sexta-feira, 27 de novembro de 2009
o clip de prata
Kasimir Malevich "Pressentimento complexo: meia figura numa camisola amarela" 1932
Gostava de te mostrar aquela pintura
feita de colagens, tecidos e mais
reflecte no fundo de aguarela
aquele mar que chega à praia
transparente, perdendo espessura
deixando os fios de alga, as espumas
brancas e breves, se puras.
Sentado no capacete sem cabeça
inscrevo a marca oval
como desafio do subir das ondas
e em cada movimento de água e sal
as cores permeáveis no pincel
rodeando as colagens, os tecidos
e um clip de prata.
era sim aquela praia deserta
de muitas dunas e mãos despertas:
"não confortável"- disseste-"mas que importa?
se são macios os olhares e na pele
a cadência dos gestos, a descoberta
depois de ausências dos heróis de silêncios
sobreviventes de horas mortas"-disseste e mais
que me ocorre, que sabemos, que tememos
quando caiu a corda surreal, imagética
magnética de dois hinos, o coro de vozes
lá fora e lá fora nada e mais
quando de novo o mar sobe e cede o areal
um pouco de granulometria seca e suja
um pó mate que sobe enquanto ergo o capacete
sem cabeça.
Esmoreço. já não meço aquela onda
que inunda os pés, capilar e húmida
invade a parte mais clara do indigo
reescreve uma auréola, granulada, branca
uma auréola de saudade na escura ganga.
quase terminada- a pintura - tamanho A4
rodeada de claridade, de linhas de luz
e a distância, feita de ondas, de sombras.
não te disse do lenço, o lenço de renda
sim esse, de linho. estava perdido
encontrei-o há três dias, no casaco de lã
de ritmos e agulhas nas noites mornas
e motivos de vasos gregos ou de Creta;
um pequeno triângulo no bolso do lado
em três anos de viagem pendurado no cabide
de um único guarda-vestidos onde caem calças
escorregadias, desamparadas, teimosas
nos sinais, nas dobras. nem sequer ligo.
O lenço. o adormecido amuleto sem sentido.
três anos passados. "E que interessa?"
- dirias- " escreves, descreves, o que foi dito.
"poemisas" aéreo os lugares agora interditos.
nem sequer me sabes. um jogo de ironias."
dirias.
É verdade. tudo. mas mesmo assim
gostava de te mostrar a pintura
as colagens de tecido, o clip de prata
as cores de água, de mar salgado e mais
o lenço de renda, de linho e mais
a proximidade em crescendo que invade
o tamanho das ondas nos meus olhos
e saber -
Será que? -
O futuro? -
a carta rodeada de nomes
René Magritte "A corda sensível" 1960
Pensei em guardá-los dentro de uma carta
- os pensamentos, os versos
quando caem na primeira página
um nascer de águas nos ritmos brancos de flúor
seguidos de gavetas indecisas na cor de camisas
nas calças justas ou de vincos; não se usam já
bocas de sino presas nos joelhos largas no fundo.
guardá-los na primeira prateleira
de olhar distante enquanto aqueço o leite
ou meço a consistência da manteiga
no pão fresco ainda estaladiço.
alguém me fala do tempo: “parou a chuva
ficou o vento, os primeiros frios”
não compreendo no receio de perdê-los
- os versos, os pensamentos.
assim escondidos em pequenos gestos
são segredos e sei-os de serem ternos
de estar comigo como folhas de fetos
ainda verdes, a crescerem e serem filhos.
plenos de sentimento são companhia
bater de dedos no tampo da mesa
contar degraus um a um de granitos
saber quantos os pássaros na longitude dos postes
no correr dos fios ou estudar as nuvens
as suas formas e feitios, vagas de espumas
mousse de cortinas no vagar da velocidade
esticar de rede que descobre o lugar do céu
imaginário, etéreo.
o medo de os perder – os versos, os pensamentos
não os tornar a ver, não mais conversar com eles
tirá-los da testa, alisar-lhe os cabelos.
por isso pensei que é melhor guardá-los numa carta
e nessa carta, para que cheguem a casa, pôr um selo
e rodeá-lo de muitos nomes, muita gente dentro deles.
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