surda
só nada em mim
quando partes

só estrelas
só sonho
s-ó

liberdade


Salvador Dali



álvaro escrevo-te hoje para agradecer
aquela carta de caligrafia tão delicada.
não se usa escrever já asssim as frases.
cortam-se as palavras nas pressas de internet.

apreciei que dissesses que me amavas
e que levasses cinquenta linhas e dez parágrafos
até que tomasse a devida nota que não sonhei
não foi por acaso aquela mão no ombro
e o beijo na face deslocado quase no canto
no canto dos lábios.

álvaro chega por volta das sete, sete e um quarto
e traz a espingarda - como bem sabes é metáfora
que gosto de todos os animais até da víbora
e não gosto de caça. matas-me e eu mato-te
quando chegares.

álvaro traz a mala verde e três mudas de roupa branca
t-shirts calças de ganga as botas fortes de borracha
dois chapéus de palha e uma enxada.ah! e não te esqueças
álvaro três diários.

álvaro vamos para o campo
só voltamos daqui a dois anos -

maria -

Roll bus roll

O autocarro é estéril
A noite calma e ébria

O portátil é o teu gira-discos

O meu amor é portátil
Descartável
Reciclável

O teu amor é um autocarro

O teu amor é o gira-discos
Portátil
Ébrio

O amor é o infinito _ reciclável

O amor é uma calma ébria
Uma noite portátil
Um gira-discos descartável

O meu amor é a tua música.

sábado, 24 de abril de 2010

Não temas
Não temas que esse medo também é meu

Tremem os joelhos e os ventrículos marcham rápido no breu

Não sinto os dedos nesta parestesia de dor
Não sinto o espaço
Pára o tempo em mim numa paralisia de ausência

Não temas
Não temas que este meu medo é um ladrão de medos

Rouba os medos alheios num egoísmo isolado a preto e branco

Não temas
Não temas que o medo de tudo te priva
do beijo e da queda

Resta-te o nada que te embrulha e preenche

Não temas
Não temas que esse teu medo também é meu.

sexta-feira, 23 de abril de 2010


Biblioteca Peabody


Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

Pedro Mexia, in "Duplo Império

os livros. os livros. os livros. 23 de abril 2010
DIZER-VOS ‘OBRIGADA’.

Dizer-vos ‘obrigada’ pelo encontro de ontem. Ao texto da conferência em que estou (ainda…!) a trabalhar, cujo título é “Topografias em (quase) dicionário: Rotas e travessias” e que apresentarei na próxima Terça-feira, acrescentei hoje um parágrafo. Vem a seguir à travessia entre poema e leitor e a Alberto Pimenta e Nanni Balestrini, falando sobre a diferença entre leitor e público. E diz assim:

“(…) Convoco uma experiência que me está muito próxima. De há uns dois anos para cá, tenho dado pequenos cursos de escrita criativa, que vão agora na sua terceira edição. A partir desses cursos e da amizade que foi sendo construída, construímos também um blogue (http://www.omarpareceazeite.blogspot.com/) e temos feito jantares mensais. O último desses jantares foi há precisamente seis dias. A um oceano de distância de outra partilha numa língua comum, partilho aqui e agora convosco da alegria dessa travessia real que é escutarmo-nos uns aos outros, em poemas trazidos por jovens e menos jovens, com profissões que vão desde a de empresária, professora de física ou professor de literatura, à de jornalista, tradutor ou psiquiatra. Alguns poemas vêm em cuidados manuscritos, acompanhados a cor, outros, dactilografados, outros ainda em pequenos papéis de ordem vária e forma irregular.
Neste último encontro (e porque nos tornámos mais exigentes no tocante ao espaço em que celebramos a poesia, dispondo agora de um local onde ela pode ser, ao lado de ementas elaboradas, experimentada a desoras), a viola prometeu vir a tornar-se um acompanhamento habitual – e a ela juntar-se-á, tudo indica, o saxofone. Talvez um dia destes alguém traga uma flauta, nunca se sabe. Ou um oboé. Não descurando o rigor, que, seja como for, no nosso caso é, felizmente, diverso do metodológico, porque assenta nas intensidades, estes são trânsitos que se situam fora de muitas elaborações teóricas e passam sobretudo pelo prazer da beleza, pela vivência de uma experiência estética apoiada na presença do outro, vivo, e no verdadeiro exercício dos cinco sentidos em torno da poesia. (…)”

Obrigada pelo sentir. Pela inspiração. E pela amizade.

ana luísa amaral

Musas de calendario





(Meus amigos, a todos os que estiveram na maravilhosa noite de ontem: assim a poesia ainda vale mais! Obrigado pela forma como me receberam e como emitiram as vossas fantásticas palavras e imagens. Deixo-vos com um poema acabadinho de fazer, em espanhol. Amo esta língua. Há muito tempo que já não escrevia nela e voltei hoje.
Abraços e beijos)




El poeta sigue creyendo
en calendarios con musas
y en todos los malos modos
de usarlas:
primero con sospecha y renuncia,
luego con ríos de curiosidad
gritos de guitarra y champán.

En los inmensos desdenes de su harén
el poeta mantiene una casa poco recomendable.
Más de cerca, en la apatía del patio:
un grupo de Marías Antonietas
menos famosas pero más probables
se desnudan del tiempo negro de la venganza
al que se entregaron como poemas
que se hacían pasar por milagros.

Hoy y siempre es martes de carnaval.
A los niños les sale muy fácil expresarse
jugando con el oculto bajo las dádivas
de la petulancia.

