escrevo-te esta carta para que a guardes
como um soneto de Camões ou uma poesia anónima e imprevista
uma interrogação, uma surpresa de quatro cantos, por debaixo
da porta
como se o teu nome fosse Leonor e habitasses uma aldeia
de flores nas árvores,
de sinos calados e pássaros de fim de tarde
de fontes e de cântaros de barro.
vou-te contar, começa assim:
a temperatura sobe intelectualmente e sobre a pele.
completa-se um círculo, forma-se uma espiral que amplifica
e sente-se um cântico de mel –
as cidades vestem-se de paredes abandonadas e de outras de
papel
de betão e de mármores, conforme os locais
de pedras de sal se junto do mar –
de ponteiros, de colarinhos brancos, de sedas, de sarjas, de
gangas
de camisas soltas, de cabelos minuciosos, presos num laço -
as cidades vestem-se de ideias quando te sentas, cruzas as pernas
e tomas o pequeno-almoço; uma torrada, um copo de sumo de
laranja
e um guardanapo de papel onde secas os lábios, o castanho
claro
de um copo de café com leite depois do click das migalhas
pela toalha, pelo joelho e pelo chão –
deste lado do universo, na metade incompleta
um copo de leite branco por vezes basta, sem cereais nem pão
por vezes basta, depois da rádio, smooth, de notícias ou clássica
depois de um éter antes do néctar, antes do negro do café –
deste lado, quando acordo, trago os olhos cobertos com a
noite sem galápagos,
habitada, no teu corpo, no teu sonho, esse um espelho mágico
que antecipo
nas muitas cartas que te escrevo -
já passou a febre do Domingo, escondeu-se o primeiro dia da
semana
ainda dorme a madrugada. as persianas não tem espaços, não
se ouvem os carros
a noite é plana, não sei se já o disse antes, mas não é notícia de jornal,
as últimas
que falam da Gécia, das crises mediáticas, do Rock in Rio
e de um neurocientista nos jogos olímpicos -
acordo extenuado, devo ter subido cinquenta vezes o Evereste
para te trazer um pedaço de neve, para que ele se derreta
e seja breve. como prova de aromas e de claridade, como
prova única e singular
e como prova cinquenta
vezes máxima –
acordo com os olhos empolados com as íris raiadas, uma luz
ao fundo
e uma dor de fogo , uma dor de brasas.
acordo com os rins impressionados de gestos
de ginásticas, de braços e de um corpo que se percorre, lado
a lado
e acordo guardando sempre palavras, aquelas que eram mais
as palavras sadias, de rubor, ainda gordas e ainda fortes de uma outra carta –
sabes, faço-te uma promessa, uma promessa que nunca acabem ,
as palavras
na forma simbólica de uma eternidade, mesmo mudas nas pontas
dos dedos
nas pontas dos lábios e dentro de ti para que ninguém veja –
sabes, e faço-te uma promessa, o cuidado com os teus ombros
e com a face esquerda do rosto quando a direita se apoia.
desculpa o meu corpo magro, as pontas dos meus ossos, esta
curva redonda
este meu corpo de pêlos, este meu cabelo, pequeno e cortado
desculpa tudo o que te incomode e abre os teus braços, o teu
diamante rosa
o tua cor de mulher, as tuas ondas perfeitas quando se
esquecem os segundos -
dá-me o milésimo contínuo e depois um descanso e depois um sossego
a quietude do vento –
desculpa-me de novo. depois destas palavras sinto a brisa e a
leveza, depois
depois da febre, depois da promessa e da temperatura Celsius,
quarenta –
continuaria pelas amarras distantes da noite, nadando
nadando na proximidade,
sempre nadando, e na esperança, nadando –
não temo as espumas, as ondas, a sua altura
mesmo de barca à vela ou de prancha –
e guardo continuamente, as outras palavras, as que ainda não
escrevo
e guardo
para que ganhem luz, uma luz de pólos brancos, sem a
separação do horizonte –
quando te escrevo esta carta para que a guardes
recebo a dádiva dos astros, dos mais longínquos e das nebulosas
da sua elipse e reenvio o seu pó mais tranquilo
a sua face mais íntima para que adormeças
devagarinho, e desculpa-me o diminuitivo
como uma criança num meio de um conto alisando as pálpebras
sentindo o sono, os preâmbulos do sonho –
descansa, meu anjo,
na vigésima, a vigésima ode da primavera
a vigésima que te adormece com o queixo no pescoço
e a mão como memória dos trevos, os de quatro folhas
na curva do umbigo. –
sleep, sleep well –