quinta-feira, 18 de agosto de 2011
não mudes nada
escrevo-te sobre o que escrevo.
não te assustes com a cor das letras.
há muitos anos só usava o azul e aderi inconscientemente
às calças de ganga, às riscas largas junto à praia.
as ondas dos segredos nas baías escondidas da Foz
aproximaram as mãos -
tudo mudou. o tempo fixa só aromas, a cor despida das algas
e já não falamos do que era bom;
um carioca de limão, nada de álcool e o gás na água
a rodela e o mar, na frente o horizonte descaindo
escondendo lentamente o dia -
e como era triste o fim do crepúsculo
o afastamento do pulso, o cessar do batimento cardíaco
e os lábios sem palavras, juntos -
escrevo-te sobre o que escrevo
hoje na tarde que se elimina.
uma cerveja fresca sobre a mesa, uma água vulgar nem sequer fria
e na frente a morada do sal e o sol quente
que alimenta a cor morena.
uma brisa sopra e invade as aberturas do chapéu de Florença.
abunda uma maquilhagem como disfarce
e há a necessidade de pintar as unhas com um traço branco
nunca de vermelho.
tantos anos e no entanto sou o mesmo
agora na melancolia do silêncio -
escrevo-te sobre o que escrevo
na esplanada, mesmo por cima da areia. as tábuas rangem
como um riso que se escapa, que passa e volta.
rostos e passos atrás das costas.
e o desejo de numa fracção extraordinária do imparável tempo
ser uma rocha rodeada de água, ar, sol e vento. não demora.
apenas um momento. a necessidade de ser sólido
sem a cor transcendente da emoção, do sentimento.
escrevo-te sobre o que escrevo
em Agosto. é verão, dizem. alguém um dia.
nada tem a ver com a natureza. uma maneira de dizer.
e em frente, mesmo em frente, junto à água, uma família.
a mãe de cabelo vermelho, comprido, ondulante.
a criança ao colo, dois anos, nos braços redondos
carrega a ingenuidade e um ligeiro choro de inocência.
atrás alguma turista na língua de Shakespeare. as tábuas rangem.
ao lado, a rapariga adolescente esquece os pais, não olha o mar
envia mensagens, as pupilas acendem, as palavras ardem
as mãos viajam rápidas, por sobre as teclas.
não há música -
no bordo do copo, laivos de espuma, seca seca.
o vidro limpo e transparente é uma miragem.
a luz é forte. o sol aquece as pernas. as lentes dos óculos escurecem.
alguém passa. a língua de Céline. sinto saudades de Paris;
as escadas junto ao rio, as pontes que levam à ilha.
escrevo-te sobre o que escrevo
sem o peso da culpa nas letras. a praia esvazia-se.
indiferentes, as ondas labutam a rotina e disputam a areia;
um pouco mais atrás, um pouco mais à frente, sucessivas
assim como as linhas desta carta, indetermináveis como o destino
apenas com a ordem de partida, e depois param ou avançam
aparecem escritas -
uma marca na página 54, alguém fecha o livro, de prosa
não de poesia
e dois pardais pequenos saltitam entre as aberturas das mesas.
procuram a possível migalha. nunca escreveram um poema -
escrevo-te sobre o que escrevo e sobre algumas coisas antigas.
o imutável. não mudes nada. Ne changes rien! e mesmo que quisesses era impossível. digo-te!
escreve se te apetece, ou não escrevas, mas sobrevive.
faz como o poeta, guardador de recantos e esquinas
que dentro do corpo falam e se afirmam
impondo a força das linhas, o correr das águas
em regatos, em rios
e por vezes em sossego, quase adormecido
em lagos límpidos -
e depois há os morangos e as veredas e os caminhos
e o céu, quase me esquecia
sabes, o céu à noite
é um banquete de estrelas -
José Ferreira 18 Agosto 2011
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