Tive, na Faculdade, um professor escocês que, a conselho psiquiátrico, tricotava longas tiras de malha, quando tinha de ficar parado, isto é, enquanto vigiava frequências ou exames.
Fascinava-me a rapidez incrível com que tricotava e o ponto certinho, que quase transformava aquelas tiras de malha, lindíssimas, em obras de arte, de leveza e perfeição
Não sei fazer tricot mas, não resisto ao desafio de tentar tricotar uma longa tira de palavras., não sei ainda como mas, com certeza, nunca com a beleza da malha certinha, do meu professor escocês!
Neste meu tricot, as palavras são os meus novelos e a esferográfica e depois, as teclas do computador, as minhas agulhas.
As palavras são preciosas, como jóias antigas! Mas, não sei se vou saber tricotar com elas! O meu professor, aqui a meu lado, sorri e diz-me que sim...
Na esteira de Cesare Pavese, que escreveu a frase “ O mar parece azeite”, escrevi, um dia, que “O mar parece um oleado ondulante e pardo”. Não é aquele, nem este mar que quero tricotar! Não tenho novelos esverdinhados e viscosos como o azeite, nem tenho novelos pardos como um oleado!
Prefiro aquela massa líquida, imensa, translúcida, de um azul profundo, salpicado de luz, que não quero rematado por espuma mas, por gatinhos brancos, pequenas bolinhas de pêlo, que saltitam, rebolam e brincam contentes e libertos da dor de pensar, como o gato de Pessoa.
Estes gatinhos, só meus, não brincam na rua, brincam na areia, também, como se fosse na cama e, sem molhar as patinhas felpudas, são a mais bela cercadura viva, para esse mar do meu encantamento.
E, no meu vestido azul, enfeitado de veludo branco, que me fica tão bem, eu tricoto esse mar magnífico, com os meus novelos azuis, bordados a fio de prata e com os meus novelos brancos, cansados de tanta brincadeira! E, à medida que se desenrolam os novelos e as malhas se entrelaçam, enroscam-se, ternamente, no ar, a música deliciosa, sorridente de Mozart e o perfume, suave e macio, dos lírios do campo, da lavanda, da alfazema e do tomilho.
Mas, logo a seguir, desce a noite gelada e tempestuosa e o mar é, agora, um abismo imenso, negro, rasgado por relâmpagos que ziguezagueiam e se despedaçam nas vagas encapeladas, violentas que batem fortes, em furioso turbilhão, contra as rochas e açoitam, endoidecidas, a areia serena e branda. E, a música poderosa de Wagner, que traz consigo laivos de vermelho que lembram sangue e que lembram guerra, irrompe das profundezas desse abismo aterrador, com o cheiro a raiva, a vingança, a sal e a algas.
E eu tricoto esse mar com as palavras pesadas, assustadoras que são os meus novelos de escuridão e de pesadelo!
Foi muito penoso tricotar este mar, de vagas enormes, a ribombar, alterosas.
Enganei-me no ponto e deixei cair malhas, como lágrimas.
Estou cansada e encolho-me, com frio, no meu vestido escuro, com laivos vermelhos que lembram sangue e lembram guerra.
A noite tempestuosa esvai-se e o dia nasce...
E, na claridade límpida e serena da madrugada, o mar que vejo, é azul cristalino, com pinceladas de cor-de-rosa, salpicado de ouro e vai-se aproximando, devagarinho, timidamente, num marulhar feito de ternura e de amor, ao encontro da areia dourada, macia e húmida que o espera, também ela, témula e ansiosa. E o mar, num redemoinho de emoções, com o coração aos tropeços, o cor-de-rosa agora já o vermelho da paixão, espraia-se nela e, cobrindo-a com um rendilhado delicado de espuma, qual renda de bilros, abraça-a, beija-a e sussurra-lhe inconfessáveis segredos, envolvendo-a nas suas ondas mansas, para logo se fundirem num abraço de luz!
Depois, na languidez preguiçosa, apaziguada, do amor saciado, ele deixa-se ficar, a revoltear, junto dela, numa suave ondulação.
E, eu, no meu vestido azul claro com pinceladas de rosa e de vermelho, vaporoso e, quase translúcido, tricoto com os meus novelos macios, a fio de luz entrelaçados, este mar enamorado e a areia, sua amada!
Deles emergem, suavemente, a doçura de “Für Elise” de Beethoven, e o doce e envolvente perfume das rosas e do jasmim e o cheiro delicado e pensativo das gardénias.
O tempo muda e o mar reflecte o céu que, de repente, ficou cinzento e agora quase, mas quase, esverdinhado, viscoso e pardo. Este é o mar gélido, desolado dos náufragos, dos suicidas, do desespero e da loucura!
E, eu, no meu vestido cinzento, opaco e feio, tricoto este mar de infelicidade, de vidas violentamente interrompidas, esse mar onde repousam sonhos em pedaços, projectos destroçados, farrapos de Esperança perdida, com os meus novelos cinzentos, baços, e tristes e neles, agora, é Chopin que chora baixinho e cheira a velas e a flores murchas, apodrecidas! Como os afogados, como os sonhos desfeitos, como os projectos, para sempre, apenas projectos, como os farrapos de Esperança destroçada!
