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terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Ajax ou deus pastoral

Um lugar para a sede
onde não haja
Água – só desejo de a ter
e por isso Vínculo,
Só as saias da Sede
Que alguém desenhou
 a subirem devagar
Uma mão de homem – sede do seu joelho
Sobe as coxas – a mão
Procura a parte mais quente da sede,
Todo o corpo pede novas formas de beber
Entre as pernas da sede - o homem lambe o seu sexo
A saia curta, ficou à cinta, por baixo dela a cabeça
O homem lambe a sede – ambos são seres personificados
A cuequinha de algodão para o lado
Pode ser no Miradouro do Adamastor
onde Churchill pediu para sair do táxi - olhou para a nuvem com a boca aberta
bebeu um bocado da chuva - mas queria beber a nuvem toda,
como disse o taxista cheio do Sonho Americano, se eu fosse homem
estava agora com uma erecção só de ver Churchill a olhar para Almada
enquanto os submarinos passam o Canal da Mancha - Todos os ministros no Bunker,
 ele foi comprar charutos a Picadilly -
deve estar a chegar, não deve estar em Portugal a beber nuvens -
O Fim da Guerra precisa dele - e a Paz também precisa dele
 Com a boca cheia de chuva olha para Almada (para o ponto onde vai estar  o Cristo Rei,
está lá só um homem que é uma estátua de sono - substitui-se por outra estátua
mete-se uma saia - Relva na cabeça, um bocado de gel - e vira-se a estátua para a América




Não existem eles nem nós – se virmos o desenho que faz
no espaço-tempo este prazer, por baixo da saia-
O tornozelo-sede – os dedos-sede, sem filtros
Ligados por um fio de Mão Aberta – a mão sede onde dorme um helicóptero
 um insecto suicida que choca com outros no ar quando há fogo cruzado -
tenho medo porque tenho mãos - a nossa Possibilidade incluí essa Voz
que nos chama


Antes de entrar no táxi     
Churchill olha para o relógio - seis e meia - Portugal a acordar - vê as traseiras de uma pastelaria
espreita pelas frinchas - Vê os pasteleiros com as grandes seringas culinárias
a injectarem o creme dentro das bolas de berlim e dos eclaires, dos outros bolinhos
como o mais perverso voyeur da indústria alimentar
espreita os pasteis de nata a saírem do forno - todo ele treme de euforia ao ver os bolos de arroz
a serem amassados, os bolinhos húngaros de chocolate e manteiga,


***

A mão da sede, em jeito de abandono pede ao homem:

Traduz o meu corpo para a linguagem dos rios,
Se me queres dar um prazer verdadeiro, traduz tu
Ajax ou Deus Pastoral
Que sabes todas as línguas
Que estás entre todos os povos,
Traduz tu Ajax ou Deus pastoral
A minha sede em água
As linhas da minha vida em rios
Da minha medula faz nascentes de ribeiros frescos
(Põe dois pastores em cada lado) e um guarda-rios
Mais a sua família feliz e o doce lar em que habitem
E que eles velem a minha descida pelas montanhas,
Desço por ti, fertilizo-te a terra
                                                dos meus joelhos faz barcos,
                                                Das rótulas as velas, dos ossos dos dedos: canoas
O tronco seco
E do meu sopro os que nela andem e que neles remem,
que os aldeões vejam o rio engrossar o seu leito
na medida proporcional da sua sede
E na medida proporcional da sua sede abram poços,
Traduz pois Ajax ou deus pastoral os meus olhos negros
em poços fundos, para que eles venham com os seus baldes
beber-me um pouco mais
E a sede que sou eu esteja neles e que a procura que é a sede
E és tu e todos, esteja entre nós,
Fontes límpidas de Minos, rio seguro que nós somos
A descer contínuo, no fundo deles põe um mar
Tradu-lo do leite do meu sexo quando me lambes e dás prazer
Ajax ou deus pastoral – tu tradutor que me lambes
Vês agora o mar que criaste do teu desejo
Vês essa onda que te molha os pés, coalha-se em espuma
É só uma onda que ri
um pouco atrás no paredão
num banco atrás dos namorados
alguém me desenhou para velar por ti