También les pasa lo mismo
a los poetas que siguen creyendo
en musas de calendario
figuras de santas en su despacho
que nunca cicatrizan en las paredes
totalmente fieles de la inevitabilidad.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

língua de poeta




trevas. as janelas de negro

medo. medo de ter medo
medo de ser sombra de ser luz
medo de ser trevo e erva seca
de ser néctar ser veneno

medo.medo -

não há coragem no que digo –

oscilo entre a uva e a vindima
cálice de mosto e vinho de aguardente
perdendo o equilíbrio
como a gravidade lunar num suspensório antigo
elástico, repetido
como um barco sem remos, sem destino
no ritmo de uma onda que se cria.

medo. medo. tenho tanto medo-

uma tesoura aberta sobre um fio
e um grito rouco. um eco distante

boca braço abraço
que me circunda e quebra
o refúgio mais certo de ser náufrago -

ilha. ilha de sal.

medo. medo de não ser
o retrato e o pó
as cartas e o nó
de um laço de palavras. palavras escritas
das que se guardam num relógio de pulso;
uma. uma. uma. uma em cada batida:

ritmo síncope de uma gota a abrir círculos como saída-

o medo. o medo. o medo
de ser lágrima
e ser língua de poeta -

yo tambien soy Garzón

"há um telhado onde o vento vem chorar"
poema de juan kruz igerabide - uma página do meu caderno

afilado es el tejado de mi casa;
llora el viento
llora cuando pasa.


                            Juan Kruz Igerabide


este poema, escrito originalmente em basco e aqui traduzido para castelhano, fala de um telhado como a única parte de uma casa que se avista de muito longe. fala do olhar de uma criança que perdeu a casa no dia em a falange lhe levou os pais. fala de um homem adulto preso na memória de um telhado pousado na linha do horizonte, onde o vento vem intencionalmente chorar. e fala de vidas e de verdades que nem o vento pode esquecer.

raquel patrairca
vinteedois.abril.doismiledez

Suspenso do teu nome





Suspenso do teu nome
Que indelével me retine
Na lembrança sinto
O veludo das tuas mãos
Serenando-me a insónia
Do medo que em criança

Chamava por ti.
Vinhas e então vinha o sono
Para exorcizar o medo
E tranquilizar a noite.

O sonho fazia o resto,
Sorria-me como tu fazias
Com o veludo das tuas mãos
E dos teus lábios pousando
Um beijo na minha testa.

É música o teu nome
Ecoando em mim a harmonia
Desde menino, agora vinda
Da eternidade que te dou.

O medo hoje é a tua ausência
Anoitecendo-me o coração.

(2010.04.21)
José Almeida da Silva

have a nice day




nice, nice day
este é o lema de um desejo.

dia azul de primavera
não cai o sol como casaco de ovelha
não há suor cansado na protecção da sombra.
suspensos sobre tábuas tortas
os aromas de jasmim, muitos e pequenos.

está reunido em cima de uma nuvem o concílio?
concílio de obscura origem nas más profecias?
nos escuros medos dos labirintos? Não, não acredito.

gosto dos teus cabelos e de um sorriso dentro deles –

um lenhador nas florestas de Iguaçu
lança um grito aos pássaros no último golpe do machado
inclina e parte a madeira no ruído farto
mas não cai a árvore, outras esticaram os braços.

ainda a páscoa, ainda as amêndoas de açúcar e licor
um travo gradual de um pouco de álcool –

ainda cedo nas pampas argentinas.
voam os espíritos claros que vivem livres
e são de asas os cavalos, pégasus de crinas
de cascos batidos no lado cardíaco.

não é tarde para a manta de retalhos
a visita das formigas, da joaninha.
a possibilidade de adágios de um carnaval
sem estátuas duras de camille . sobre-

sobre um guardanapo de tecido, biscoitos
tranças doces e uma termos de plástico
chá negro inglês que sempre desperta
um sopro de lábios, um ligeiro fumo
em refluxo, recolhendo de novo o bordo
e o fumo. os dedos . os dédalos de dedos
como crivos frescos de folhas, de folhas –

no brasil do rio as praias longas
no recife corais escondidos
na baía uma dança de saia de palha
um ventre molhado de oriente
solto de samba. as vozes. os ritmos.
uma chuva de gotas. gotas de pés descalços
um círculo sem poeira e um rosto
um rosto que se desenha .

não são verdes mas ruivas as folhas
raios atravessando uma caruma de versos
alinhados, paralelos, incontados, infinitos
e uma, uma caruma, aguda sobre o tornozelo
um som soprano no lóbulo, ao vento -

voou um colibri batendo asas numa acácia.
não voou mas ia jurar. a brisa. os olhos.
a brisa sobre os olhos. a velocidade.
o movimento acelerado. o riso . os cabelos -

nos mares da china anda uma jangada
e por maiores, muitos e medonhos – os medos
se voam os versos é porque há ilhas
e luas e planetas e lagos, lagos de estrelas-


have, have
a nice, a nice day
este, este é o lema de um desejo -

e um sorriso dentro dele -

quarta-feira, 21 de abril de 2010

tempos aos toques

falei com ela

disse-me que os rios tinham pressa
e havia brisas quentes que falavam

cristo não tinha nascido
e a expectativa era grande
e uma amiga muito calma
tinha sido queimada pela alma

perguntou-me pela palavra

contei-lhe de traumas
padres
inteligências emocionais
e interacções fundamentais à distância
para acalmar

a brisa ainda fala
com cuidado

apontou para trás de mim
e sorriu
sem ruído

Breve História do Fim





Passei a tarde a conversar com o meu epílogo.
Ou melhor: com um assessor do meu epílogo.
Trazia uma mala e da mala tirou más notícias
que espalhou em cima da mesa, depois de ter
pedido um café e uma água com gás natural.
Depois dos prolegómenos para uma visita
tão inesperada quanto necessária e invasiva
o assessor do meu epílogo leu uma enorme carta
onde se discutiam os meus remotos direitos à vida
entre uma e outra piada de mau gosto
e algumas considerações um pouco antiquadas
sobre a velocidade do fado na sociedade actual.

