2008.12.27 | A medo escrevo e falo

Suspenso do teu nome





Suspenso do teu nome
Que indelével me retine
Na lembrança sinto
O veludo das tuas mãos
Serenando-me a insónia
Do medo que em criança

Chamava por ti.
Vinhas e então vinha o sono
Para exorcizar o medo
E tranquilizar a noite.

O sonho fazia o resto,
Sorria-me como tu fazias
Com o veludo das tuas mãos
E dos teus lábios pousando
Um beijo na minha testa.

É música o teu nome
Ecoando em mim a harmonia
Desde menino, agora vinda
Da eternidade que te dou.

O medo hoje é a tua ausência
Anoitecendo-me o coração.

(2010.04.21)
José Almeida da Silva


Cicuta Pura

Do "Tríptico emocional" e depois da última sessão
decidi só publicar o que recolheu
a melhor aceitação dos meus colegas (quanto ao pastel
que pintei para a apresentação tenho que estudar
um pouco mais de informática para o conseguir
publicar):

Cicuta Pura

Por vezes visto-me de toga branca, acusado
na Assembleia grega de Sócrates.
Do lado de lá nem Platão nem Críton. Só ninguém
e uma chuva de setas de cicuta lançada de canas secas.
Cuido da vista que não se perca, do lado esquerdo
do peito que o veneno não atinja.
Se a chuva cessa sempre palpita um lado.
No meio dos dedos vejo rostos, esgares e
sendo imensa e funda, apago a dor
esperando um, apenas um dia um
mais dia um ... alguém!






Devolve-me os dedos

-----------------------------------------A medo vivo, a medo escrevo e falo
-----------------------------------------António Ferreira (1528-1569)


Devolve-me os dedos
que ficaram dormentes
nas fendas da lua

quando as ruas derretiam
e o vento vermelho voava
deixando as pessoas nuas

quando a vertigem trepava
e a virgem voraz rasgava
a garganta que a habitava

Devolve-me o linho branco
que cobria os meus pruridos
curvas e contra costas

quando o aço do teu espaço
se sumia em arrepio
ao cheiro do meu grito

quando os olhos se apertavam
e visões de videntes vinham
em inventadas ausências

Devolve-me o certo de mim
as linhas que me desenham
um ventre que se sustente

e medos que me sobrem
ou ancas que não se dobrem
leva-os no mar para longe

onde não possam dançar
falar ou viver
no instante em que tudo -


O Segredo

A medo vivo, a medo escrevo e falo
António Ferreira (1528-1569)

Dizer, numa árvore deixar
Ao ouvido um segredo
Oco tronco tranca o medo
Do indizível
Segredo

Sussurrar o sentir
Num velho vulto vazio
Lavar o peso do peito
Nesse rio

Caixa-forte dos afectos
Meu amor depositado
O segredo que no peito
É mal guardado


Vontade

“a medo vivo, a medo escrevo e falo”
António Ferreira, 1528-1569


E se é verdade o que dizem
sobre o amor não ser eterno.
É devolver o que se sente
ou se pensa que sente,
já sem certeza de nada,
e guardar apenas a memória
de um mundo enganado de
perfeições inventadas.

E aquele a quem se ama,
composição de conceitos
próprios, torna-se entidade livre
de à força ser imagem  e significado
de quem precisa de o amar.

E se é verdade que o amor não é eterno.
Pouco importa,
que hei-de manter as perfeições inventadas
por teimosia de vontade,
que não escondo nem calo.
Mas entretanto,
a medo escrevo, a medo vivo e falo.


Raquel Patriarca
dezasseis.dezembro.doismileoito

Adeus

Partiu o comboio
Vi-o dançar no trilho
Despenteado
As árvores ao lado
Caindo as folhas
Como em mim

O comboio desapareceu
E as árvores ali despidas
Como eu

Em pé
Eu na estação
E a solidão
E eu nua de ti

Comboios partem, comboios vão
E o sentimento cresce lentamente
Um resto um sedimento
Comboios chegam
E eu na estação

O vento varre os medos dos outros
Eu sou transparente
Fico ali
Como tronco de árvore
Despida de ti

A Primavera há de vestir
As árvores de todas as flores
Mas eu sem nada
Ali na estação
Sei que há comboios que vêm e que vão
Mas é certa esta dor
E eu já não te visto, nem te tenho visto
Nem Outono, nem Inverno, nem Verão
Visto sempre e só a solidão
E a longa certeza dos dias compridos 
Elza Durão

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