                                                              Nuno Brito

domingo, 22 de janeiro de 2012

Blanc et Blanc


 
I.
O pastor alemão veio morar para o Centro,
Onde a releitura do ódio parece a releitura do amor
trouxe na viagem e na língua ainda o sabor das lágrimas de Heidi
elas nunca tocaram o chão -
a meio da queda ele bebia-as
como um limite, doces e citrinas, sabiam a gin tónico com muito limão
O caminho em direcção ao centro, a carreira de professor que ensina as estações
o medo vem a seguir ao Outono e o desejo a seguir ao Inverno
mas os ciclos são interiores: como as estações
a meio da queda, o frio congela as lágrimas,
 são agora flocos de neve que caem dos olhos de Heidi, parecem estrelas
cobrem os soldadinhos de chumbo de um manto branco

 
II.
despe Sebald… alguém
não é homem nem mulher
porque os géneros mentem –
A sua cara é feita de traição,
de traição os nervos, o contorno do queixo,
 o contorno das orelhas,
de traição os nervos,
 o viso, a expressão,
 de traição também o vento quente que lhe bate na cara.
Tem um derrame nos olhos por ter visto de mais,
e em todos os glóbulos a febre: Vermelha e branca -
Branca e Branca, como a ficha dos homens que fugiram -
 desenha a lápis um fundo onde morar
na expressão um afogamento interior
Desaparece como personagem, Heidi
 No lugar dela: uma memória magnética
Que acende os olhos, o derrame do centro
para onde a memória foi morar
 Ele ou ela disfarçado de noite porque os géneros mentem
Congelam na descida,
 o cair decidido no chão – rotundo,
Os nervos coloridos disfarçados de noite.



III.
Puseram uns patins no pónei branco
e empurram-no para cima do lago congelado
  os seus movimentos numa dança de susto,
O arfar do potro, o medo preso aos tendões
Uma respiração nervosa diz-lhe que sobreviva
O sangue a correr rápido
 o chão a fugir-lhe por baixo das patas
o espectador era só um: Toda a Gente.
O desenho que ficou no gelo, as marcas dos patins,
Da tracção, do espasmo, da dança dos reflexos,
as asas de uma borboleta
  no meio de um livro
 o último leitor fecha-o,
 noutra página um trevo de quatro folhas,
 outros amuletos ainda
ganham vida dentro da Montanha Mágica – Não será mais aberta.

 Falo de um entrar verdadeiro, um Entrar Magnético

IV.
Se nas mãos o mensageiro traz uma vela acesa
e se o mensageiro sofre de insensibilidade motora,
não dá conta que ela lhe queima as mãos
 e de arder todo o mensageiro se faz nova mensagem –
a expressão feita de muitas somas,
uma sede  de novo - foi toda para os olhos,
 desenha a linha da vida, o lápis, o pulso, o traço seguro
O fotógrafo da realidade pousa a máquina, sinal de abandono
 tem só agora a retina e no branco da parte de trás dos olhos,
as duas asas da borboleta, invertidas,
afogadas na representação da órbita
O coleccionador desta realidade faz uma nova cartografia do espaço,
 mas tem de ser ágil, a terra treme e muda muito rápido,
Surgem novas penínsulas, novas ilhas, novos medos onde antes era terra,
 e ao cartógrafo são exigidos reflexos rápidos,
porque também o mapa lhe foge por baixo das mãos.
O pulso seguro desenha a terra que treme
Só a velocidade lhe é permitida, como salvação e nela
a releitura do ódio parece-se com a releitura do amor.
Agudizam-se, chega-se logo aos pólos,
Talvez por isso ele foi morar para o centro.
O fotógrafo da realidade está desempregado, não porque não haja realidade (trabalho não falta) – mas porque o nosso século não permite mais a representação.
Também o cartógrafo. Resta-lhes o precário mas doce ofício de criar novos medos e neles entrarem
Dos teus olhos destilo uma Vontade Nova,
Todo o Desejo, toda a Viagem em nova anatomia
 a minha obsessão por braços, destilo das tuas mãos o caminho.
Da tua sede, a minha sede, da tua língua a minha vigília