Esgotou-me, tricotar este mar a cheirar a morte e a podridão!
É tempo de voar, reencontrar a alegria de viver e de correr, ansiosamente, atrás do sonho de voltar ao ponto de partida!
Mas, chorosa, deparei-me com um mar de luto. Um mar estranho que me enjoou, que me provocou a agonia do vómito e dos suores frios, quando o cheiro horrendo da fome mais negra, da doença sem remédio, da miséria mais pungente, da guerra mais impiedosa, me atingiu, em cheio, como uma bola incandescente!
Não sei tricotar este mar! Não vou tricotar este mar! Não quero tricotar este mar!
Então, com o poder imenso, fantástico, quase divino das palavras feitas novelos de lã, modifico este mar e transformo-o numa toalha imensa, esplêndida, cheia de cor e de luz, com um remate de espuma que é, afinal, uma sumptuosa renda de Bruges, que estendo sobre uma mesa infinita, agora alegre e farta pois, sobre ela há inesgotáveis alimentos e remédios, uma imensa solidariedade e uma forte e terna fraternidade! Para que não haja fome, nem doença, nem miséria, nem guerra!
E, eu tricoto esta toalha maravilhosa com os meus novelos amarelos, vermelhos, azuis, cor de laranja e verdes e deles brota a música sensual da kizomba, e o som agreste e excitante, dos batuques, e deles, brotam também os cheiros fortes, tropicais, da vegetação exuberante, do abacaxi, do maracujá, da papaia, do coco e o cheiro a barro, consolado da terra vermelha, depois da chuva!
E, tricoto, ainda, com os meus novelos, agora, endiabrados, carregados de erotismo e desejo, os corpos negros, lascivos, suados, que se agitam indomáveis, em frémitos de prazer e de paixão, ao ritmo inquietante e frenético dos batuques!
As palavras, meus novelos feiticeiros, conferem-me, ainda, com o seu poder mágico, quase divino, a possibilidade singular de criar, só para mim, um espaço de maravilhosa fascinação, neste mar africano.
Não vou pôr no mar, em seu lugar, um relâmpago, como fez Luís Miguel Nava. Os relâmpagos são brilhantes, belos e poderosos mas, assustadores!
Também não vou pôr no mar, em seu lugar, um vasto campo de miosótis pequeninos e azuis, onde eu pudesse dançar, solta e descalça, ao som de uma melodia belíssima, fantástica, que o mar compusesse, só para mim, como fiz um dia!
Não! No lugar do mar, vou pôr um mangal, só meu, transbordante de encanto e de romantismo, com flamingos cor-de-rosa, só meus, acácias em flor, só minhas e uma cascata imensa, cristalina, cheia de luz e brilho, a brotar, deslumbrante, entrelaçada numa vegetação magnífica, vestida de verde de mil matizes, também, só minha!
Envolta em panos coloridos, artisticamente traçados sobre o meu corpo, modelando-o, tricoto, feliz, este mangal de fantasia, com os meus novelos que escorrem beleza e encanto, num delírio de cores e ofuscantes de luz e onde ressoam os batuques, a kizomba e, onde paira, provocante, o cheiro fresco mas, atrevido, das acácias em flor!
Já arrumei o meu texto tricotado.
O meu professor escocês já se despediu, e, como é um cavalheiro, limitou-se a sorrir e a dizer-me, docemente: “ My dear, don`t worry! It`s just a question of practice!”
Mas, lá no fundo, penso que lhe fez uma certa confusão, este meu tricot lento, desajeitado, com ponto incerto e malhas caídas! Como lágrimas...
Nota: Este texto é muito extenso mas, estou a "pendurá-lo" no
nosso blogue, com permissão da nossa querida Ana Luísa que não
sabia como era... enorme!
Desculpem e obrigada se tiverem paciência para me lerem.
Voltei a recordar a África do nosso encantamento, António Luiz!
Especialmente, para si, aí vai um mangal, a kizomba, os batuques e acácias em flor!
Maria Celeste Carvalho
terça-feira, 14 de abril de 2009
Eu já não sou eu
A partir do mote:
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
este é o poema conseguido:
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E me tiver perdido
Nas voltas que o tempo deu!
Procurei-me e não me achei...
Perdi-me no tempo voraz... ruim
Que, indiferente, passou...
A correr, veloz, por mim!
E a quem me perguntou
Não soube dizer quem sou...
Nem para onde devia ir.
Perguntei qual o caminho
De volta ao tempo...
Ao tempo em que eu era eu.
Mas, ninguém me quis ouvir...
Ninguém me viu...
Ninguém me respondeu.
O poema levou-me no tempo
Perdi-me... Não sei onde estou!
E... no turbilhão sem fim
Das voltas que... o tempo deu
Perdi-me... da poesia
Que me amarrava... a mim.
E, sem alma...cega...vazia
Nas voltas que o tempo deu...
Perdi-me... não sei quem sou
Perdi-me...eu já não sou eu!
Nota: Como foi Páscoa, ressuscitei!!
