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domingo, 22 de janeiro de 2012
palavras de prefácio de um livro que se chama abraço
Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperança em todas as suas formas
José Luís Peixoto
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã - as palavras de José Luís Peixoto
Jonh William Waterhouse
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o príncipio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.
José Luís Peixoto
sábado, 21 de maio de 2011
Era o silêncio sobre a terra
Cindy Sherman
Era o silêncio sobre a terra. O mundo estava preparado. No seu lugar, cada objecto esperava o início. O sol esperava. O mundo estava preparado e suspenso.
Ele e ela caminhavam na rua. Pensavam em qualquer coisa que não era nem a terra, nem o sol, nem julho. A rua ficou deserta quando se aproximaram. Esqueceram aquilo em que pensavam. E o lugar das ideias que tinham ficou vazio de tudo menos daquele instante igual, a divisão de um instante, um instante espetado dentro de um instante, o mesmo ponto de tempo em que olharam um para o outro. Dentro daquele momento, como dentro de toda a eternidade, aquele foi um ponto de tempo feito de terra e de sol e de julho. E o tamanho da terra entrou pelos seus passos. E o sol entrou pelos seus olhares.
José Luís Peixoto, Antídoto, Aquilo que Invade os Homens
sexta-feira, 1 de abril de 2011
Porto
António Cruz
Então, eu comia o Porto. Ali à beira do Douro, abria a boca e enchia-a com o Porto. Pousava-o sobre a língua e mastigava-o com cuidado, para não causar estragos na Torre dos Clérigos, no Pavilhão Rosa Mota ou na estátua do leão e da águia da Boavista. Os portuenses haviam de acreditar que o céu da minha boca era um dia de outono nublado e continuariam a fazer a sua vida normal, voltariam para casa à hora certa do relógio de pulso e os autocarros continuariam a subir e a descer os Aliados sem perturbação. O momento de engolir o Porto seria sereno para a cidade e, para mim, seria o instante em que a memória do seu gosto se tornaria efectiva. O Porto não saberia a molho de francesinha, muito menos a tripas ou a vinho doce, teria um gosto composto por múltiplo, intenso e contraditório, composto por perífrase, hipérbole e oximoro. Eu fechava os olhos, claro, para sentir analiticamente o gosto do Porto. Passava bastante tempo assim, o silêncio tinha vagar para rodear-me.
Sentia todo o caminho do Porto através da minha garganta. Haveria de lembrar-me de goles de água no verão, o fresco da água a descer por mim como uma onda de temperança. Nesse túnel, o Porto, com os seus estádios, com o mercado do Bolhão, haveria de fluir imperturbável, mais lento e justo do que um rio grande, atravessado por pontes de ferro projectadas por Gustave Eiffel. Eu não haveria de me engasgar com o Porto, nem sequer me lembraria dessa possibilidade, nem sequer a consideraria. Seria capaz de respirar grandes volumes de ar fresco e limpo, seria capaz de respirar uma tarde inteira ou, mesmo uma primavera inteira, uma infância inteira. Para o Porto, esse caminho no interior da minha garganta seria menos do que uma brisa. Talvez alguns portuenses, os mais sensíveis à humidade, subissem a gola do casaco por instantes, talvez quisessem cobrir o pescoço, sentir tecido na pele fina do pescoço. O carros continuariam a parar nos sinais vermelhos e a avançar nos sinais verdes, continuariam a encaracolar-se pelos caminhos do silo de estacionamento ou, na rua, continuariam a seguir as indicações de um arrumador com barba, vestido com casacos sobrepostos.
O Porto chegava-me ao estômago à hora certa do entardecer. A tranquilidade seria inquestionável. Todos os poetas da cidade haveriam de ter um acesso súbito de inspiração. O meu estômago não precisava de se dilatar, barrigada, para ser capaz de acolher toda a cidade num plano horizontal, nivelado ao milímetro pelos desníveis habituais das suas ruas e avenidas. Quem estivesse a descer até à Foz, continuaria passo após passo; quem estivesse a subir até ao Marquês, continuaria passo após passo. As gaivotas planariam voltas perfeitas dentro do meu estômago e, assim, seriam capazes de puxar a noite. Chegaria devagar, ao ritmo intermitente das luzes que se começariam a acender na Baixa.