V.
De todos os frutos se destila o prazer e o esquecimento
De todos os medos se destila a Crença – procuramos novas formas de beber
A viagem
não admite géneros, só procura -
de viagem a nova anatomia que rasga o universo à escala humana
Os dentes alinhados transmitindo coragem
os nervos tão seguros, os braços a remarem
por canais que abrimos e não se fecham

VI.
Na anatomia a minha obsessão por braços
Na geografia a minha obsessão por penínsulas:
Aquilo que entra –
E depois dos braços, as mãos, e depois os dedos
 extremidades, pontas que recebem e dão, por isso perecíveis, vulneráveis.
E depois penínsulas cada vez mais finas e estreitas,
 paredões, finíssimas línguas de areia que entram pelo mar:
parecem dedos, os Faróis,
pescadores solitários com a lancheira ao lado, namorados –
 Aqui nas pontas recebe-se e leva-se para o centro.
Ali um caminho ou uma artéria fina,
em direcção ao coração,
ao núcleo
Ele pede a sensação que as pontas lhes dão.
As flores roxas fecham-se à noite e as flores amarelas fecham-se à noite.
é no fundo das pessoas e não debaixo das botas
que se calcam os esqueletos das folhas de Outono -

VII.
os soldadinhos de chumbo que o pastor alemão deixou no chão
cobertos pelo manto branco da neve que continua ainda a cair
O frio foi todo morar para dentro, nos ossos, nas pontas dos dedos

Não é só a máquina que filtra, mas também os olhos
Deles nevam as lágrimas ou as estrelas
E elas voltam a subir para desenhar as nuvens do fundo
também da queda se faz subida:
Já não vertical – mas um espalhar-se contínuo, infiltra-se em todo o lado

Não sei de que ângulo a vi partir
Subia, subia
branca e branca era a montanha
Um moinho no cimo, um novelo dentro do moinho
Um cão a guardar o moinho – um pastor alemão
A cauda a abanar a assim que a viu, o riso foi todo para os homens
O resto da natureza ajuda a desenhá-lo
O que vi na tua cara – Mais Deus que qualquer outra coisa
Mais Criador do que tudo… o Branco cruza o Branco
Alguém me perguntou - De que falamos? De que falamos desde que nos conhecemos?
 Os faróis parecem dedos.

Nuno Brito

sábado, 21 de janeiro de 2012

Capital humano...


Capital humano…

“Tu, que me traças o perfil e me desenhas o fundo, ensina-me a cair nele, porque estás mais perdido do que eu”.
                                                                                                                                             Pastor Alemão

I.

Eram doze os irmãos do Renascimento português.
Onze deles: os irmãos do amolador romeno, estão à porta de hipermercados, cada um à frente de um supermercado do grupo Jerónimo Martins. Desceram a Europa. Ocuparam o lugar que antes pertencia aos lobos. Vão fumando os cigarros que o segurança lhes enrola. À noite juntam-se à volta da sopa e do pouco pão que há, o vinho fica todo para o pai que é doente e não pode trabalhar e quando não há vinho há problemas e os vizinhos chamam a polícia. Mas o amolador optou por outro caminho, outro canal de comunicação com a realidade portuguesa, um trabalho mais técnico. A de amolador de facas. Na Roménia tinha estudado música, mas o violoncelo já há muito vendido ocupava agora uma vitrina de uma loja de artigos em segunda mão em Constança. Levava o seu cão atrás e a bicicleta que foi  roubando às peças e construindo, só teve de esperar dois dias até encontrar o guiador que formava o conjunto. Foi trabalhar para o aeroporto e no amplo espaço vazio onde se cruzavam viajantes, o amolador oferecia os seus serviços. Era raro alguém ter uma faca, mas alguns iam com facas na mão, mas ainda mais raro era que  aqueles que as traziam, não as levassem suficientemente afiadas para os serviços que delas pretendiam (cortar o pão, o queijo – para as sandes da viagem, golpear um homem na barriga, descascar um ananás trazido da Madeira). Mas era compensador este trabalho sem remuneração, era especializado e nem só do local certo se faz o destino.

