Turva a mudança, estranho Adamastor
Curvado estende os braços
O corpo foge, petrifica e estagna
(Tremor arrastado)
O rosto morde o passado, chora a falta e a noite
Os braços do gigante, o grito amordaçado
(fecham-se os olhos)
Um abraço de nuvens e trevas ergue o corpo
(abrem-se os olhos)
Breve luz, céu redondo e o gigante ri
O corpo voa sobre o abismo
Espectros de luz e sombra
O movimento traz asas de cor
A alma estranha as longas penas coloridas
Crescem do corpo e abrem-se num voo horizontal
O planar do tempo, em linha recta que esgota
O gigante ri.
As asas ficam
Sempre
As penas também.
quinta-feira, 5 de abril de 2012
a carta que te escrevo ( I )
Salvador Dali
escrevo-te esta carta para que a guardes.
hora de almoço de um dia sem nome.
vou contar-te, começa assim:
amanheceu o quarto com uma frincha e um raio que pendurava luz.
no meio dessa luz
os pós ínfimos eram olhos pequenos
em movimento, talvez de electrões e spin, já não recordo essa química –
o rádio na voz grave adequava entoações, notícias, falava de economia
a nossa, a difícil, o corte dos subsídios e algumas de outros países –
apesar das nuvens era um dia de primavera
e a primavera é um contínuo abrir da natureza
as flores e o verde –
um copo de leite branco girou 1 minuto na forma decidida, rodando
na luz do microondas que também se acende
nas células agitadas que se tornam quentes.
o gato branco miou e ergueu os olhos azuis, irresistível
roçou-me as pernas e deixou-me pêlos que levo comigo
nem sacudo nem removo em rolos de cola moderna
levo comigo levo um pouco dele
a sua doçura sossega-me
preciso de sossego -
por vezes a cabeça lateja e queima como se fosse uma gripe ardente
inferna-me as ideias e coloca-me um manto negro sobre os dentes
e sendo assim a vida é um tormento –
mas são estados passageiros, nuvens, trajectos não extensos
e sendo assim um sorriso ou a tua mão sobre a minha testa
transformam de novo o mundo numa vida bela, bonita, certa –
procuro acertar o tempo, essa é a missão, aquela em que me arrisco
a preferível forma mansa de encarar o mundo, a mais morna e doce
nunca a bruta de uma masculinidade fraca de espadas e de um circo romano
dispenso o espectáculo –
mas não podes classificar-me de indiferente perante as dores do mundo.
vejo de um outro modo a metamorfose, a mudança do indigno;
lava-se na justiça, menos melodrama, mais objectivos –
pára agora um pouco, não quero que te canses.
pousa a carta que te escrevo e faz um exercício:
podes esticar-me um dedo que te rodeie o rosto
que pouse de leve no meio dos teus lábios
e podes chamar-me de alien
um deslocado da velocidade que outros querem
para percorrerem precipícios na era hipermoderna –
sou um homem de alma, de misturar almas
de misturar sonhos no mar, nos prédios e nas calçadas –
escrevo-te esta carta para que a guardes
não quero demorar muito e não quero que acabe
quero que seja interminável
que dure para sempre
que tenha continuidade
que se ligue numa próxima
que se eleve pelo vento
e que permaneça
como um ninho e a semente –
5 de abril de 2012
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