sábado, 26 de setembro de 2009

Campos de Morango

Retrato de um Amor



René Magritte " A grande guerra" 1964

Iluminas
a sombra dos meus dias
neste mundo que abrimos devagar
entre o corpo e a alma, sempre mais
secretos no abismo que os devora.

Maior do que este amor nada haverá
até ao fim dos tempos: os teus olhos
respondem ao destino, à sua eterna
graça que paira sobre as nossas vidas
agora a transbordarem numa única
razão feita de luz. a tua boca
inunda a minha língua com o sabor
de todos os sentidos que mergulham
a noite numa água sem retorno.

Para ti absorvo o hálito de um verão
em cada beijo cego, surdo e mudo
respirando de súbito em uníssono:
enigma revelado num só frémito,
insónia submersa que , em silêncio,
regressa pouco a pouco aos nossos braços
afogados na espuma do seu mar.

Perto do teu sorriso há uma fonte
embriagada e pura- meu amor,
dá-me esse coração, essa primeira
raiz de todo o fogo, esse relâmpago
onde cresce para nós a flor de um grito;
segreda-me às escuras mais um sonho
antes de adormeceres sobre o meu ombro.

Um quadro nítido





Enquanto traço o poema
um ruído deslizante como um silvo
o perigoso movimento das coisas
a separação de estruturas
o chão treme
a clarabóia ressoa
na abóbada de vidros em cores.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
A camisa descansa do aperto de seda.
As calças finas e cinzentas.
As lamas soltas e pulvurolentas
nos lábios das solas, caem lentamente.
Um roupão branco cinta o corpo nu.
Os pés como lapas refrescam na cerâmica
da mesma cor branca do roupão
como prolongamento de giz onde a borracha
acrescentou os pés e os tornozelos.
Um silêncio. Uma ausência.

Um quadro nítido.

Lembro-me dela. Os olhos na cor do mel.
O grande eucalipto, as folhas, o aroma.
Inspiro a ternura desse vento Sul.
Os quentes dias de Setembro
as areias lisas, limpas, disponíveis
a praia, a grande praia deserta.
Os marulhos íntimos na posição de "Leonardo"
os braços e pernas abertas, lado a lado
escutando no azul indigo o horário das aves
que passam na procura de alimento.
Eram mais belos os cabelos de sereia,lisos
sem caracóis, sem os rolos pendurados
33mm de películas, fotografias e mais
fotografias que sorriam devagar no quarto
sem luz, entre líquidos e sombras, antigas.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
Naquela os restos de roupa e esta agora
onde me sento e traço o poema linha a linha
sem rima, em cruz emergente e singular.
Aqui o lugar original, o real, o horizontal.
Ali a história aquilina, o redemoinho
o retiro inventivo, os estilhaços de vidro
caindo, caindo, caindo do alto prédio
que arranha os céus e abre os paraísos
caindo, caindo, caindo até aos granitos
em partículas ínfimas e poeiras partidas.

Um quadro nítido.

Lembro-me dela. O primeiro dia.
Aquele de um lenço que encolhia o rosto
e era findo de nó pequeno e orelhas de coelho.
A gabardine comprida, os botôes de quatro pontos
as botas altas, o calor das malhas
a fivela muito larga de um cinto.
O meu ar rídiculo pousado no seu caminho
como um fardo de chumbo, sem saída.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
As paredes deslizando de pés grandes
caminhando nos quatro sentidos
abatendo os quadros, encolhendo o espaço
querendo olhares de perigo.
Não! Não é possível!
Nada é mais que um destino!
Guardo a cor dos prados nos meus olhos
uma abóbada de vidros claros e coloridos
ímpares
e tenho amigos -