terça-feira, 5 de abril de 2011

SENTIMENTO PRIMAVERIL (SYLVIA BEIRUTE)


















SENTIMENTO PRIMAVERIL


não sei o que é este sentimento
mas se o tentar dizer
sem pensar
e com as palavras que me vierem
à boca
será um dia de semana em voz alta
na cabeça de uma criança que não
distingue os sons,
a sua respiração que se desintegra
desde a sua infância velha. intemporal.
ou então um quarto de mim mesma
na adivinhação plena e simples
do teatro negro
antes de a acção começar a interrogar-se,
ou as flores que
parecem encobrir o ar das cinco da tarde.

não sei.
não sei o que é este sentimento
mas sei o que quer dizer.

Sylvia Beirute
inédito

Psicanálise da Escrita

Mesmo que fale de sol e de montanhas,
mesmo que cante os ínfimos espaços
ou as grandes verdades,
todo o poema
é sobre aquele
que sobre ele escreve

Quando os traços de si
parecem excluir-se das palavras,
mesmo assim é a si que se descreve
ao escrever-se no texto
que é excisão de si

Todo o poema
é um estado de paixão
cortejando o reflexo
daquele que o criou

Todo o poema
é sobre aquele
que sobre ele escreve
e assim se ama de forma desmedida,
à medida do verso onde a si se contempla
e em vertigem
se afoga

Ana Luísa Amaral
in Inversos - Poesia 1990-2010 - Inéditos

A onda

a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda ainda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda

Manoel Bandeira (Recife, 1886 - Rio de Janeiro, 1968)

Fragmentos V - Adorável ou o bom humor do desejo


Isabelle Adjiani

1. Num belo dia de Setembro saí para fazer compras. Paris estava adorável nessa manhã…, etc.»
Um ror de percepções acaba por formar bruscamente uma impressão deslumbrante (deslumbrar é, afinal, impedir de ver, de dizer):o estado do tempo, a estação, a luz, a avenida, o caminho, os parisienses, as compras, tudo isso concentrado no que já tem a vocação de recordar: um quadro, em suma, o hieróglifo da boa vontade (tal como Greuze o pintaria), o bom humor do desejo.
….
Tocado por uma impressão da noite, acordo enfraquecido por um pensamento feliz:
« X… estava adorável ontem à noite. » É uma recordação de quê? Do que os gregos chamavam o charis: «o brilho dos olhos, a beleza luminosa do corpo, o esplendor do ser desejável» ; talvez mesmo, como na charis antiga, acrescente a ideia - a esperança - de que o objecto amado se entregará ao meu desejo.

Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso" Ed. 70

Sim, quero dizer sim ao inacabado


Marc Chagall

Sim, quero dizer sim ao inacabado
que é o princípio de tudo
e o que não é ainda,
sim ao vazio coração que ignora
e que no silêncio preserva o sim do início,
sim a algumas palavras que são nuvens
brancas e deslizam amplas
sobre um mundo pacífico,
sim aos instrumentos simples
da cozinha,
sim à liberdade do fogo
que adensa o vigor da consciência,
sim à transparência que não exalta
mas decanta o vinho da presença,
sim à paixão que é um ajuste ao cimo
de uma profunda arquitectura íntima,
sim à pupila já madura
que se inebria das sombras das figuras,
sim à solidão quando ela é branca
e desenha a matéria cristalina,
sim às folhas que oscilam e brilham
ao subtil sopro de uma brisa,
sim ao espaço da casa, à sua música
entre o sono e a lucidez, que apazigua,
sim aos exercícios pacientes
em que a claridade pousa no vagar que a pensa,
sim à ternura no centro da clareira
tremendo como uma lâmpada sem sombra,
sim a ti, tempestade que iluminas
um país de ausência,
sim a ti, quase monótona, quase nula
mas que és como o vento insubornável,
sim a ti, que és nada e atravessas tudo
e és o sangue secreto do poema.



António Ramos Rosa