sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Este Livro foi escrito há muito tempo


Fotografia de Daniel no site Olhares


Era uma mulher que estava dentro de uma sala muito branca.

Ouviu: – Não fujas. Não esqueças.

Era uma mulher lívida de medo de não conseguir esquecer

*
À volta da sala, havia um pomar redondo que a envolvia de maçãs

avermelhadas, difusas. Ela estava lívida e suja, entre a castidade

e o remorso.

Ouviu: – Esquece o arrependimento. Fica.

*
Ao redor do pomar, existira um rio que secara nos últimos

anos. Se o seguisse, junto à margem, em linha curva e longa,

encontraria uma cidade desconhecida. Embora nenhuma cidade

seja desconhecida se soubermos onde está.

Ouviu: – Perder-te-ás na ausência

de água do rio.
*
Não havia um único espelho na sala. Ela não sabia o que era o

princípio e o fim. Desconhecia os conceitos de vida e de morte.

Nunca medira a sala, nem o pomar, nem o terror. Se desejasse,

abriria a porta.

Ouviu: – Assustar-te-á a existência

de dia e de noite
*
Sabia o seu nome. Chamava-se Eva. Nunca questionara. Porque

haveria de questionar um nome simples e breve? Desconhecia o

texto bíblico, e o simbolismo das palavras. Se se chamasse mar,

ou cálice, ou manhã, não o questionaria.



A Inexistência de Eva, de Filipa Leal, Deriva, 2009

Simon e o canário amarelo


Paul Klee "paisagem e pássaros amarelos" 1923

o disco sol girava no amarelo forte, um princípio tardio
depois da enublada manhã cinza.
corria um ar grave sobre os cravos brancos
sem a cor rubra de setenta e quatro.
as mãos alimentavam uma música de blues
na suspensão de teclas que estendiam as tonalidades
à companhia de uma voz rouca, de cordas gastas
no excesso de horas sem intervalo, horas repetidas.
os dedos de pontas quadradas reflectiam atrasos no tempo ternário
e suportavam o resumo de textos que se misturavam em indecisas palavras.
o peso insubmisso da inconsciência traçou o fim do caminho
a queda forte sobre a melodia, a cabeça, sobre as mãos lentas
num acorde de sustenidos, fá menor, Simon, sound of silence.
um ruído imenso. a queda de um granito denso, a cabeça.
desde a madrugada, antes mesmo do nascimento de uma luz baça
conseguira povoar de passos os círculos da sala
transformando as ideias num fumo vago, até ao cansaço
até ao sentar-se , exausto, no banco novo do piano
de mecânica sensível, precisa, na regulação das alturas.
recordou obsessivo todas as canções que sabia. doze horas.
doze horas seguidas, doze horas seguidas;
o inverso da sublimação, o estado sólido, o peso metálico de chumbo.
mais não. calava o cansaço nos olhos raiados de vermelho.
calava e calava-se sobre as teclas do piano

enquanto o canário compreensivo, no alto da gaiola, desafiava o gato negro
e assente sobre as patas, de ar convicto, incandescia o ar de uma outra melodia-