Por acaso simbólico, a absorção começaria precisamente à hora de jantar. As casas, o ar, as ruas, os viadutos, as montras, os jardins, as pessoas, os carros, as palavras, a pronúncia, os monumentos seriam gradualmente absorvidos pelas paredes do estômago. Atravessá-las-iam como uma sombra que fosse progredindo sobre a cidade, como uma maré de nuvens que fosse tapando a lua e as estrelas, uma a uma. Todos os elementos sólidos e não sólidos da cidade, mesmo os invisíveis, transformar-se-iam em carne, na minha carne, no meu sangue a correr pelas minhas veias e a atravessar-me desde a ponta dos dedos, os mesmos que carregam nestas teclas, até às pequenas artérias que irrigam os meus olhos, o meu cérebro. O Porto seria oxigenado pelos meus pulmões, passaria pelo meu ventrículo esquerdo e, depois, pela aorta. A zona das Antas seria uma extensão da minha pele, a Sé também. Quando eu tocasse alguma coisa, quando segurasse um livro ou ouvisse uma canção, só seria capaz de fazê-lo através do Porto. Na verdade, nem eu próprio seria capaz de distinguir-me do Porto. Seria capaz de dizer "o Porto", seria capaz de dizer "eu", mas apenas o faria por preguiça analítica, por mecanismo desonesto de esquematização. Essa mentira seria fácil de desmascarar em cada palavra dita, escrita, em cada silêncio, porque se eu articulasse um som mínimo, seria o Porto que o estaria a dizer; se eu escrevesse uma letra, seria o Porto a escolhê-la; se eu permanecesse quieto, a olhar para a distância e a pensar em imagens de tempos passados, seria o Porto que existiria no meu lugar, a lembrar-se de dias, passados neste ou noutro século.
José Luís Peixoto, in Jornal de Letras (Dezembro 2010)
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
Amor
David Hamilton
o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.
as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.
entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.
hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.
José Luís Peixoto "A Casa, A Escuridão"
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
A Perenidade das vírgula - JLP e Saramago
Fotografia retirada da internet
Procuro o que aprendi entre o que sei.
Conheci José Saramago em Outubro de 2001 no instante em que recebi o prémio com o seu nome. Ele era um homem mais alto do que imaginava. Eu tinha comprado um fato e uma gravata para a ocasião e, no mês anterior, tinha feito vinte e sete anos. Tirámos fotografias juntos, jantámos. As imagens que guardo desse dia misturam-se umas com as outras, confundo-me ao recordar esse dia. Sei que, mais tarde, à noite, ainda de fato, fiquei sentado no meu carro a tentar organizar na cabeça o que me tinha acontecido. Dois dias depois, estava na Feira do Livro de Frankfurt.
Ao longo destes nove anos, tive muita oportunidade de conversar com José Saramago. Encontrámo-nos em vários lugares do mundo, onde ele era sempre seguido por multidões, e encontrámo-nos em Portugal, em momentos escolhidos por ele. Em 2003, num programa de televisão em que estivemos juntos, para toda a gente ouvir, disse muito daquilo que, então, me dizia. No dia em que foram assinados os papéis da Fundação José Saramago, na sua casa de Lisboa, em 2007, só para eu ouvir, chamou-me à parte e disse-me palavras que não esqueço sobre aquilo que escrevia. Creio que fui capaz de, à minha maneira, aprender essas palavras.
Em Dezembro de 2008, recebi um convite para participar numa celebração do décimo aniversário do seu Prémio Nobel. Pediram-me que lesse um excerto da obra de Soeiro Pereira Gomes. Eu, numa homenagem ao José Saramago, a ler Soeiro Pereira Gomes, como poderia recusar? Escolhi uma parte do final de Esteiros. Depois, quando encontrámos tempo para conversar, disse-lhe: havemos de estar aqui, daqui a dez anos, a celebrar o vigésimo aniversário do Nobel. Ele, que tinha ultrapassado problemas graves de saúde, sorriu-me.