Nunca esqueci a nossa muito "prezada" Ana Luísa,
nem os queridos Amigos, com quem tive a alegria de
participar no Workshop Escrita criativa( Poesia )I
Abraço apertado,
Maria Celeste Carvalho
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
este é o poema conseguido:
O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E me tiver perdido
Nas voltas que o tempo deu!
Procurei-me e não me achei...
Perdi-me no tempo voraz... ruim
Que, indiferente, passou...
A correr, veloz, por mim!
E a quem me perguntou
Não soube dizer quem sou...
Nem para onde devia ir.
Perguntei qual o caminho
De volta ao tempo...
Ao tempo em que eu era eu.
Mas, ninguém me quis ouvir...
Ninguém me viu...
Ninguém me respondeu.
O poema levou-me no tempo
Perdi-me... Não sei onde estou!
E... no turbilhão sem fim
Das voltas que... o tempo deu
Perdi-me... da poesia
Que me amarrava... a mim.
E, sem alma...cega...vazia
Nas voltas que o tempo deu...
Perdi-me... não sei quem sou
Perdi-me...eu já não sou eu!
Nota: Como foi Páscoa, ressuscitei!!
Nunca esqueci a nossa muito "prezada" Ana Luísa,
nem os queridos Amigos, com quem tive a alegria de
participar no Workshop Escrita criativa( Poesia )I
Abraço apertado,
Maria Celeste Carvalho
Porcelana da China
A porcelana fina torna-se translúcida
na chávena oriental de cor ilíquida.
O eclipse de contraluz deslinda o invisível
rosto comprimido fundo de laterais decorativos
onde surgem precisas fortes as imemoriais tintas
e a leveza autêntica de porcelana da China.
É rodeio esta prosa este desmontar de restos
de caramelo um encosto aspirante de silêncio
após a transferência no fumo de ervas presas
condensados vapores inéditos das essências.
Se se teima outra vez a posição inicial
e se eleva a delicada asa junto ao lábio
de novo o intermédio a pausa o sabor
que passa além da linha de um olhar e
pousa no incómodo de não ter mais
onde colocar os dedos a não ser ressaltos
de superfície ainda quente ainda morna
agora fria.
No previsto fim de nascente no bule é então
o momento que se inicia de frases incompletas
que exigem companhia esclarecimento e ainda
uma outra harmonia tangida na distância
de memórias que aproximam esta outra aquela
de girândola sem intervalos como onda
milidispersa de gotas na rótulas dos joelhos
ou cedendo sem destino areias lisas e castelos
difusos entre espumas.
Qual a razão do rosto na ideia milenar?
Talvez o entendimento uma irmandade cheia
lunar que se estende no rubor ténue
nas asas das porcelanas voar de aromas
no ilustrado quadro do diálogo de faces
efectiva sensitiva translúcida sintonia.
na chávena oriental de cor ilíquida.
O eclipse de contraluz deslinda o invisível
rosto comprimido fundo de laterais decorativos
onde surgem precisas fortes as imemoriais tintas
e a leveza autêntica de porcelana da China.
É rodeio esta prosa este desmontar de restos
de caramelo um encosto aspirante de silêncio
após a transferência no fumo de ervas presas
condensados vapores inéditos das essências.
Se se teima outra vez a posição inicial
e se eleva a delicada asa junto ao lábio
de novo o intermédio a pausa o sabor
que passa além da linha de um olhar e
pousa no incómodo de não ter mais
onde colocar os dedos a não ser ressaltos
de superfície ainda quente ainda morna
agora fria.
No previsto fim de nascente no bule é então
o momento que se inicia de frases incompletas
que exigem companhia esclarecimento e ainda
uma outra harmonia tangida na distância
de memórias que aproximam esta outra aquela
de girândola sem intervalos como onda
milidispersa de gotas na rótulas dos joelhos
ou cedendo sem destino areias lisas e castelos
difusos entre espumas.
Qual a razão do rosto na ideia milenar?
Talvez o entendimento uma irmandade cheia
lunar que se estende no rubor ténue
nas asas das porcelanas voar de aromas
no ilustrado quadro do diálogo de faces
efectiva sensitiva translúcida sintonia.
O Sonho
O sonho desarruma
tudo, muda
as formas do mundo altera a ordem dos
assuntos é difícil contá-lo
quando por fim saímos
e acordar
se torna alívio chegamos a ser nele
assassinos faz crescer angústia
do amor perdido
evitamos a
custo precipícios desalinho
de imagens como um filme de espírito
mas afinal a vida também vive
na dor e na ânsia pelo que não existe
Gastão da Cruz
Prémio Correntes de Escrita Póvoa 2009
tudo, muda
as formas do mundo altera a ordem dos
assuntos é difícil contá-lo
quando por fim saímos
e acordar
se torna alívio chegamos a ser nele
assassinos faz crescer angústia
do amor perdido
evitamos a
custo precipícios desalinho
de imagens como um filme de espírito
mas afinal a vida também vive
na dor e na ânsia pelo que não existe
Gastão da Cruz
Prémio Correntes de Escrita Póvoa 2009
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