Comunicar-me o abreviamento da minha vida em dez anos –
apenas por ter fumado e bebido muito na noite anterior –
tinha sido o único motivo pelo qual teria feito aquela viagem.
Você está quase sem pátria, homem – disse-me ele
enquanto afagava um gato imaginário no seu colo protocolar.

Perdido por dez, perdido por mil.
O sol metálico da tarde encurralava-nos
aos dois numa sombra exígua e o meu homólogo
descontraiu um pouco e foi-se deixando ficar
como um empregado mal remunerado pela sua condição
e depois de ter a consciência limpa
e o estômago cheio de poemas, cervejas
e cigarros começou a falar das hierarquias temporais.
O calor era tão grande que atravessava o tempo
sem que o assessor do meu epílogo desse por isso.

Não sei quando regressou ao seu planeta fatal.
Mas o homem já tinha uma certa idade.
Estava prestes a pedir a reforma, segundo me contou,
e naquela tarde, depois de tantas cervejas, poemas e cigarros
é natural que o meu epílogo lhe tenha dado umas férias pagas
na demissão.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Demo Tape

Atravesso a nado porque o barqueiro é careiro
e lamenta o pescador que foi
de enguias de pé de porco
e sardinhas nas linhas a tecer forca
e espirra de frio e feio

E a meio de braçadas
vi o demo entrar na água
em salto sapato alto
peruca de laca teso pêlo
a cantarolar
Arrrluarrrr árvuiiiiiiyáaââ -vúáhêêê

Que horror!
Já devia ter juízo

e nisto passa zangado o barqueiro
e dá estalada de remo
e acordo na outra margem, salva pelo Demo!

Arrrluarrrr árvuiiiiiiyáaââ -vúáhêêê

E acompanhei à capela - vúáhêêê

e o barqueiro de guitarra
a dedilhar de garra desgarra:

Se não te levo eu
o diabo que te carregue
Tens medo do breu?
Foi o barqueiro que te fodeu

(Ana Janeiro)

sombra de nenúfares


Claude Monet




molhava o rosto na chuva da sua rua
conhecia pouco as trovoadas
o granizo da contrariedade- só
por dentro de personagens de capa -


aos poucos soube a razão das marés
ora descendo ora crescidas
e dos passos desenhados
grãos de areia cobertos de algas -

percebeu a imensidão do sal nas águas
o porquê da aurora e do crepúsculo
do acender de chamas luz e fumo –

era minúsculo um ser pequeno.

aprendeu o trabalho minucioso das agulhas
como rendas de espuma breves borbulhas
habitando a casa dos búzios –

quis ser invisível como as brisas.

pôs as luvas de boxe por dentro
percorreu o ringue de canto a canto
como os Lusíadas os descobrimentos
um eco da fala dos deuses na voz de Calíope:
conhece de ti ou serás perdido –

teve medo andou escondido.


acordava de olhos negros e vestia-se de branco
procurava a pele no pelo dos gatos a marca das pulgas
e regava nos jardins a sede calma das plantas -


viu um novo princípio
um grande lago
e a sombra límpida dos nenúfares -

segunda-feira, 19 de abril de 2010

um poema épico para um herói



era uma vez
um menino chamado afonso
que foi o mais bravo guerreiro
de todos os contos e histórias de encantar,
um herói tão especial
que lhe escreveram poemas épicos
daqueles que se cantam nas noites de luar;
inspirou as verdadeiras lendas
e ergueram-lhe estátuas de bronze
onde as donzelas e princesas
vinham deixar flores e outras prendas.


o seu nome ganhou um significado novo:
afonso passou a querer dizer
‘aquele que está pronto para combater’
e todos, fidalgos cavaleiros ou homens do povo,
que o viram ou conheceram a sua história
testemunharam a sua coragem
e guardaram-na, como a um tesouro,
nos cantinhos luminosos da alma
e nos corredores empoeirados da memória.


ainda hoje, acreditem em mim,
afonso é um nome sonante
de homem sábio, forte e importante
(tivemos muitos reis a quem chamaram assim).
tudo porque um menino com olhos de mel
combateu dragões, gigantes e moinhos
e até inimigos que nunca viu,
armado apenas com esperanças e carinhos
e montado no cavalo colorido de um carrossel.

– – – –

era uma vez
um menino chamado afonso
que tinha olhos profundos e doces,
com a vida para viver
e gargalhadas para dobrar.
queria ir à escola
e jogar à bola
e brincar.


era uma vez um menino
que em vez de ser só um menino
escolheu, muito cedo,
ser um exemplo a seguir:
porque ser um herói,
é ter medo
e sorrir.




dedicado ao afonso, no dia mundial da poesia. com carinho e um respeito infinito
raquel patriarca
vinteeum.março.doismiledez
________________________________________________________


o afonso é um menino de seis anos.
está a lutar pela vida contra e uma leucemia rara e muito agressiva.
precisa da nossa ajuda.
eu já estou registada como dadora de medula óssea.
vem juntar-te a este 'exército'.
o alistamento faz-se num dos centros de recruta e basta prestar voto de fidelidade e fazer um juramento de sangue, o que implica assinar um papel e fazer uma - muito pequena - recolha de sangue para análise.
e depois é possível que salvemos a vida a uma criança...


para mais lendas e poemas sobre o afonso, clicar aqui.

poesia, pataniscas e 'miguinhas'

as nossas sessões clandestinas
campo alegre - porto
raquel patriarca

domingo, 18 de abril de 2010

a m a r e l o

amarelo
o salto do som dela
a pirueta aberta
que nos chega

atirado ao pôr-do-sol
em pincel longo
queima-se de vermelho
e regressa elástico
em papagaio

esticado ao azul
para lhe estudar o voo
enrola-se nela e rola
em gargalhada

brincar de luz
em palavra
o elo entre ele e ela
no amarelo

a morte é amarela

Metus Causa




Está exento de responsabilidad criminal
el que obre impulsado por miedo insuperable.