Para além destes encontros mais formais, os fatos que eu usava às vezes e que ele usava quase sempre, guardo outros. São meus. Os nossos encontros eram salpicados no tempo e, como vírgulas, pontuavam qualquer coisa. Passaram dez anos sobre a data em que publiquei o meu primeiro livro e agora, neste momento, parece-me que esses encontros com José Saramago foram pilares invisíveis desse tempo. Há os livros, os deles e os meus. Não falo nem de uns nem de outros porque esses não se perderam, continuam onde sempre estiveram. O que se perdeu foi um homem que respirava pensamentos. O que não se perdeu e não se perde é o que fomos capazes de aprender com ele, o que continuamos a saber.
José Luís Peixoto
(Publicado na revista Ler, em Julho de 2010)
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias
Di Chirico " A luva vermelha" 1958
o tempo, subitamente solto pelas ruas e pelos dias,
como a onda de uma tempestade a arrastar o mundo,
mostra-me o quanto te amei antes de te conhecer.
eram os teus olhos, labirintos de água, terra, fogo, ar,
que eu amava quando imaginava que amava. era a tua
a tua voz que dizia as palavras da vida. era o teu rosto.
era a tua pele. antes de te conhecer, existias nas árvores
e nos montes e nas nuvens que olhava ao fim da tarde.
muito longe de mim, dentro de mim, eras tu a claridade.
José Luís Peixoto
terça-feira, 19 de outubro de 2010
era adepta do ritmo seguro dos plátanos
“… era adepta do ritmo seguro dos plátanos, defendia a botânica. Primeiro com o pai, depois com o marido, gostava de passear pelos campos. Ao observar um sobreiro, reconhecia a sua própria natureza. Ao observar uma erva acabada de nascer, também; ao observar um pardal, também; um pavão, também; um girassol, também; um choupo, também. “ pág. 38
José Luís Peixoto “Livro” Quetzal
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Quando me cansei de mentir a mim próprio
Van Gogh "A cadeira de Gauguin" 1988
Quando me cansei de mentir a mim próprio,
comecei a escrever um livro de poesia.
Foi há duas horas que decidi, mas foi há muito
mais tempo que comecei a cansar-me. O cansaço
é uma pele gradual como o outono. Pausa.
Pousa devagar sobre a carne, como as folhas
sobre a terra, e atravessa-a até aos ossos,
como as folhas atravessam a terra e tocam
os mortos e tornam-se férteis a seu lado.
A cidade continua nas ruas, as raparigas riem,
mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever,
aquilo que virá com as estações futuras.
Há sempre esperança no fundo das avenidas.
Mas há poças de água nos passeios. Há frio,
há cansaço, há duas horas que decidi, outono.
E o meu corpo não quer mentir, e aquilo que
não é o meu corpo, o tempo, sabe que
tenho muitos poemas para escrever.
(José Luís Peixoto, in "Gaveta de Papéis"/ Edições Quasi)
sábado, 9 de outubro de 2010
a mulher mais bonita do mundo
Edward Hooper "Verão"
estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.
entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.
entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.
há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.
estás tão bonita hoje.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.
os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.
de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
Palavras para a minha mãe
Pablo Picasso "Mãe e filho" 1905
mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.
pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.
às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.
lê isto: mãe, amo-te.
eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei-de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás-de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.
José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"
sábado, 6 de dezembro de 2008
Um poema de que gosto
Voltando à questão das emoções e da forma de ganharem vida e transpirarem nos sentidos das palavras, deixo aqui um outro poema de José Luís Peixoto que me parece reflectir bem este facto. È um poema que reflete a perda do pai, a perda da mãe e no final, apesar de se tratar de um poema de saudade, a presença boa das memórias, do não-esquecimento.
Na hora de pôr a mesa, èramos cinco
na hora de pôr a mesa éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
Na hora de pôr a mesa, èramos cinco
na hora de pôr a mesa éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
sexta-feira, 3 de outubro de 2008
Um poema de que gosto
Fico admirado quando alguém,por acaso e quase sempre
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.
José Luís Peixoto
sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte
de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é ter medo e querer morrer.
José Luís Peixoto
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