domingo, 24 de janeiro de 2016

DA SOLIDÃO DA LUZ



A casa em ruínas que vejo daqui
salta da janela, entra nesta sala,
mas não tem janelas que a façam brilhar,
as molduras rotas carregadas de ar,
as portas cobertas da hera mais pura,
as telhas brilhantes de ausência de cor,
e um buraco imenso onde o coração
devia luzir, se as ruínas não –

Morre devagar, como o universo,
galáxias e mares de estrelas e sóis:
política rara sem reis nem senhores,
mas tenso equilíbrio de forças sem luz.

Morrem devagar o tempo e os livros,
as estantes todas que habitam a sala:
pobre microcosmo do Bem e do Mal,
e do que nem isso, que é o mais vulgar.

Lembra-me, escarlate, só pela memória,
um livro maior de forças a sério:
o claro e o escuro de um igual terror

À casa em ruínas salvam-na essas asas
que vejo daqui, saltam da janela
e entram nesta sala. Não são as do anjo,
mas têm nas penas um sistema hidráulico
que as faz oscilar e rasar os ventos.

Olham-me, sombrias, dentro de um futuro
liso e sem ruínas – só de um chão mais puro
onde a casa houve, de janelas rasas
carregadas de ar. Só ele é comum
ao anjo e a elas, elas cheias dele,
ele, transportado e oscilando em paz.

Quando for sem ser? Só um limpo instante
de equalizador: ruínas e ventos,
janelas e anjo, heras e senhores
em mudas frequências, enxutos os sons?

E um poço vazio onde o coração
foi visto bater: partícula igual
ao pó de um cometa que um dia rompeu,
devorando o ar. E a casa em ruínas
abrandada em tempo, vogando no branco
de resplandecentes seis sílabas. Sós.


Ana Luísa Amaral, in Vozes, 2011

imagem retirada daqui