Paris emergia nos seus
telhados de lousa lisa.
as janelas de sótão abriam-se e era maio
o mês das flores.
aquele momento foi a porta
aberta e o lampião aceso
cedo, cedo, depois da
madrugada que juntou a noite
cedo e tarde, ouro nos
olhos e a palha espetada como agulhas
depois das costas tortas de
outras escritas, o relatório –
preferia falar das
vindimas, dos cachos maduros
da gravilha clara e
pequenina para que não haja pó nos caminhos
mas o relatório ergueu os números, a hora da conta
e não do conto, e não da
maresia –
penso nos teus cabelos e
nas minhas paredes
penso que não devia ser
assim esta distância e saí cedo
cedo na esperança de que o
sol fosse amigo –
os dias seguintes da primavera, quando se
aproxima o estio
são maiores, mais brancos,
menos vazios –
essa a razão, saí cedo mas
a barba tinha uma sombra
um piano baixo de alguns
graves quando a mão a percorria.
ninguém, nem ninguém havia
quando a barba erguia o som
um som de intensidades
únicas, o cansaço da noite inteira, o relatório
e a outra margem, uma memória contínua –
passei por essa rua. não esperava o vestido preto a sombrinha.
os dois sozinhos
a porta aberta, o lampião
aceso, a rua vazia –
não sei se soubeste se era
aquele rosto, naquela hora
porque o pé tremia; a
hesitação, a dúvida
o apoio da sombrinha, o
recuo, a rua vazia –
no minuto seguinte
um passo atrás na luz para
o mistério dos olhos perdidos
para o mistério das cartas
e dos segredos
um passo atrás, um crescer
sozinho
como um rio contrariado pelo
grande muro humano
por uma barragem no meio de
paisagens
por ser cedo e porque a
porta estava aberta
e porque provavelmente nada
se explica –
cedo, digo, porque mais
tarde dois minutos podia ser diferente
se, frente a frente, a
porta aberta, a rua vazia –
Paris podia ter acontecido
não fosse o atraso e a
paragem
aquele lampião impossível –
josé ferreira