sábado, 21 de janeiro de 2012

Capital humano...


Capital humano…

“Tu, que me traças o perfil e me desenhas o fundo, ensina-me a cair nele, porque estás mais perdido do que eu”.
                                                                                                                                             Pastor Alemão

I.

Eram doze os irmãos do Renascimento português.
Onze deles: os irmãos do amolador romeno, estão à porta de hipermercados, cada um à frente de um supermercado do grupo Jerónimo Martins. Desceram a Europa. Ocuparam o lugar que antes pertencia aos lobos. Vão fumando os cigarros que o segurança lhes enrola. À noite juntam-se à volta da sopa e do pouco pão que há, o vinho fica todo para o pai que é doente e não pode trabalhar e quando não há vinho há problemas e os vizinhos chamam a polícia. Mas o amolador optou por outro caminho, outro canal de comunicação com a realidade portuguesa, um trabalho mais técnico. A de amolador de facas. Na Roménia tinha estudado música, mas o violoncelo já há muito vendido ocupava agora uma vitrina de uma loja de artigos em segunda mão em Constança. Levava o seu cão atrás e a bicicleta que foi  roubando às peças e construindo, só teve de esperar dois dias até encontrar o guiador que formava o conjunto. Foi trabalhar para o aeroporto e no amplo espaço vazio onde se cruzavam viajantes, o amolador oferecia os seus serviços. Era raro alguém ter uma faca, mas alguns iam com facas na mão, mas ainda mais raro era que  aqueles que as traziam, não as levassem suficientemente afiadas para os serviços que delas pretendiam (cortar o pão, o queijo – para as sandes da viagem, golpear um homem na barriga, descascar um ananás trazido da Madeira). Mas era compensador este trabalho sem remuneração, era especializado e nem só do local certo se faz o destino.

II.

À entrada de um aeroporto lusitano está o pastor alemão – os aeroportos lusitanos são os mais asseados, de longe os mais limpos e os melhores – São um espelho fiel da realidade do país e por isso o pastor alemão escolheu um destes (e não outro do continente europeu) para a sua partida. O pastor alemão encontrava-se cá fora, táxis, grupos a fumar à pressa, relógios nos pulsos.
Ele não tinha a certeza se ia começar uma viagem ou se tinha acabado de a fazer. Estava cá fora o herói desta narrativa, sem saber se entrava num avião ou se tinha acabado de chegar – Na verdade isso era um pormenor, porque a viagem é sempre contínua e nem sempre é feita de movimento mas de uma simples motivação do fundo. O pastor alemão olhou para o fundo, mas não havia fundo – Nenhuma rota traçada – Nenhum sinal de destino, apenas uma certa apatia feita de muitas pegadas, um delírio controlado que lhe deu vontade de beber. Na sua mala que abriu apenas havia búzios pequeninos e um livro verde e grande – Talvez a Montanha Mágica … Foi até aos quartos de banho, e ao seu lado um homem urinava – reparou que o urinol dele era de prata, o seu não. Era de cerâmica das Caldas – importada do interior para Lisboa onde outros estrangeiros a colocaram com todo o cuidado – O homem trazia uma mala – Na mala tinha búzios pequenos e dentro dos búzios novas histórias – Isso permitia-lhe construir um novo passado assim que chegasse ao Brasil – Construir uma vida nova – com um passado limpo – A “ficha limpa” era a sua obsessão, como se a a ficha fosse uma entidade paralela ao processo que corria no tribunal. Demoraria 10 anos a resolver e prescrevia – Mesmo assim era necessário ter todo o cuidado. Os aeroportos lusitanos são seguros para quem foge - têm urinóis de prata para quem os merece – O processo de branqueamento de capitais, o tráfico de relíquias de Cristo – sudários, dentinhos, rótulas recheadas de musgo – Era mais seguro ir para o Brasil que é grande, muito grande e depois as autoridades perdem o rasto e a ficha fica limpa, limpa e branca como um lençol.
O caso do pastor alemão não tinha paralelismo possível com o deste homem determinado e consciente do seu caminho, que já ia a meio (No Céu, dentro do avião da TAP a ler o Capital). O Pastor não. Não sabia do que fugia, nem se fugia, e muitas vezes fugimos sem saber que o estamos a fazer, é quase mecânico, tão mecânico como um espasmo, muitas vezes estamos realmente longe, realmente longe de tudo.

