Capital humano…
“Tu, que me traças o
perfil e me desenhas o fundo, ensina-me a cair nele, porque estás mais perdido
do que eu”.
Pastor Alemão
I.
Eram doze os irmãos do
Renascimento português.
Onze deles: os irmãos do
amolador romeno, estão à porta de hipermercados, cada um à frente de um
supermercado do grupo Jerónimo Martins. Desceram a Europa. Ocuparam o lugar que
antes pertencia aos lobos. Vão fumando os cigarros que o segurança lhes enrola.
À noite juntam-se à volta da sopa e do pouco pão que há, o vinho fica todo para
o pai que é doente e não pode trabalhar e quando não há vinho há problemas e os
vizinhos chamam a polícia. Mas o amolador optou por outro caminho, outro canal
de comunicação com a realidade portuguesa, um trabalho mais técnico. A de
amolador de facas. Na Roménia tinha estudado música, mas o violoncelo já há
muito vendido ocupava agora uma vitrina de uma loja de artigos em segunda mão
em Constança. Levava o seu cão atrás e a bicicleta que foi roubando às
peças e construindo, só teve de esperar dois dias até encontrar o guiador que
formava o conjunto. Foi trabalhar para o aeroporto e no amplo espaço vazio onde
se cruzavam viajantes, o amolador oferecia os seus serviços. Era raro alguém
ter uma faca, mas alguns iam com facas na mão, mas ainda mais raro era que
aqueles que as traziam, não as levassem suficientemente afiadas para os
serviços que delas pretendiam (cortar o pão, o queijo – para as sandes da
viagem, golpear um homem na barriga, descascar um ananás trazido da Madeira).
Mas era compensador este trabalho sem remuneração, era especializado e nem só
do local certo se faz o destino.
II.
À entrada de
um aeroporto lusitano está o pastor alemão – os aeroportos lusitanos são os
mais asseados, de longe os mais limpos e os melhores – São um espelho fiel da
realidade do país e por isso o pastor alemão escolheu um destes (e não outro do
continente europeu) para a sua partida. O pastor alemão encontrava-se cá fora,
táxis, grupos a fumar à pressa, relógios nos pulsos.
Ele não tinha
a certeza se ia começar uma viagem ou se tinha acabado de a fazer. Estava cá
fora o herói desta narrativa, sem saber se entrava num avião ou se tinha
acabado de chegar – Na verdade isso era um pormenor, porque a viagem é sempre
contínua e nem sempre é feita de movimento mas de uma simples motivação do
fundo. O pastor alemão olhou para o fundo, mas não havia fundo – Nenhuma rota
traçada – Nenhum sinal de destino, apenas uma certa apatia feita de muitas
pegadas, um delírio controlado que lhe deu vontade de beber. Na sua mala que
abriu apenas havia búzios pequeninos e um livro verde e grande – Talvez a Montanha Mágica … Foi até aos quartos
de banho, e ao seu lado um homem urinava – reparou que o urinol dele era de
prata, o seu não. Era de cerâmica das Caldas – importada do interior para
Lisboa onde outros estrangeiros a colocaram com todo o cuidado – O homem trazia
uma mala – Na mala tinha búzios pequenos e dentro dos búzios novas histórias –
Isso permitia-lhe construir um novo passado assim que chegasse ao Brasil –
Construir uma vida nova – com um passado limpo – A “ficha limpa” era a sua
obsessão, como se a a ficha fosse uma entidade paralela ao processo que corria
no tribunal. Demoraria 10 anos a resolver e prescrevia – Mesmo assim era
necessário ter todo o cuidado. Os aeroportos lusitanos são seguros para quem
foge - têm urinóis de prata para quem os merece – O processo de branqueamento
de capitais, o tráfico de relíquias de Cristo – sudários, dentinhos, rótulas
recheadas de musgo – Era mais seguro ir para o Brasil que é grande, muito
grande e depois as autoridades perdem o rasto e a ficha fica limpa, limpa e
branca como um lençol.
O caso do pastor alemão não
tinha paralelismo possível com o deste homem determinado e consciente do seu
caminho, que já ia a meio (No Céu, dentro do avião da TAP a ler o Capital). O
Pastor não. Não sabia do que fugia, nem se fugia, e muitas vezes fugimos sem
saber que o estamos a fazer, é quase mecânico, tão mecânico como um espasmo,
muitas vezes estamos realmente longe, realmente longe de tudo.
III.