(Código Penal Español, Art 20.6, vigente desde 24 de mayo de 1996)

I

Enquanto escrevo não pára de soar um alarme. A sua primavera propedêutica e unânime enche-me de pânico e o pânico provoca-me alergia aos limites humanos. A noite, na acidez do barulho que cumpre agora o seu vigésimo mandato, divorcia-se lentamente do continente da escuridão. As luzes participam da festa que o alarme promoveu um pouco por toda a ausência da minha coragem.
Escrevo em legítima defesa, para que o alarme se afogue depressa e a noite regresse à sua ocupação peninsular. A noite é uma península. Não obstante, enquanto se ouve um alarme soar a noite é uma ilha ilegítima dentro do sua republica das bananas, o tempo sofre febres altíssimas, e do delírio do tempo nascem palavras e talismãs.

II

Escrevo porque alguém me ataca primeiro
com a mão incognoscível que eu tanto suspeito
haver para além das duas que temos ao final do cansaço
para suportar a novidade do que nos queima sem parar.

III

O alarme actua nos tímpanos de forma pouco inovadora, previsível até, mas não é essa a sua capital. O alarme interroga-nos a pele com beliscões que o tacto jura não compreender, os olhos são destruídos pelo seu desejo inimputável de hipersónica vingança, os cabelos caem todos com a elegância árida de um mau acontecimento global, e um surto de inocência reactiva vem recolocar o nosso ser outra vez no seu lugar, agora marcado com uma cruz a vermelho na quadrícula da vida ingrata por vocação, depois da desfocagem que o alarme proporcionou no tempo para compensar uma noite sem vantagens e um texto genologicamente refractário.

IV

A modéstia impede-me de pensar na androginia do medo quando tudo está demasiadamente iluminado. Só as crianças, que vivem na idade média do medo, estão apagadas pela exaustão. O medo convoca uma inocência à força naquele que o modela com os seus sentidos a um tempo excedentes e degolados. Entretanto, rasgam-se lagos de luz no sexo da combustão. Queimaduras ou lesões de último grau respondem melhor ao disparate, onde o grito como um ícone negro governa do alto do seu idioma alarmado e uma angústia surda e cega enriquece subitamente, graças à generosidade do princípio de realidade, às custas do coro das catecolaminas em perfusão.

V

O alarme parou de soar.

Ferrugem


Gerhard Richter


longe de mim rasgam-se os séculos,
as madrugadas desertas
na permanente alucinação dos objectos.

e há um fluxo de gestos
nos corredores ilusórios
de todas as metamorfoses.

a língua das fundas fotografias do mundo.

como se tudo se tratasse de sílabas de ferrugem
porque a música inesgotável de todos os clamores
desprende-se da tinta nocturna dos livros.

há uma luz selvagem que me percorre o nome
e que enlouquece lentamente
no interior húmido da memória.

o espaço da voz
expande-se até à idade irrespirável dos objectos.

sento-me a observar a praia
e a forma como a água tem medo de se aproximar demasiado
e pousar nas perguntas.

as pálpebras escorrem-me até aos nervos.

há um frio insuportável na passagem escorregadia das horas
no gesso de cada nome,
e um sítio febril onde a inteligência consegue deteriorar
todos os vestígios indecifráveis da vida.
cada nome, no interior imóvel do seu ventre,
no sangue fervido das noites,
transporta uma luz pesada,
impronunciável.

Sara F. Costa ( Publicada na Revista de Poesia "Cráse" Dir. Nuno Brito )

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Lamentação




A loucura envilece
as cerejas
abre a porta do desvelo
com a chave dicotómica
do cansaço
entope as artérias
que irrigam os alvéolos
da contemplação.

A tarde procura nos vértices
dos últimos lugares
um critério suficientemente desonesto
para desaparecer sem deixar rasto.

Um animal promíscuo
é condecorado
fora dos catálogos
do realce.
A sua memória é agora
uma escola abandonada
de diástoles.

Restam as idades decepadas
da decepção. Um ou outro
motivo para desaprender
a perdurar.

A morte não se cansa
de me dar razão
e alguns vocábulos

água maioritariamente desigual.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

o caso benjamim




história extraordinária de um caso estranho.
durante muito tempo o fumo dos comboios
antecipava a chegada, ao contrário.
benjamim nasceu curioso e quis ser criança
tornou-se o descobridor umbílico.
lançou raízes dentro navios.os pés molhados
e uma genética singular a descer escadas.

foi um velho no mar falando sózinho.
era incapaz de matar Moby Dick - a baleia branca
e não gostava de botões que são como chaves.
preferia janelas abertas e árvores despidas
de Inverno ; os ramos como vidros quebrados
transparecendo.

acreditava em nostradamus, sabia
ser o caso extraordinário que rodava no sentido direito
quanto mais apreendia mais sucinta e pequena se tornava
a palma a perna a boca o pescoço os lábios o rosto.

essencial e puro morreu sem mágoa
ameno, muito pequeno
nos braços da bailarina -

“dorme, dorme, meu menino...”

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A desilusão foi a minha Beatriz





Restos de expectativa acesa na estatística
moderna tornaram-me num desiludido.
Afinal a minha face ficou perfeitamente disforme
depois do acidente que tive com a poesia.
Na rua toda a gente me conhece
pela minha identidade secreta
mas todos se dirigem a mim com arrepios.
As pessoas fogem da sua desilusão a sete pés
e não têm mãos a medir os quilómetros percorridos
descalços sobre a sua sombra a ferver
na velocidade tácita do seu curto papel cumprido.

Mas quando se trata da desilusão alheia
e da sua feroz capacidade para projectar
uma desnecessária posteridade
de imagens desiludidas
quando o outro se torna numa máquina
de desilusão apenas por aparentar estar
ou ser desiludido
então ainda mais fogem ou fingem fugir
patrocinadas talvez por um qualquer compromisso
urgente, cólica ou mera deselegância formal
já muito próxima contudo das bases do canibalismo.

