domingo, 18 de abril de 2010

a m a r e l o

amarelo
o salto do som dela
a pirueta aberta
que nos chega

atirado ao pôr-do-sol
em pincel longo
queima-se de vermelho
e regressa elástico
em papagaio

esticado ao azul
para lhe estudar o voo
enrola-se nela e rola
em gargalhada

brincar de luz
em palavra
o elo entre ele e ela
no amarelo

a morte é amarela

Metus Causa




Está exento de responsabilidad criminal
el que obre impulsado por miedo insuperable.

(Código Penal Español, Art 20.6, vigente desde 24 de mayo de 1996)

I

Enquanto escrevo não pára de soar um alarme. A sua primavera propedêutica e unânime enche-me de pânico e o pânico provoca-me alergia aos limites humanos. A noite, na acidez do barulho que cumpre agora o seu vigésimo mandato, divorcia-se lentamente do continente da escuridão. As luzes participam da festa que o alarme promoveu um pouco por toda a ausência da minha coragem.
Escrevo em legítima defesa, para que o alarme se afogue depressa e a noite regresse à sua ocupação peninsular. A noite é uma península. Não obstante, enquanto se ouve um alarme soar a noite é uma ilha ilegítima dentro do sua republica das bananas, o tempo sofre febres altíssimas, e do delírio do tempo nascem palavras e talismãs.

II

Escrevo porque alguém me ataca primeiro
com a mão incognoscível que eu tanto suspeito
haver para além das duas que temos ao final do cansaço
para suportar a novidade do que nos queima sem parar.

III

O alarme actua nos tímpanos de forma pouco inovadora, previsível até, mas não é essa a sua capital. O alarme interroga-nos a pele com beliscões que o tacto jura não compreender, os olhos são destruídos pelo seu desejo inimputável de hipersónica vingança, os cabelos caem todos com a elegância árida de um mau acontecimento global, e um surto de inocência reactiva vem recolocar o nosso ser outra vez no seu lugar, agora marcado com uma cruz a vermelho na quadrícula da vida ingrata por vocação, depois da desfocagem que o alarme proporcionou no tempo para compensar uma noite sem vantagens e um texto genologicamente refractário.

IV

A modéstia impede-me de pensar na androginia do medo quando tudo está demasiadamente iluminado. Só as crianças, que vivem na idade média do medo, estão apagadas pela exaustão. O medo convoca uma inocência à força naquele que o modela com os seus sentidos a um tempo excedentes e degolados. Entretanto, rasgam-se lagos de luz no sexo da combustão. Queimaduras ou lesões de último grau respondem melhor ao disparate, onde o grito como um ícone negro governa do alto do seu idioma alarmado e uma angústia surda e cega enriquece subitamente, graças à generosidade do princípio de realidade, às custas do coro das catecolaminas em perfusão.

V

O alarme parou de soar.

Ferrugem


Gerhard Richter


longe de mim rasgam-se os séculos,
as madrugadas desertas
na permanente alucinação dos objectos.

e há um fluxo de gestos
nos corredores ilusórios
de todas as metamorfoses.

a língua das fundas fotografias do mundo.

como se tudo se tratasse de sílabas de ferrugem
porque a música inesgotável de todos os clamores
desprende-se da tinta nocturna dos livros.

há uma luz selvagem que me percorre o nome
e que enlouquece lentamente
no interior húmido da memória.

o espaço da voz
expande-se até à idade irrespirável dos objectos.

sento-me a observar a praia
e a forma como a água tem medo de se aproximar demasiado
e pousar nas perguntas.

as pálpebras escorrem-me até aos nervos.

há um frio insuportável na passagem escorregadia das horas
no gesso de cada nome,
e um sítio febril onde a inteligência consegue deteriorar
todos os vestígios indecifráveis da vida.
cada nome, no interior imóvel do seu ventre,
no sangue fervido das noites,
transporta uma luz pesada,
impronunciável.

Sara F. Costa ( Publicada na Revista de Poesia "Cráse" Dir. Nuno Brito )