II.

À entrada de um aeroporto lusitano está o pastor alemão – os aeroportos lusitanos são os mais asseados, de longe os mais limpos e os melhores – São um espelho fiel da realidade do país e por isso o pastor alemão escolheu um destes (e não outro do continente europeu) para a sua partida. O pastor alemão encontrava-se cá fora, táxis, grupos a fumar à pressa, relógios nos pulsos.
Ele não tinha a certeza se ia começar uma viagem ou se tinha acabado de a fazer. Estava cá fora o herói desta narrativa, sem saber se entrava num avião ou se tinha acabado de chegar – Na verdade isso era um pormenor, porque a viagem é sempre contínua e nem sempre é feita de movimento mas de uma simples motivação do fundo. O pastor alemão olhou para o fundo, mas não havia fundo – Nenhuma rota traçada – Nenhum sinal de destino, apenas uma certa apatia feita de muitas pegadas, um delírio controlado que lhe deu vontade de beber. Na sua mala que abriu apenas havia búzios pequeninos e um livro verde e grande – Talvez a Montanha Mágica … Foi até aos quartos de banho, e ao seu lado um homem urinava – reparou que o urinol dele era de prata, o seu não. Era de cerâmica das Caldas – importada do interior para Lisboa onde outros estrangeiros a colocaram com todo o cuidado – O homem trazia uma mala – Na mala tinha búzios pequenos e dentro dos búzios novas histórias – Isso permitia-lhe construir um novo passado assim que chegasse ao Brasil – Construir uma vida nova – com um passado limpo – A “ficha limpa” era a sua obsessão, como se a a ficha fosse uma entidade paralela ao processo que corria no tribunal. Demoraria 10 anos a resolver e prescrevia – Mesmo assim era necessário ter todo o cuidado. Os aeroportos lusitanos são seguros para quem foge - têm urinóis de prata para quem os merece – O processo de branqueamento de capitais, o tráfico de relíquias de Cristo – sudários, dentinhos, rótulas recheadas de musgo – Era mais seguro ir para o Brasil que é grande, muito grande e depois as autoridades perdem o rasto e a ficha fica limpa, limpa e branca como um lençol.
O caso do pastor alemão não tinha paralelismo possível com o deste homem determinado e consciente do seu caminho, que já ia a meio (No Céu, dentro do avião da TAP a ler o Capital). O Pastor não. Não sabia do que fugia, nem se fugia, e muitas vezes fugimos sem saber que o estamos a fazer, é quase mecânico, tão mecânico como um espasmo, muitas vezes estamos realmente longe, realmente longe de tudo.

III.

Na actual conjuntura económica o grupo Jerónimo Martins trava uma luta enorme com uma cadeia de hipermercados rival, é então que um grande grupo de peritos em marketing é contratado e esse grupo reúne-se e decide-se por uma campanha promocional: vários cabazes de produtos a preços económicos – É feita uma lista de trinta cabazes de produtos, a preços muito baixos, um desses cabazes incluí 50 facas de cozinha, todas elas mal afiadas, mas a um preço compensador. O anúncio passa na televisão e o amolador romeno que estava num snack-bar ao lado do aeroporto vê-o e decide-se pela viagem até um Pingo Doce da capital; aí cria a sua pequena banca, a bicicleta, o som do aboio, com um pequeno organino chama os clientes, a música está recheada de um magnetismo animal que atrai os clientes para fora do supermercado, todos eles muito contentes com os seus cabazes optam pela primeira solução que lhes aparece: afiar as facas ali logo, e compensa porque o preço do cabaz com as 50 facas mal afiadas mais o preço que o amolador leva para as afiar não chega a 60% do preço dessas facas. E há esperança que um dia haja pão em casa e aí vão ser precisas facas para o cortar. O grupo Jerónimo Martins pensou nisso e começou a levar uma pequena percentagem ao amolador pelo serviço prestado, 40% do lucro do romeno era metido num pequeno saco e esvaziado nas seis registadoras do supermercado. Facilitava os trocos.