Na actual
conjuntura económica o grupo Jerónimo Martins trava uma luta enorme com uma
cadeia de hipermercados rival, é então que um grande grupo de peritos em
marketing é contratado e esse grupo reúne-se e decide-se por uma campanha
promocional: vários cabazes de produtos a preços económicos – É feita uma lista
de trinta cabazes de produtos, a preços muito baixos, um desses cabazes incluí
50 facas de cozinha, todas elas mal afiadas, mas a um preço compensador. O
anúncio passa na televisão e o amolador romeno que estava num snack-bar ao lado
do aeroporto vê-o e decide-se pela viagem até um Pingo Doce da capital; aí cria
a sua pequena banca, a bicicleta, o som do aboio, com um pequeno organino chama
os clientes, a música está recheada de um magnetismo animal que atrai os
clientes para fora do supermercado, todos eles muito contentes com os seus
cabazes optam pela primeira solução que lhes aparece: afiar as facas ali logo,
e compensa porque o preço do cabaz com as 50 facas mal afiadas mais o preço que
o amolador leva para as afiar não chega a 60% do preço dessas facas. E há
esperança que um dia haja pão em casa e aí vão ser precisas facas para o
cortar. O grupo Jerónimo Martins pensou nisso e começou a levar uma pequena
percentagem ao amolador pelo serviço prestado, 40% do lucro do romeno era
metido num pequeno saco e esvaziado nas seis registadoras do supermercado.
Facilitava os trocos.
IV.
O pastor
alemão lembra-se subitamente da sua namorada – Dá-lhe um baque tremendo esta
recordação magnética – Puxa-o para o fundo – Várias cordas – Sente necessidade
de uma ponta, uma ponta segura que o ligue aos canais da realidade, BAQUE, é
violento o que uma memória-fêmea pode trazer, um tornado-menina a calçar-se, a
percorrer todo o aeroporto lusitano de um susto maior que por o ser, não deixa
de ser doce. Os seus olhos iluminam-se, o branco dos olhos desaparece. Foi todo
para as nuvens que os aviões rasgam, numa dessas viagens podia já estar ele,
mas está de certo o fugitivo da justiça portuguesa a pensar na ficha limpa que
associa ao branco. Se calhar já chegou e começou uma vida nova, gere um vasto
capital humano. O pastor alemão não tem ficha e nisso lembra-se, as fichas são
caras, tudo tem o seu preço. E novamente a recordação da namorada e o sangue a
correr todo ao coração onde uma aparição mariana lhe desperta todos os
sentidos, lhe bombeia a música para as extremidades. E ele lembra-se – Não
estou aqui pela viagem, mas para saber um pouco mais sobre a morte. E por isso
vim. Não porque vou ou porque acabo de regressar. Mas para saber mais, o
amolador de facas sabe muito sobre a morte e é com ele que devo falar.
V.
Procura-o, em
todo o lado, e não há sinal dele, uma das empregadas da limpeza diz que não o
vê há muito tempo mas que acha que ele emigrou para o Pingo Doce mais próximo
porque é o que todos fazem a conselho dos nossos ministros. E o pastor corre
com a sede toda nos olhos, avisam-no que o Douro subiu, há muitos anos, na
verdade foi muito tempo a espécie de hibernação no aeroporto, trazia a mala, os
búzios, sem passado dentro. O gondoleiro ajudou-o a subir para a barca, perto
da estação de São Bento, depois seguiram pelos canais estreitos do Porto. Ali
uma torre torta, gémea de uma outra torre torta, ali um barco ambulância a
rasgar as águas, ali uma gôndola funerária a perder-se pelos canais, perto da
Rua das Flores. E é estranho o ideal que os move, os braços seguros do
gondoleiro, o remar forte que cria a rota onde nada se escreve. Não fica
registo de nada, de nada. Mas há ainda a mala com os búzios sem passado e um
desassossego tão português atravessa os canais, contorna a cidade e avisa o
pastor alemão que é impossível ver de cima. O desconforto prende-se aos pulsos,
serve de óculos, uma radical armação que filtra a realidade, são todos os
ângulos dentro da mala, não convém abri-la. O som do organino que o romeno toca
alerta o gondoleiro e o pastor que está para breve o conhecimento da morte. Ele
sabe, como qualquer amolador, muitas coisas sobre ela. O som está cada vez mais
alto. À porta do Pingo Doce muitas gôndolas paradas, e os homens saem com os
seus cabazes. O amolador já lá não estava. Tinha reunido o dinheiro suficiente
para o dia e agora os doze irmãos em casa, uma cegonha no lugar do pai - ela
não bebia. Esperavam o pastor. A assembleia foi honesta, sincera com o seu
próprio fundo, como só um animal paciente pode ser. Discutiu-se o capital
humano, o inumano de tudo isto, estabeleceu-se um plano de fuga. Não passava
pelo aeroporto.
Nuno Brito