Quando me encontram, as pessoas são normalmente
muito simpáticas e fingem aceitar
a minha habitação desiludida
em troca de uma noite
a ouvi-las falar dos efeitos
secundários da dissimulação.

terça-feira, 13 de abril de 2010

No Princípio Era


Paul Klee


Não dormia sem o escuro absoluto.
Doíam-lhe os olhos de ter visto cidades,
de ter esquecido gente, do frio
do vidro nas palavras. Demorava tanto
a entender o mundo que agora não dormia
de muita luz que as coisas tinham
antes sequer de serem suas. Trabalhava-se tanto
nesse lugar onde vivia com outros como ela
que às vezes pensava: tão estranho nascer
(quer dizer, nascer mesmo, estar aqui)
para o dia passado com estranhos.
E por isso, no princípio, não dormia
sem procurar o amor, sem beijar na testa
a noite que acabava serena e exausta como a noite.

No princípio era.
Depois esvaziou-se com cuidado.

(Filipa Leal, Janeiro de 2007)
(retirei este poema do blog das Quintas da Leitura)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

um braço de distância


retirado da internet

a avenida, a casa, o jardim, a glicínia .
cachos de bagos violetas, aromas de essências.
no entanto em abril foi em tempos um braço de distância:

do outro lado passava gente e não havia borboletas;
uma janela branca, um largo de cimento
a amoreira grande, o plátano gigante e um banco de madeira;
local ideal do Pirata, Benny e Franjinhas, três amigos
de quatro patas e uma cauda.

do outro lado não havia campaínhas
mas sabia sempre pelos latidos
dos gatos seguros, delicados e lentos
deslizando atentos, orelhas transistores
nas ondas dos voos mais pequenos de insectos;
moscas, mosquitos e gafanhotos.

cortinas separavam olhos na curva das formas
sombras se próximas e milionésimas
nas quadrículas das rendas; duas garças
de simetria e ponto fino, idade antiga.

quando o sol procurava as águas de sal
que se segue no caminho trémulo e aberto dos salgueiros
sabia da despedida das aves nas paredes do quarto
escutava o choro da mangueira e a chegada dos gatos
escutava a sede das raízes e o riso tímido das plantas.

o rosto, as mãos brancas, dois pés molhados.
o bater intuitivo dos dedos no rouge do lado esquerdo
de um vulto no outro lado da cortina
a melodia de um quadro numa malha sem acaso
cortada, mais larga junto ao bico da garça e
o esvoaçar da água no caule pontiagudo das rosas
na superfície fértil de bolbos de muitas tulipas
na impossível matemática do entrançado de estrelícias
poucas e altivas de únicas geometrias
como as tias de bengala no seu olhar entremeado
entre o sono de fim de tarde e a teia possível
e nítida como aquela em tons de brisa
nos ramos do eucalipto e nas hortênsias alcalinas.

os dias mais quentes de abril e maio. Muitos
tantos de tecidos da Índia e cabelos de seara
luzidios e unidos, uma vírgula invertida e a adivinha
de quantas vértebras no elevar de um dorso em círculo
nos intervalos de um ritmo de mão repetitiva
e um ronronar que apesar de distante se tornava audível.

cedo se sabe a sedução feminina: atravessa muros.
e assim era o desejo dirigido,o despontar de um fruto
sob a alça na inclinação efervescente e demorada.
naturalmente sabia do outro lado da garça
a renda cortada e o nariz como um binóculo junto ao bico.

Nostradamus e Bandarra talvez em alguma página
teriam previsto que a tia Ermelinda, a mais velha das tias
pudesse encontrar a tiara prometida, dia 11 de um domingo.
ficou três anos sózinha a glicínia e a casa da avenida.
mora agora uma família e um relvado contínuo.
sobrevive a revolta das essências e a cortina
dobrada na arca de um navio
que guardo desde o dia da partida:
14 de Fevereiro de 1995, quinze e trinta.

sempre que abro a janela do meu quarto, lembro-me.
será casada, terá filhos, o cabelo ainda será comprido?
do outro lado raramente ouço o ritual das águas.
os cães não ladram. à noite passam menos carros.
é quando, num imenso silêncio por vezes me sento
e dedico-lhe um poema de palavras muito simples
como os aromas que sinto-

Depoimento



I

Há uma caixa negra dentro
da finalidade do mundo
como uma manhã fictícia
que só um grande acontecimento
consente.

Há uma face humilhada
pela presença súbita da chuva
no argumento do meu medo
a única fala que tenho de saber
de cor até ao dia da estreia
do teu convite.

Há um presságio agitado e concreto
entre o teu desaparecimento e o meu
vício de o exibir.

Há uma comunidade inconfessável
que habita a órbita do esquecimento
do mundo nessa parte do mundo
inconfessável por natureza
que é o esquecimento de si.

II

Pouca gente se apercebe
de que há um plano ultra-secreto
para destruir a sociedade
com assédio e um certo tipo
de flores desfavoráveis
aos cardíacos:
as carícias.

Os amantes vivem melhor mergulhados
no verbo matar de forma ridícula
e são vizinhos de um destino caído
em desuso pela probidade da terra.

Não tenho pena nenhuma destes tristes
que se enforcam com o seu próprio êxito.

Não temo sofrer da mesma notícia
nem sequer vir a ter o mesmo domicílio
de certezas doentes.

Nem quando sei perfeitamente
que o mundo não é aquilo que aparenta
ao espelho do seu tempo
nem nas suas superstições mais antigas
há relatos de um abraço tão severo
como foi aquele que nunca demos
por falta de braços na exactidão.

domingo, 11 de abril de 2010

Do que nada se sabe


retirado da internet




A lua ignora que é tranquila e clara
E não pode sequer saber que é lua;
A areia, que é a areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
As peças de marfim são tão alheias
Ao abstracto xadrez como essa mão
Que as rege. Talvez o destino humano,
Breve alegria e longas odisseias,
Seja instrumento de Outro. Ignoramos;
Dar-lhe o nome de Deus não nos conforta.
Em vão também o medo, a angústia, a absorta
E truncada oração que iniciamos.
Que arco terá então lançado a seta
Que eu sou? Que cume pode ser a meta?