IV.

O pastor alemão lembra-se subitamente da sua namorada – Dá-lhe um baque tremendo esta recordação magnética – Puxa-o para o fundo – Várias cordas – Sente necessidade de uma ponta, uma ponta segura que o ligue aos canais da realidade, BAQUE, é violento o que uma memória-fêmea pode trazer, um tornado-menina a calçar-se, a percorrer todo o aeroporto lusitano de um susto maior que por o ser, não deixa de ser doce. Os seus olhos iluminam-se, o branco dos olhos desaparece. Foi todo para as nuvens que os aviões rasgam, numa dessas viagens podia já estar ele, mas está de certo o fugitivo da justiça portuguesa a pensar na ficha limpa que associa ao branco. Se calhar já chegou e começou uma vida nova, gere um vasto capital humano. O pastor alemão não tem ficha e nisso lembra-se, as fichas são caras, tudo tem o seu preço. E novamente a recordação da namorada e o sangue a correr todo ao coração onde uma aparição mariana lhe desperta todos os sentidos, lhe bombeia a música para as extremidades. E ele lembra-se – Não estou aqui pela viagem, mas para saber um pouco mais sobre a morte. E por isso vim. Não porque vou ou porque acabo de regressar. Mas para saber mais, o amolador de facas sabe muito sobre a morte e é com ele que devo falar.


V.

Procura-o, em todo o lado, e não há sinal dele, uma das empregadas da limpeza diz que não o vê há muito tempo mas que acha que ele emigrou para o Pingo Doce mais próximo porque é o que todos fazem a conselho dos nossos ministros. E o pastor corre com a sede toda nos olhos, avisam-no que o Douro subiu, há muitos anos, na verdade foi muito tempo a espécie de hibernação no aeroporto, trazia a mala, os búzios, sem passado dentro. O gondoleiro ajudou-o a subir para a barca, perto da estação de São Bento, depois seguiram pelos canais estreitos do Porto. Ali uma torre torta, gémea de uma outra torre torta, ali um barco ambulância a rasgar as águas, ali uma gôndola funerária a perder-se pelos canais, perto da Rua das Flores. E é estranho o ideal que os move, os braços seguros do gondoleiro, o remar forte que cria a rota onde nada se escreve. Não fica registo de nada, de nada. Mas há ainda a mala com os búzios sem passado e um desassossego tão português atravessa os canais, contorna a cidade e avisa o pastor alemão que é impossível ver de cima. O desconforto prende-se aos pulsos, serve de óculos, uma radical armação que filtra a realidade, são todos os ângulos dentro da mala, não convém abri-la. O som do organino que o romeno toca alerta o gondoleiro e o pastor que está para breve o conhecimento da morte. Ele sabe, como qualquer amolador, muitas coisas sobre ela. O som está cada vez mais alto. À porta do Pingo Doce muitas gôndolas paradas, e os homens saem com os seus cabazes. O amolador já lá não estava. Tinha reunido o dinheiro suficiente para o dia e agora os doze irmãos em casa, uma cegonha no lugar do pai - ela não bebia. Esperavam o pastor. A assembleia foi honesta, sincera com o seu próprio fundo, como só um animal paciente pode ser. Discutiu-se o capital humano, o inumano de tudo isto, estabeleceu-se um plano de fuga. Não passava pelo aeroporto. 

