quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Um dia

                             Peter Rand


ouve,  digo-te com todas as letras
um dia podemos ser únicos no cimo de um monte
entre o nevoeiro, as pedras buriladas pelo vento
e a paisagem difusa do horizonte.
um dia podemos ou não podemos realizar o sonho –

conto-te de todos os poemas:  os que nascem sem nascente
os que são de água que cai de cima
os que são de pó suspenso –

ouve,  digo-te
um dia podemos ter os dedos abertos sobre todos os medos
um dia livre sem estações nem horas
sem nuvens nem rodas
sem o escape dos ponteiros do relógio
sem  a ânsia eterna dos pêndulos,  que não param –

ouve, digo-te
um dia podemos ser mais no intervalo mais comprido, ouço músicas
o intervalo subitamente cristalino
para que a pergunta surja mais afirmativa
porque não antes?
porque não sempre?

josé ferreira 1 de Novembro de 2012



A Verdade Histórica - um poema de Ana Luísa Amara

                              Fotografia de Stephanie Fry




A minha filha partiu uma tigela

na cozinha.

E eu que me apetecia escrever

sobre o evento,

tive que pôr de lado inspiração e lápis,

pegar numa vassoura e varrer

a cozinha.


A cozinha varrida de tigela

ficou diferente da cozinha

de tigela intacta:

local propício a escavação e estudo,

curto mapa arqueológico

num futuro remoto.


Uma tigela de louça branca

com flores,

restos de cereais tratados

em embalagem estanque

espalhados pelo chão.


Não eram grãos de trigo de Pompeia,

mas eram respeitosos cereais

de qualquer forma.

E a tigela, mesmo não sendo da dinastia Ming,

mas das Caldas,

daqui a cinco ou dez mil anos

devia ter estatuto admirativo.


Mas a hecatombe

deu-se.

E escorregada de pequeninas mãos,

ficou esquecida de famas e proveitos,

varrida de vassouras e memórias.


Por mísero e cruel balde de lixo

azul

em plástico moderno

(indestrutível)



ANA LUÍSA AMARAL,

"Minha Senhora de Quê", Quetzal Editores, Lisboa, 1999