Jorge Luis Borges, in "A Rosa Profunda"

sábado, 10 de abril de 2010

Antígona


Frederic Leighton "Antígona"

Uma chama áurea de um folheado precioso
No alto de uma coluna antes de subir o pano.
Antígona como um raio ilumina Tebas
Aquece o ambiente e torna pesados e quentes
Casacos compridos numa noite de março.
Ruídos incómodos de rebuçados crepitam
De intensidade, alertam os espíritos.
Antígona desafia uma longa ceia de abutres
A escura lei coberta de labirintos;
A ilusão dos vigias.
Não pode esquecer as sementes dos campos
O irmão morto na porta dos desertos.

Húmus, húmus e o ódio dos homens
As cavernas e as tragédias – sinais gregos
Fumos, fumos brancos de inocentes
Lembrou Aída, Radamés, música de ópera
E uma roda gigante de pedra como tambor
Um fim de requiem, pancada seca.

Regresso, regresso ao distante tempo
De pedras bíblicas e margens do grande rio
Sob o poder do cajado que afoga egípcios
No correr dos crocodilos.
Deus, Deus, porque não existes?

Não há braços sobre Antígona.
Ondula um brinco e um vestido sob a a brisa.
Um risco negro onde antes as pupilas.
As unhas nas sandálias como pétalas de tulipa
E um pêndulo no anel apertado de uma fita.

Antígona, bem, fizeste bem
O respeito do sangue, do parto, da mãe
O incomum de ser alguém.

E Antígona, nada mudou, apenas os séculos
E os males modernos do clima.
A mesma inconsciência; o ódio, o inimigo.

Noite fria e pouco depois o fado
A guitarra, o baixo, a letra repetida.
Nada mudou Antígona, lamento.
Muitos gritos ingénuos, a utopia.

Há seringas de plástico pelos bancos da Batalha
Em frente um reclame luminoso
De um dia mundial de um teatro
Ali ao lado um beco sujo, um vão escuro
E o fingimento de voz macia nos lábios roxos
Na postura de perna gorda e saia mini.
Na porta dos artistas ouro, make up
E cheiros de naftalina, um casaco de peles
Borsalino .
Ali ao lado uma garrafa de vinho tinto
Na voz rouca de estudantes falando outra língua
Em hipotenusa no vértice de um triângulo.

Uma , uma e trinta Antígona.
Poderia ser, poderia ter sido
Uma coluna, um feixe de luz no deserto
E um coro de vítimas que atravessa séculos.
Epílogo .

A chave na ignição, vidros partidos
O cheiro intenso de gasolina de muitos carros
Um ruído forte de escape, marcha atrás, cuidado
É tarde -
Para Aída para Antígona

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aquilo que vestem os que estão nus




Posso ser negligente com a minha nudez
atribuir-lhe a noite de todas as culpas:
ela continuará nua dramaticamente nua e imune
insensível aos impostos dos meus passos
minúsculos para a deter.

A minha nudez é um pleonasmo infiel a si mesmo
e navega à velocidade de um corpo por segundo
isto se o espelho tiver uma óptima resolução
e a cópia libertar o original das inconveniências
de ter nascido primeiro e mais pobrezinho.

Um murmúrio inalterável de areia quase convicta
eis a minha nudez.
Praia impressionável à palpação.
Lei ao abrigo do desabrigo.

Mas ninguém imagina o quanto eu desrespeito
a minha mortalidade quando estou nu
sem os utensílios e os sentidos encobertos
pela famosa roupa de marca do tempo.

Chego até a acreditar no uivo e no perjúrio.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Normas de funcionamento de um hospital




1. Num hospital para amantes, os doentes nunca estão acamados - nem há camas sequer que lhes sirva - porque é precisamente do hábito da cama que eles se querem ver livres. E inocentes. Para sempre.

2. A austera e preferível posição vertical favorece a morte da morte que se diz reduzida, mas que os domina, assim como inicia o fim dos festejos das larvas da libido e sugere o voto em branco hormonal.

3. Não há qualquer espécie de internamento, senão das fantasias, umas convocadas ao coma, outras sujeitas à combustão.

4. Está inteiramente proibido o uso e o consumo de corpos correlativos e mesmo a amizade e a afeição são vigiadas continuamente da eficácia.

5. O hospital possui pelo menos um médico por cada amante.
E todos os benefícios da floresta pragmática de um paraíso norte-europeu:

6. Animadores pobres de serão. Génios a quem o amor causou claudicância e varizes. Gente que auxilia na cura contra aquilo que sente, mas que recebe uma enorme quantia por isso. Personagens primordiais. E enfermeiros especializados na ferida áfona que Derrida - um dos doentes externados aqui – julgava saber de ti de cor, logo quando a noite se suicida.

7. A abstinência sexual é ensinada aos gritos, através de altifalantes minuciosamente instalados nos corredores da má-fé.

8. As propriedades esfuziantes da nudez são extraídas por intermédio de drogas que prejudicam seriamente a representação do outro em toda a sua coerência erótica e simetria.