Nuno Brito

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Duas canções portuguesas


                                                           O mais humano sentimento são.
Márcia[1]

A meio caminho de um falso império
alguém diz: tu que tudo desatas, leva-me contigo
o teu corpo é feito de viagem – e repete que a pele não é uma fronteira
a sua cara é a de todos e enrola-se na paisagem
o mais honesto animal – caem-lhe do bico sementes de sésamo e girassol
cabe toda no fio de um cabelo:
a mais magnética das memórias do fundo
puxa-nos para baixo

O Cristo de Mantegna parece o Che morto –
as mantas de lã que estavam nos baús da CIA
 e nas arcas douradas dos Alexandrinos
esvaziadas das rendinhas, servem-lhes de última morada
O mesmo baptismo no Rio de Los Remédios,
o mais sujo da América Latina
Relíquias, granadas, missais,
pontas e molas que lhe servem de fundo
o musgo que cresce com ou sem ideais
Os mesmos e grandes olhinhos enrolam a paisagem
Derrubado o muro fica outro muro:
Invisível, Maior, Interior
De um lado o amor e o ódio - Do outro lado o amor e o ódio –
Em Fátima as pumas entram na capelinha das aparições
e estão entre os sacerdotes que as domesticam e as inserem no ritual
As pumas e as peregrinas seguem o cortejo das velinhas
Revitalizam o ritual
e as pumas e as peregrinas cantam
Sabendo que toda a frase é incompleta
feita para ser esquecida e reinventada,
estranho recheio este, um ideal,
se em nada ele toca, mas se tudo ele liga

A meio caminho de um falso império
 alguém diz:
Tu que tudo desatas prende-me novamente
Puxa-me para o fundo
Animal invencível: amor.

Ouço uma música portuguesa do século XXI que acaba assim:
A razão de ser de um poeta é.[2] [Fim da canção].


                                                      Nuno Brito




[1] Letra de música do álbum – Dá.
[2] Manuel Cruz – Foge Foge Bandido.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Pink Cigarette

                                          
                                                                       À Anezinha

                                                                      

Quero impregnar-me de gente, de paisagem portuguesa
 Luiz Pacheco


Nesta terra as mulheres crescem à sombra,
como os cogumelos, o musgo ou a razão,
em ponto de cruz a saudade vai sendo domesticada,
o mais honesto  e obediente animal  puxado por uma trela dourada
 feita de medo e outras coisas que ligam
o seu viso tem a expressão de todos
e é nestas caras quentinhas que descem ainda as lágrimas de Eros
mudando por dentro o nome do continente, outra cara, possível Começo
sem nome, sem coisa nenhuma, é às vezes o sal
que cai destas caras que tempera o prato, porque todo o sal não chega
para compensar o amargo que veio morar para a boca
cansada de saber que a linguagem não chega
porque eles fugiram, cada um em seu barco:
os filhos


Nesta terra as mulheres crescem à sombra
E têm sombra nos olhos, que o eco veio pintar
a lápis de cor por cima da paisagem humana
que se aloja debaixo de tudo o que a alma espelha,
veias, artérias, vasos, curvas fininhas que o tempo vai moldando
A anatomia rasgando o cosmos à escala humana, soprando-o para longe
Transbordo que a sede cria,
E enquanto as filhas vão ao poço, sol, risos, perfeita anatomia
As sombras crescem. Pequeninas rendinhas em baús
Terços, santinhos, livros de areia, um dente de leite
o fio de ouro a que está ligado,
e são de sombra os seus gestos porque quando se movem
são os braços de outros que ganham vida e retiram à paisagem
a natureza para pôr nela a arte, a civilização, a linguagem e a vitória
a mais alemã invenção,
e o seu sorriso é uma espécie de Deus
e quanto mais se enrola na paisagem mais deus é
Até parece que a razão dorme dentro delas,
e a razão dorme dentro delas –  o capitão do navio dá-lhes duas opções
Ou embarcam no barco do amor ou embarcam no barco do amor
Mas vão ter ainda de o Criar para o o atravessar, e partir as árvores, da madeira fazer o barco e calafetá-lo e dar-lhe um nome, e baptizá-lo, porque tudo aquilo em que se toca também se é
A sede vai-lhes toda para os olhos,
Urgente era que as sombras saíssem, como o fumo adocicado dos pulmões
Para dentro doutros pulmões.


