terça-feira, 9 de agosto de 2011

cinquenta e três versos


Edouard Boubat

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos enrolados em letras curvas.
jazem como bolas de papel, amarrotados na clareza, na intenção
no óbvio, na vulgaridade de não serem admissíveis como únicos;
fracos e símiles como o compromisso antigo riscado nas uniões de reis
imperadores e rainhas, austríacas -

resta a música -

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos poderia significar o edifício
a sólida cidade organizada que risco na côdea das árvores.
nem um merece a luz, porque lasso, sem chama, horizontal, rouco
sem espanto -

resta o azul de uma aguarela
a parede branca sem mácula, antes assim -

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos representa a pétala, a sépala
a flor uníssona de caule vertical
o cálice de mosto
a carícia na pedra
que a transforme em água clara, minuciosa, sem pressa
que a transforme em líquido de prata
como às vezes, os lagos, os rios pouco inclinados -

nenhum
nem um que estabeleça a ilusão e um braço de certeza -

cinquenta e três
e os olhos adormeceram, rasos, cansados sobre a mesa;
o papel em algazarra de grossos lábios discute a impossibilidade
de reorganizar as letras -

é tarde, muito tarde para o poema -

em tempos, sem a ousadia de um físico correr da tinta
escreveste o verso mais poderoso sobre todos os meus trajectos
sobre as mil águas de chuva e os duzentos caminhos tortos
simples e magnífico
como sempre o é o inato e a sabedoria

era Setembro, olhaste-me nos olhos;
a pele morena
as pálpebras de Agosto -

nenhum
nem um dos cinquenta e três versos te merece, te representa;
rolam sobre a mesa na imensidão da aragem rubra
que invade a dor dos cabelos
os ouvidos calados, a nuca descomposta sobre os dedos -

resta uma escada de liana e uma nuvem a mastigar cinzentos
a tornar-se branca
depois de um dilúvio de excessos perante a fogueira
que ameaça a ruptura no desconforto do sedimento
sem fazer parte
inútil e separado da rocha magenta
que encorpa a mente
e entorna o coração na cor vermelha
escorrente, nas mãos abertas de harpa
oca de invernos
escrevendo as células
inventando a pureza muda das fotografias
retirando uma a uma toda a roupagem efémera;
a nudez esclarecida -

a lua, a janela e os sentidos -


José Ferreira 9 Agosto 2011