9. Todos os utentes têm de ter sempre o corpo coberto de analgesia e desaparição.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

o medo e o jogo o véu e a sombra




Quando uma gota cintila e desce
caminhos geométricos de uma teia
encontra nós
e em cada nó dois ou três caminhos.
a gota suspensa por vezes não avança.
o sol participa no jogo de aranha
vaporiza e sublima a indecisão
eleva e sobe a gota a uma outra dimensão;
sinfonia em volta de uma planta
ou de um ramo de oliveira que segura a teia.

depois da noite
assim se repete no orvalho diurno
não uma nova mas a mesma gota
na geometria centrífuga e tímbrica
tecida no fio da teia
o reflexo fino de lâmina ferida
que observa o cair da luz
o crepúsculo que incentiva o escuro

o medo e o jogo o véu e a sombra
um movimento de gota dinâmico
como antes as asas de borboleta
abalavam as raízes do Pacífico


o medo e o jogo o véu e a sombra
na oscilação contínua da teia;
e ao longe tempestades marítimas
desassosego de ilhas e istmos
e o possível nascimento de penínsulas -

segunda-feira, 5 de abril de 2010

cegas

ridículas as ilhas

as pedras nas ilhas
as casas nas pedras
e as janelas

as cartas são brancas
e dizem ilha

não sei ler cartas
ou os mapas do tempo
que tenho por dentro

mas uma ilha não é ridícula

se as ilhas não tivessem olhos

domingo, 4 de abril de 2010

Uma esplanada sobre o mar


Kartész "Mesa de café em Paris com um poema de Ady" 1928

(Reli este conto de Vergílio Ferreira e achei-o tão bem escrito que não resisti a publicar)