III.

Na actual conjuntura económica o grupo Jerónimo Martins trava uma luta enorme com uma cadeia de hipermercados rival, é então que um grande grupo de peritos em marketing é contratado e esse grupo reúne-se e decide-se por uma campanha promocional: vários cabazes de produtos a preços económicos – É feita uma lista de trinta cabazes de produtos, a preços muito baixos, um desses cabazes incluí 50 facas de cozinha, todas elas mal afiadas, mas a um preço compensador. O anúncio passa na televisão e o amolador romeno que estava num snack-bar ao lado do aeroporto vê-o e decide-se pela viagem até um Pingo Doce da capital; aí cria a sua pequena banca, a bicicleta, o som do aboio, com um pequeno organino chama os clientes, a música está recheada de um magnetismo animal que atrai os clientes para fora do supermercado, todos eles muito contentes com os seus cabazes optam pela primeira solução que lhes aparece: afiar as facas ali logo, e compensa porque o preço do cabaz com as 50 facas mal afiadas mais o preço que o amolador leva para as afiar não chega a 60% do preço dessas facas. E há esperança que um dia haja pão em casa e aí vão ser precisas facas para o cortar. O grupo Jerónimo Martins pensou nisso e começou a levar uma pequena percentagem ao amolador pelo serviço prestado, 40% do lucro do romeno era metido num pequeno saco e esvaziado nas seis registadoras do supermercado. Facilitava os trocos.

IV.

O pastor alemão lembra-se subitamente da sua namorada – Dá-lhe um baque tremendo esta recordação magnética – Puxa-o para o fundo – Várias cordas – Sente necessidade de uma ponta, uma ponta segura que o ligue aos canais da realidade, BAQUE, é violento o que uma memória-fêmea pode trazer, um tornado-menina a calçar-se, a percorrer todo o aeroporto lusitano de um susto maior que por o ser, não deixa de ser doce. Os seus olhos iluminam-se, o branco dos olhos desaparece. Foi todo para as nuvens que os aviões rasgam, numa dessas viagens podia já estar ele, mas está de certo o fugitivo da justiça portuguesa a pensar na ficha limpa que associa ao branco. Se calhar já chegou e começou uma vida nova, gere um vasto capital humano. O pastor alemão não tem ficha e nisso lembra-se, as fichas são caras, tudo tem o seu preço. E novamente a recordação da namorada e o sangue a correr todo ao coração onde uma aparição mariana lhe desperta todos os sentidos, lhe bombeia a música para as extremidades. E ele lembra-se – Não estou aqui pela viagem, mas para saber um pouco mais sobre a morte. E por isso vim. Não porque vou ou porque acabo de regressar. Mas para saber mais, o amolador de facas sabe muito sobre a morte e é com ele que devo falar.


V.

Procura-o, em todo o lado, e não há sinal dele, uma das empregadas da limpeza diz que não o vê há muito tempo mas que acha que ele emigrou para o Pingo Doce mais próximo porque é o que todos fazem a conselho dos nossos ministros. E o pastor corre com a sede toda nos olhos, avisam-no que o Douro subiu, há muitos anos, na verdade foi muito tempo a espécie de hibernação no aeroporto, trazia a mala, os búzios, sem passado dentro. O gondoleiro ajudou-o a subir para a barca, perto da estação de São Bento, depois seguiram pelos canais estreitos do Porto. Ali uma torre torta, gémea de uma outra torre torta, ali um barco ambulância a rasgar as águas, ali uma gôndola funerária a perder-se pelos canais, perto da Rua das Flores. E é estranho o ideal que os move, os braços seguros do gondoleiro, o remar forte que cria a rota onde nada se escreve. Não fica registo de nada, de nada. Mas há ainda a mala com os búzios sem passado e um desassossego tão português atravessa os canais, contorna a cidade e avisa o pastor alemão que é impossível ver de cima. O desconforto prende-se aos pulsos, serve de óculos, uma radical armação que filtra a realidade, são todos os ângulos dentro da mala, não convém abri-la. O som do organino que o romeno toca alerta o gondoleiro e o pastor que está para breve o conhecimento da morte. Ele sabe, como qualquer amolador, muitas coisas sobre ela. O som está cada vez mais alto. À porta do Pingo Doce muitas gôndolas paradas, e os homens saem com os seus cabazes. O amolador já lá não estava. Tinha reunido o dinheiro suficiente para o dia e agora os doze irmãos em casa, uma cegonha no lugar do pai - ela não bebia. Esperavam o pastor. A assembleia foi honesta, sincera com o seu próprio fundo, como só um animal paciente pode ser. Discutiu-se o capital humano, o inumano de tudo isto, estabeleceu-se um plano de fuga. Não passava pelo aeroporto. 

