domingo, 17 de julho de 2011

a carta, um conto ou as palavras lançadas ao mar


imagem retirada da internet

não conseguiu caminhar na areia mas foi ver o mar.
na mesa branca pousaram o café quente e negro
ao qual disse: obrigado.

no imediato a chávena de asa de porcelana
inclinou-se por sobre os lábios e tornou-se branca,
na totalidade, como a mesa, a cadeira
e uma gaivota que passava planando em direcção à onda,
desafiando a gravidade.

jazia esquecido o romance de um escritor conhecido,
ressonava no sono pesado; não teve coragem
tornou-se silencioso, e lentamente colocou-o no canto da mesa
que era branca como a cadeira, a gaivota
e uma folha que entretanto colocara ao centro,
vazia e alinhada.

deixou fluir as palavras pelo meio dos dedos
em transe, como quem recebe uma descarga;
os olhos muito abertos e dinamite no tronco
lançando faíscas, imperceptíveis na generalidade
de todos os outros que cruzavam os braços
escutavam as frases, decifravam as vagas
ou liam apenas notícias dos jornais.

a folha perdeu o anonimato e aqui e ali
sofreu a mancha de um traço,
por fim tornou-se pesada e completa;
o alívio de não mais ser branca
como a mesa, a cadeira, a gaivota
e as espumas fragmentadas que subiam acima das rochas.

colocou-a cuidadosamente à frente dos lábios
e perante o espanto de alguns que observavam,
soprou com força as palavras
para que o mar as levasse, mesmo assim
impermeáveis e sem garrafa.

dobrou a folha densa em quatro e com muito cuidado
sem acordar o livro que ressonava de forma estranha
levantando aqui e ali a capa, duas ou três páginas
colocou-a de uma só vez, junto ao prefácio.

um euro e vinte, disse o empregado;
bom dia, muito obrigado.

de livro aconchegado na almofada do braço,
oitocentas páginas,
subiu as escadas e desapareceu com a carta,
em direcção à cidade -

as mesmas palavras erguiam as velas como naus
e seguiam marítimas os caminhos do mar -


José Ferreira 17 Julho 2011