sexta-feira, 24 de setembro de 2010

basta que te dispas até doeres todo


Salvador Dali " A alegoria da Primavera" 1978


basta que te dispas até doeres todo
retoma-te no tocado, no aceso,
e fica cego e,
por memória do tacto, desfaz os nós,
muitos, muito
atados uns nos outros,
e que inteiramente te alcance o ar e,
depois de te haver abraçado de alto a baixo, apareça já
inextricável, ar
falado, a fino ouvido: cacofónico,
mas de um modo exacto, acho,
música inquieta, inconjunta, impura,
isso: essa música

Herberto Helder “ A faca não corta o fogo” Assírio & Alvim 2008

sal ou magma





fecha os olhos cansados e permanentes
e imagina as penas, as gotas e os aparos
a mente de quem escreve, em voz alta
a aconchegar frases, as metáforas,
a pontuá-las: lentas, rápidas ou graves
dentro da tua casa, uma gaveta de letras,
segredos de psicanálise.

mantêm os olhos fechados, aguenta, não os abras
que importa a hora, a retaguarda do mundo
se para ser apreendido, despedido do inútil
reconvertido em densidade, precisa muitíssimo
do livro, do poema, da palavra;
a caligrafia hormonal de uma carta
de rumo, bússola que interage.

abre agora a vista. faz o hiato. pousa o livro
sobre a secretária. repara nas linhas das folhas
que se fecham. a marca. vais a meio.
nem tu nem o livro existem na mesma quantidade.

quando sedentário e táctil descansar na prateleira
não será igual a tantos outros
e nem sequer saberás até que ponto
se inscreveu na alma

sal ou magma de diamante claro -