Nuno Brito

Poema inútil com montanha


Vejo a montanha à minha frente pousada
Sobre a água sempre verde, e penso na inutilidade
De tudo o que ela é, e na inutilidade de estar pensando nisto,
Quando um pensamento inútil me sugere
Que a montanha pode ser
Um pormenor pensado por ela
Na paisagem do meu próprio pensamento, para
Com isto me levar a pensar sobre pensamentos,
E não sobre montanhas, ficando ela, como antes,
Pousada na água sempre verde, sem ser
Pensada por ninguém.

Rui Costa 
em A Nuvem Prateada das Pessoas Graves (2005)



Soneto a uma fotografia do calendário Pirelli


(fotografia do Calendário Pirelli 2012)

O seu cabelo preto parece escutar,
sua forma prendida em concha,
a praia nua espreita o véu na onda
escurecida na areia tremeluzente.

É o vazio que ajusta a própria luz
e na calma dobrada o banho adorna.
O fio de espera nos lábios agarrando-se,
contendo em recuo o som da corrente.

A rebentação nasce como arrepio e sal,
retém o centro, como rocha, rodeada
pelas vénias de rastejamento aquático.

A música que ela escuta e não vês
é barco que gela quando naufraga a tal,
batendo na espiral que talha o teu mar.

um poema para adormecer - freud conhece as linhas da mão


imagem daqui

freud conhece as linhas da mão
fala sempre que me aproximo e ergue olhos de céu
na exigência de muitos dedos, na pele e nos pêlos, que são imensos -
e deita-se sobre as mesas, as cadeiras e os muros mais pequenos;
tudo por causa de um afecto e um pequeno tremor, um sossego
como a cor dos versos de alguns poemas -

e deita-se bem dentro da cama, sobre o colo das pernas
e quando muito quente, espreguiça-se e lento
sobe com toda a ternura pela raiz dos cabelos
e apaga os desertos -

freud compreende bem
e se fosse mesmo grande, tinha um ombro do tamanho do meu
e se fosse mesmo grande, tinha também, cabelos e mãos
e se fosse mesmo grande, era tudo o que sonhei, e sempre
uns lábios grandes de muitas palavras doces, no silêncio dos meus
uns lábios grandes de muitas palavras doces, para contar histórias
antes de adormecer -

e no fim, quando as pestanas caíssem na brancura de uma linha, mesmo branca
se ouviria um som, lá ao longe, um shh…! shh…! shh…! um sonho bom
e um ligeiro tremor, que não seria o seu

um ron-ron…um ron-ron…
um ron-ron que fosse o meu -

josé ferreira 20 Janeiro 2012

Arrepio




imagem daqui

.......................A superstição é a poesia da vida.
....................................................................Goethe

Corro por fora da vida
Pensando que a vivo
Por dentro. Dizem-me
Que não sou livre e sou
Comandado por aqueles
Que já partiram. Eu digo
Que não, que sou eu
Que ando, que penso,
Que falo e que escrevo
Poesia. Às vezes, duvido
Do que afirmo, sim, não
Tenho a certeza se sou eu.
Mesmo quando escrevo.

Não sou supersticioso, não
Sou. Arrepio-me, todavia,
Se me falam em bruxas
Em que não acredito. Não
Sei porquê, mas receio
Que me assombrem a vida.

Era tudo o que não queria –
Ser uma marioneta movida
Por fios invisíveis –

2012.01.13
José Almeida da Silva