nas tuas mãos como um amuleto, uma sorte
como um espírito que voe por sobre o insossego
e que te conforte, e este forte é força.
vou-te contar, começa assim:
quando abro a torneira do lava-louças, aquele ruído
por vezes incomoda-me, quebra-me as ideias
como se o detergente actuasse sobre alguma gordura de forma
inexplicável.
parece de uma mente hermética, mas explico-te
o que quero dizer é que não consigo ordenar as letras
como quando tropeço nas escadas ou abro um guarda-chuva
ou percorro com os pés as ruas paradas ou respiro os pólens
de olhos, absortos e fechados, nas mensagens das flores –
quando lavo a louça as mãos enchem-se de espuma
e aproveito para calar os ouvidos num rodopio de braços
um momento zen, um esvaziar de ideias
uma massagem de
cerâmicas na procura dos resíduos
e tento, absolutamente, não partir os copos, os copos de que
gosto
meio cheios, meio vazios, sem néctares, antes de se tornarem limpos–
eu explico, não te aborreças e não me feches os ouvidos
porque o que te quero dizer começa quando aquela chuva na
torneira parou
e os pratos eram um brilho, os brancos como um sorriso
e os outros quase secos, em terapia –
quando aquela chuva de torneira parou, dizia
sentei-me na mesa, com
a tinta permanente e aquele bico de
versos -
tenho pena que não me vejas enquanto escrevo
a forma como coloco os meus redondos e os meus inclinados
no deslizar das letras, a caligrafia por espaços, como uma paragem suave
enquanto se movem os lábios e sorrio, e paro e recomeço
como uma carícia que coloco na ponta dos dedos, como se a
sentisse
como se chegasse perto de ti e em ti permanecesse como um recado
que escutasses parada, sem dizer nada, e uma aprovação
tácita
para que de novo voltasse
e para que não me perdesse, neste enleio em que te abraço –
escrevo, escrevo com esta pele nervosa e sensível
escrevo as chuvas e as mandrágoras, as ameixas antes de
nascer
as amendoeiras da melhor flor, as amoras
que me riscam de
branco os polegares
naquela dificuldade de espinhos
e me enviam a cor dos vinhos
ou a cor da paixão nas marcas das mãos –
as amoras são boas aos pares, com quatro mãos
para serem apanhadas uma a uma e construírem uma montanha
para depois ser descida pelos dois lados das colinas, uma a
uma
até que a planície das palmas surja como um sol
entre as linhas, uma
quiromancia adivinha
de vida, de cabeça e do coração –
e que a planície aconteça –
sabes, hoje senti-te intensamente como quem apanha uma
revolução
e a enche de cravos, apertando-a entre os braços
para que respires com suavidade, sossegada com o nariz
encostado e dentro
muito dentro a conduzir as aurículas, os ventrículos,
aqueles rios
aqueles rios vermelhos que recebem um cálice de oxigénio
para que se sintam bem, para que te sintas bem –
um abraço amarrado daqueles de nós repetidos e de ombros
encolhidos
para que permaneçam assim –
um abraço de fogo que nos deixa o rosto como um forno
onde se constrói um alimento, um crescimento, um fermento
impossível de conter –
mas explico-te, exactamente, como aconteceu
as tuas mãos abertas e os dedos seguravam as omoplatas
os meus braços eram
um círculo soldado como se abarcasse um oceano
e não pudesse deixar sair a água –
os meus braços em círculo sobre os teus medos, fazendo
sombra
e o meu nariz como um selvagem no meio dos teus cabelos
a sossegar os planetas e os icebergues como um cais de barcos perdidos
a saciar a tua insegurança das febres quando desfaleces e
perdes os sentidos –
quando te escrevo as faces fazem ginástica e alegram a alma
sorrio tantas vezes –
a sério, não duvides, se aqui estivesses verias –
quando te escrevo há uma duplicidade boa e tudo é uma brisa
os dias mesmo cobertos de chuva podem ser belos até com um
guarda-chuva partido
como se fosse ao mesmo tempo um acrobata num salto sobre um
espelho de água
ou um par de namorados, em Paris, na minha outra cidade
onde a língua rouca se embala ,no som de acordéons
de Piaf, Gilbert, Ferré e Aznavour, num Quartier Latin de
amour
She
She, a canção, e shhh… para que me cale
ainda com os braços agarrados com força, para que te sintas
segura
numa âncora, numa Atlântida, numa cidade surpreendente,
debaixo do mar –
faz de conta que adormeces, que coloco um braço por trás dos
teus joelhos
sem que acordes
que te levo no colo e te conduzo ao quarto, que te liberto das roupas
uma a uma
que te coloco de lado, que te levanto um pouco os joelhos
que não deixo que estremeças e que te afago a roupa
que te beijo as duas pálpebras, três vezes
e em dois beijos de cada vez –
sem que acordes, nem de ti nem dos sonhos –
escrevo-te esta carta, a nona, na surdez da noite
sem saber a quantos
quilómetros de distância
mas não é importante se tiver acontecido assim
e durmas profundamente, com os anjos de Paris
entre as telas dos pintores, entre os búzios das ondas
como estas cartas, que partem cheias de palavras, palavras
de amor
e que voltam para que possam partir de novo, como as ondas e
o areal-
dorme em sossego no teu ritmo perfeito, coloca as duas palmas simétricas
invertidas junto dos dois joelhos ou erguidas no rubor das faces
e dorme, dorme a noite toda –
beijo-te,
beijo-te muito,
boa noite –
josé ferreira