segunda-feira, 27 de junho de 2011
a carta, Brahms e um quadro
escutava as quatro baladas de Brahms
enquanto colocava um pouco mais de cor
na tela incompleta em frente da janela.
as mãos lentas mas precisas no rigor minucioso das linhas
preenchiam as quadrículas pré-estabelecidas,
fruto de um impulso indefinido e interior
talvez ditado por Atena ou uma outra deusa que desconhecia;
construía uma rainha vestida de ganga
de olhar penetrante e sapatilhas laranja.
três meses de distância -
naturalmente as chuvas permaneciam assim como a melancolia;
a carta, a carta a meio que havia escrito um destes dias -
procurava sossegar as dúvidas, construir o refúgio -
uma pintura -
e os dedos de Ashkenazi colados na música -
colocou mais azul e um pouco de branco;
um não excesso de céu porque sem nuvens só o deserto
um chapéu de palha, largo,gasto
uma trança de lado, índia, e um laço
percorrendo o ombro; esquerdo ou direito?
pensou um pouco -
nada de prédios, um lugar fora do tempo, diferente
um campo feito de silvas, arbustos , árvores -
o sol percorreu a esquina do telhado
tornou-se forte em frente da janela e deixou a sombra
primeiro no piano e depois ao longo do gato branco;
sentia-se cansado como se tivesse lavrado um campo
cavado um poço ou erguido em pequenas pedras de granito, um muro -
puxou uma cadeira, sentou-se pesado como um tronco
um braço sobre a mesa -
uma luz, uma pequena luz, oscilava lenta
como se do quadro um pêndulo
um, dois , um , dois, a hipnose -
uma aragem percorria os fios unidos do cabelo
e invadia no quarto os cantos da parede -
na intimidade do quadro as árvores tinham copas vermelhas
as folhas eram amarelas e as flores verdes -
as mãos, as mãos eram brancas -
o brilho nos olhos, flamejante -
os lábios falavam -
a carta, estava muito cansado, a carta -
a carta, Brahms, o quadro -
José ferreira 26 Junho 2011
Puma Bartolomeu Júpiter
Puma Bartolomeu Júpiter acaba de receber, summa cum laude, a maior ovação da sua vida. É uma torrente eléctrica de mãos na intermitência histérica e sublime dos aplausos, uma plateia antiga que ergue do nada um exército de rostos convencidíssimos e cauterizados, entre o rigor atrófico, a inveja fúnebre e a transpiração, e, como se isso não bastasse, o estertor das palmas das mãos de quem, finalmente, compreende, sofre um verdadeiro ataque de compreensão e fornece, por isso, ao escândalo protocolar, uma dose extra de cinismo e elegante mal-estar.
A tese de Júpiter é aparentemente muito simples: Júpiter provou que o amor dissolve-se no sexo, antes mesmo de lhe tocar. Partiu primeiro e até por intermédio das analogias da ingenuidade do composto fictício de Asimov, a “thiotiomoline”, composto este que se dissolveria em água antes mesmo de lhe tocar, e transferiu as propriedades da “thiotiomoline” para o amor e as da água para o sexo.
À forçosa semelhança de Asimov, Júpiter acreditava que o amor (100% solúvel no sexo) antecipava materialmente a sua solubilidade, porque, é ele que escreve, “há no composto raro do amor um registo espacio-temporal cindido, onde o átomo de carbono cria ligações químicas apaixonadamente reactivas à estabilidade física geral”.
O mundo não teria mudado sem esta tese de Júpiter. A sua invenção foi de tal forma sobrevalorizada, o nome de Júpiter foi tão ouvido e citado, dentro e fora da academia, que tudo se tornou previamente solúvel em tudo, tudo com o seu átomo de carbono instável, tudo com a sua face dupla e miserável, tudo com a sua insurreição temporal.
“Há um momento – pensa Júpiter, esmagado pelos aplausos – há um momento em que alguma coisa me leva a descrer profundamente na espécie humana. É como que se eu não fosse inteiramente solúvel nela e nos seus e nos meus argumentos armados viesse à tona o cadáver louco da sua antecipação.”
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