A rapariga estava sentada a uma mesa numa esplanada sobre o mar. Vestia de branco e era loura, mas muito queimada do sol. Ao lado da mesa estava montado um guarda-sol giratório de pano azul que o criado veio regular, para acertar bem a sombra. O criado não perguntou nada e inclinou-se apenas e a rapariga pediu um refresco. Era a meio da tarde e o sol batia em cheio no mar, que se espelhava aqui e além em placas rebrilhantes. O céu estava muito azul e o ar era muito límpido, mas no limite do mar havia uma leve neblina e os barcos que aí passa¬vam tinham os traços imprecisos, como se fossem feitos também de névoa. Na praia que ficava em baixo não havia quase ninguém e o mar batia em pequenas ondas na areia. A espuma era mais branca, iluminada do sol, e o ruído do mar era quase contínuo e espalhado por toda a extensão das águas.
A rapariga de vez em quando olhava ao lado a porta que dava para a esplanada e depois olhava o relógio. Voltava então a olhar o mar e ficava assim sem se mover. Tinha os olhos azuis muito brilhantes, contra a pele morena e o traço negro que os contornava. Foi num desses momentos de alheamento que o rapaz entrou. À porta da esplanada deteve-se um momento a orientar-se por entre as mesas ocupadas, mas logo localizou a rapariga sob o guarda-sol azul. Vestia calça branca e uma camisola amarela de manga curta. E era louro como a rapariga. Quando ela o reconheceu, fez-lhe sinal, mas ele já a tinha visto. Sentou-se-lhe ao pé e olhou em volta como se procurasse alguém. As mesas estavam quase todas ocupadas sob guarda-sóis coloridos e uma ou outra ao sol. Era quase tudo gente jovem, vestida de cores claras de praia.
– Desculpa, fiz-te esperar – disse ele.
– Cheguei há pouco, o criado nem trouxe ainda o que lhe pedi. E que é que me querias dizer?
O criado, com efeito, trazia o refresco para a rapariga, voltou-se para o rapaz a perguntar se tomava alguma coisa.
– Pode ser o mesmo – disse o rapaz.
O sol caía em cheio sobre a praia, iluminava o mar até ao limite do horizonte.
– Que é que me querias dizer? – perguntou de novo a rapariga. Ele sorriu-lhe e tomou-lhe uma das mãos que tinha sobre a
mesa.
– Gosto de te ver – disse depois. – Gosto de te ver como nunca. Fica-te bem o vestido branco.
– Já mo viste tanta vez.
– Nunca to vi como hoje. Deve ser do sol e do mar. – Que é que querias?
– Deve ser dos olhos limpos com que to vejo hoje. O criado trouxe o novo refresco e ambos se calaram, tomando as bebidas.
– Não sei para que são tantos mistérios – disse a rapariga. –O melhor é dizeres logo tudo de uma vez.
– Não se trata de mistérios. Trata-se de estar certo o que te disser.
– Porque é que não há-de estar certo? – perguntou a rapariga. – Por tanta coisa – disse o rapaz. – Eu achei que te ficava bem o vestido e tu estranhaste que eu o dissesse.
– Já me tinhas visto o vestido muita vez. Foi só por isso.
– Nunca reparaste que há certas coisas que nós já vimos muitas vezes e que de vez em quando é como se fosse a primeira? – Nunca reparei – disse a rapariga.
– Nunca ficaste a olhar o mar muito tempo?
– Sim, já fiquei.
– Ou o lume de um fogão? – disse o rapaz.
– E que queres dizer com isso?
– Ou uma flor. Ou ouvir um pássaro cantar.
– Sim, sim.
– Não há nada mais igual do que o mar ou o lume ou uma flor. Ou um pássaro. E a gente não se cansa de os ver ou ouvir. Só é pre¬ciso que se esteja disposto para achar diferença nessa igualdade. Posso olhar o mar e não reparar nele, porque já o vi. Mas posso estar horas a olhar e não me cansar da sua monotonia.
O rapaz tinha o olhar absorto na extensão das águas e permaneceu calado algum tempo. As águas brilhavam com o reflexo do sol na agitação breve das ondas. A rapariga calava-se também, fitando o rapaz, porque percebia que ele não acabara de falar. Mas o rapaz calou-se como se não tivesse mais nada a dizer e ela perguntou:
– Mas que é que querias dizer-me?
– Mesmo as coisas mais banais são diferentes se alguma coisa importante se passou em nós.
– Se alguma coisa importante se passou em nós, não reparamos nas coisas – disse a rapariga, acendendo um cigarro.
– Se é coisa mesmo importante, tudo se nos transfigura – disse o rapaz, de olhar alheado no horizonte.
– Que coisa importante? – perguntou a rapariga.
Mas ele não respondeu e ela perguntou outra vez:
– Que coisa importante?
– Não sei. Uma coisa importante. Se te morresse o pai e a mãe e ficasses subitamente sozinha, o mundo transfigurava-se. Se tivesses tentado o suicídio e te salvassem, mesmo as pedras e os cães começavam a ser diferentes. Estavas farta de conhecer os cães e as pedras, mas eles eram diferentes porque os olhavas com outros olhos.
E de novo se calou. Mas agora também a rapariga se calava na indistinta ameaça de não sabia o quê. O sol rodara um pouco, apanhava agora a cabeça do rapaz, incendiando-lhe o cabelo tombado para a testa. Levantou-se, tentou ela fazer girar o guarda-sol azul no pé de ferro articulado, seguro com um gancho recurvo e uma pequena corrente. Sentou-se de novo mas verificou que ficava ela agora com uma mancha de sol que lhe apanhava um ombro e o braço e uma pequena zona da face. Bebeu um pouco de refresco, olhou distraidamente a linha longínqua do limite do mar. Havia no rapaz uma notícia a dar, mas a rapariga não sabia como fazer a pergunta certa para estar certa com a resposta que queria ouvir. E de súbito disse:
– Pediste-me para estar aqui às quatro horas. Telefonaste-me duas vezes. Vieste à praia para isso. Porque é que afinal vieste?
– Mas tenho estado a explicar-te porque vim.
– Tens estado a explicar porque vieste. Mas falta o mais importante. Falta dizeres por exemplo que tudo está acabado entre nós. Falta dizer que essa tal tua amiga sempre conseguiu o que queria. Falta dizer que nunca me achaste tão bela como hoje, mas que já me não podes amar. Falta dizer isso, mas tens de preparar o terreno, porque a coragem nunca foi o teu forte e julgas que não é o meu.
Falava devagar mas com uma grande intensidade interior, e ficou assim ruborizada, os olhos brilhantes de violência. O rapaz ouviu-a e não respondeu. Pensou primeiro concordar com a rapariga e dizer-lhe talvez que já a não amava. E evitava assim ter de lhe dizer a verdade. Quando ela depois a soubesse, talvez já não sofresse, talvez o esquecesse mais depressa. Mas sofreria ele por aceitar uma mentira que ia contra o que sentia. Julgava ser mais fácil dizer tudo e via agora que não.
– Nada disso é verdade – disse por fim.
O mar brilhava cada vez mais. As placas incandescentes tremeluziam nas águas e faziam semicerrar os olhos ao rapaz. Vergou-se para a mesa e bebeu um gole de refresco.
– Há coisas que é difícil dizerem-se – continuou. – É preciso que tudo esteja de acordo. Com esta luz e esta alegria de Verão e este bem-estar de uma esplanada, eu não podia dizer-te, por exemplo, que me vou matar.
– Que estupidez. Mas não tentes desconversar.
– Seria estúpido – disse o rapaz. – Não vou de facto matar-me. Mas não tinha outra maneira de to dizer, se fosse. E seria estúpido, porque tudo estava em desacordo. Não era coisa que se dissesse a uma hora de praia e de sol.
A rapariga ficou a olhá-lo algum tempo intensamente, a tentar ouvir-lhe o que já não dizia.
– Nunca está certa, aliás, seja a que hora for – continuou o rapaz. – Tudo pode estar certo talvez a qualquer hora. Menos essa banalidade ridícula da morte. De tudo se pode falar, menos dela. Nem falar, nem filosofar, nem fazer seja o que for que a tenha a ela em conta. Há uma aliança contra ela como contra uma infâmia. Ou como se o não falar a excluísse. E é a única verdade perfeita.
– Mas é uma conversa idiota – disse a rapariga fitando o companheiro de lado, a entender.
– Tudo é erro e ludíbrio: o triunfo, o poder, as ideias, mesmo as matemáticas. Tu pensa no que quiseres e verás que tudo erra. Há só uma coisa que não. E é do que se não pode falar.
O sol baixara um pouco e estendia agora uma estrada de lume pelas águas. Um barco à vela atravessou-a e um momento foi como se as chamas o envolvessem. O rapaz calou-se e a rapariga não sabia que perguntar. Ou tinha várias perguntas, mas não sabia qual estaria certa.
– Sempre fazes exame em Outubro? – disse ela por fim. Tentava contorná-lo ou distraí-lo, para depois o surpreender onde ele não esperasse.
– Não devo fazer – disse o rapaz. – E mesmo não seria nunca em Outubro. Os exames de Outubro são sempre em Novembro ou Dezembro. Às vezes vão mesmo até ao segundo período.
– Por que é que não deves fazer? – perguntou a rapariga.
O rapaz olhou-a no seu vestido de praia, na cor morena da pele, nos cabelos claros que lhe caíam sobre os ombros, e outra vez sentiu que não sabia como responder. Na praia havia já alguns veraneantes à sombra dos toldos ou estendidos ao sol. Um ou outro mergulhava mesmo nas ondas cheias de luz.
– Por que não deves fazer? – insistiu a rapariga. – Tens ainda uns meses para te preparares.
– Creio que um mês chegava-me – respondeu o rapaz. – Mas não adiantava nada.
– Por que não adiantava? – perguntou a rapariga.
Ele ficou em silêncio outra vez, olhando o mar. Tinha uma resposta certa, mas tinha medo dela como se ele próprio a não soubesse. Depois disse:
– O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. E é extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
– Espera! Três meses como? – disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-o fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhes agora toda a mesa. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
– Diz outra vez – repetiu a rapariga. – Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
– Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
– Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
– A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita – disse o rapaz.
– Sim – repetiu a rapariga. – Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
– Mas a explicação é simples – disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. – Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.

Virgílio Ferreira "Uma esplanada sobre o mar" Difel