Estas mulheres seriam modelos se as estátuas de sono não dormissem dentro delas
Se não fossem só alma,
O planeta chama-as do centro, as rugas vão rasgando a sua pele
Mas elas riem pouco,
E há poucos jovens
Estão todos no meio da Europa, Lisboa, Porto
Em Lisboa está a arte e no Porto está a arte
E no Couço está a arte e em todo o lado está a arte
Se não fossem só alma teriam visto mais vezes o mar
Não são filhas da revolução nem são filhas de ninguém
os seus filhos estão todos na taberna e são mais  velhos que elas
À noite estas sombras limpam com um guardanapo o beiço dos velhos
Porque desce-lhes azeite pelos queixos, e esses guardanapos podiam ser a página 100
de uma História Contemporânea, edição de luxo, a meio da investigação os eruditos
folheavam o guardanapo em Lisboa onde está a arte ou no Porto onde está a arte.

Exportámos marmelada para a Austrália ou para os armazéns de retalho da capital
que importa se toda a geografia é interior? - Enquanto dormem até de deus são mães
E entre as suas pernas as almofadas (penas de pato, segredos ou outros novelos).


As suas casas são feitas de queda, de verticais os muros ganham contornos,
a mais cara renda que são os dias a vir
formas breves, novas formas, dias que incham
 parecem areia soprada pelo fogo
com que se  faz o vidro e se embacia o espelho
 um dia também ele será inventado pelas mãos quentes de um artesão etrusco
antes mesmo de haver as moedas para o comprar
e que levarão os nossos filhos para longe,
Para o Canadá, Luxemburgo, Cantões,
nos navios, nas bagagens, nos aviões, todos com o seu preço
calafetado por dentro e por fora, impregnado na paisagem,
claves de sol pontilham a paisagem, por cima do trigo, a picotado:

As sombras destas mulheres são às vezes música, entram nos búzios
Não só por nos lembrarem que elas provêm do sol,
como tudo o que parte, mas por nos erguerem como o caule de um girassol
a sua voz é a sua seiva, está dentro da nossa espinha, é o nosso equilíbrio
uma balança onde se pesam as palavras que ficaram por dizer


Futura-te*
Também a rede quer dormir mas não é da natureza das redes dormirem
e a rede pede que lhe cortem as pontas, que tragam uma tesoura
E alguém corta as pontas, mas as pontas crescem com mais força, como uma estrela-do-mar, a tesoura é também informação e acrescenta-se à rede, tudo é soma nesta nova anatomia
Coisas que entram
Abre as portas, vem muita gente atrás e todos querem entrar em ti,
Entrar é ser gente, crescer é ser rede,
homens e redes nunca dormem verdadeiramente,


Em Manchester as fábricas enchem-se de música e no Couço
cresce o trigo dos latifúndios e todos estes homens precisam
de equadores ao mesmo tempo que precisam de pólos
E todas estas mulheres precisam um pouco mais de calor
Não só para deixarem de ser sombras
mas para saberem que de se descarrilarem se fazem novos caminhos
Nas carruagens vai este gado
Já não de ferro nem de vento são os caminhos em que é feita a viagem
Sem pontes de aço, betão ou de cimento, só ultrapassagem

No Portugal dos pequeninos os filhos que se vão perder em todos os continentes
das suas perdas novos filhos nascerão: Filhos da revolução. Qual?
Na natureza nada se apaga
Na natureza não existe amanhã
Mas o homem põe a manta da civilização por cima da natureza
e por baixo da manta fica o escuro e alguns animais sem expressão
às vezes fica também o riso,
a razão fica a sobrevoar a manta
e ficam mulheres debaixo da manta
danças primitivas, ecos, sonhos,
capitães de mar nenhum ficam também
debaixo da manta a razão de ser da literatura,
definir poesia é dar as mãos
Só a gente e paisagem não desce para baixo da manta da razão
E as mãos aquecem agora mais


Nuno Brito