quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quando me cansei de mentir a mim próprio


Van Gogh "A cadeira de Gauguin" 1988


Quando me cansei de mentir a mim próprio,
comecei a escrever um livro de poesia.

Foi há duas horas que decidi, mas foi há muito
mais tempo que comecei a cansar-me. O cansaço
é uma pele gradual como o outono. Pausa.

Pousa devagar sobre a carne, como as folhas
sobre a terra, e atravessa-a até aos ossos,
como as folhas atravessam a terra e tocam
os mortos e tornam-se férteis a seu lado.

A cidade continua nas ruas, as raparigas riem,
mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever,
aquilo que virá com as estações futuras.

Há sempre esperança no fundo das avenidas.
Mas há poças de água nos passeios. Há frio,
há cansaço, há duas horas que decidi, outono.

E o meu corpo não quer mentir, e aquilo que
não é o meu corpo, o tempo, sabe que
tenho muitos poemas para escrever.

(José Luís Peixoto, in "Gaveta de Papéis"/ Edições Quasi)

2 comentários:

João A. Quadrado disse...

[sentir na pele, no corrimão do corpo que se acontece na poesia, a prece desses versos finais, deste poema... advertências ao mundo de quem nunca se sabe demais]

um imenso abraço, Amigo José
e obrigado pela partilha deste Peixoto

Leonardo B.

josé ferreira disse...

Amigo Leonardo

José Luís Peixoto para além de magnífico escritor é um artista das palavras e um poeta do sensível

Abraço grande

José