quinta-feira, 22 de julho de 2010

Expiação




dói-me o teu aparelho longínquo,
dói-me o irresistível artesanato
da distância,
dói-me o irrespirável teatro
ortopédico da salvação,
dói-me o choque frontal do amor
com a sua tremenda falta de humildade,
dói-me a anestesia do teu lugar vago,
dói-me a dança esquelética da minha dissimulação,
dói-me a propaganda póstuma das tuas mãos,

quando aplaudem a castração do herói em palco,
quando atrasam a pesquisa para a cura da neoplasia
da eternidade,
quando investem todas as suas economias e auroras
numa dimensão mais intolerante,
quando massajam a minha culpa ciclópica
e maltratam o meu endereço final.

dói-me, sobretudo, a grande subjectividade da dor,
a arquitectura desmaiada da esperança,
a longa travessia do rio líquor a nado,
a falsa assinatura dos seus contratos nervosos
com o imperdoável,
e o preço que eu pago
pela minha dor elegante
nas lojas mais prestigiadas da cidade
arrasada do amor.

(EN)GULA



(Es)passava passos ausentes, entre travos

e três passas.

Traziam-me espaços vazios e vontades não coerentes.

Para as desgraças,

a proporção em açúcares e colheres

de coisas quentes.


Entrei, sem alma nem pertences,

Contando pences e cascalhos de existências.

Não fosse eu segura e ciente

de sanidades e coisas semelhantes

certamente cederia à algibeira,

que em claros uivos e suspiros evidentes

chamava quem via com olhos

Mas decidia com dentes.

E que remédio teria

com tamanha gulodice?

Se as coberturas me abordam em descarada tolice?

Se os pastéis, as natas do céu

(Ámen p'ra quem as comeu)

Se os suspiros, os mil folhas,

(que para mil se vão tão cedo),

se desfazem à dentada

Num engano ledo e cego

que apetites

não deixam durar nada?

E sem mais que cortesias

"Boas noites", ou"Bons dias"

"Eram dois éclaires e duas fatias."

Mas que falta de postura,

Olhos mais do que barriga,

Eu que sem mais devaneios

Dou uma trinca mal medida,

e entre açúcar na camisa

e compota nos dois seios,

abocanho o meu pecado.

"Dizem que moras ao lado"

- entre trincas

e mais um bocado.

E sem mais do que migalhas,

e memórias de doçuras,

Se dão cabo de decências

E de linhas, e posturas.

Que enfado,

Sabe tão bem o pecado.

E Glória ao Pai, ao Filho

e ao Espírito Santo

E já nem rezo mais que comi tanto.

As estrelas de Modena



Lawrence Alma-Tadema (1836-1912)

um sinal de barco sem âncora que partiu sem porto.
um Kayak unilateral nos rápidos sem remos
sem a condição de evitar o impacto
perante as cataratas;
é necessário controlar a ansiedade.

os tambores rufam a banda toca
a cabeça no lugar estranho
os pés flutuam em piso branco.

as artérias de válvulas pulsantes ruborizadas.
confetis de carnaval e sopro de fitas redondas
ou em filas sucessivas e grandes de um chapéu mexicano.
Veneza no horizonte.

ao menor intervalo o gelo coloca no primeiro plano
a reunião científica, um artigo opinativo de jornal
a conversa síria sobre algum conflito radical;
é verdade
os segundos passam o mundo arrasta exige sociedade
depois passa depois passa depois passa.

na sequência de uma possibilidade
necessário apurar a consistência:
se há sinos no espaço luas crescidas
a intensidade de pensamento de quanto em quanto tempo
se rola e se enrola nos rolos do cinema
a mística a preto e branco de um filme antigo uma guerra
em Casablanca nas ruas de Paris os jardins de Luxemburgo
esplendor na relva em Nova Iorque: o enamoramento
não passa de uma possibilidade
não se deve procurar a exaustão supletiva dos cenários
é preciso saltar para os bastidores, descobrir o reservado
a singularidade de ter mãos como almofadas
de penas leves fora do lugar.

reflete-se o sol em lentes progressivas ao fim de um dia
e cria-se a faúlha e o incêndio
sente-se o medo e sem ele não faz sentido
quase uma afasia uma gaguez sem metro
( cair o espelho quebrar o encanto)
o receio de o próximo não ser ainda
o dia de pedras luzentes
- e a noite sem as estrelas de Modena.

já faz uma semana e vem uma vez mais
bem depressa a madrugada
o fim da noite
e o dia de um outro dia
tudo não passa uma possibildade
exagerada exigência naturalmente
a agenda classifica e lembra de novo a rotina
a sequência dos fios de marionete
um Pinóquio de Florença.

tanto tempo uma semana
uma semana depois do reencontro
porque não chega num sussurro de fada
a mensagem sem receio de horizonte
a revolução de uma nova caminhada:

às dez e trinta aguarda aguarda na Suiça do Chiado
não é demasiado cedo não é demasiado tarde
e os doces pela manhã não são pecado -

A árvore dos Pecados

ramdaq photography
O vento sem som.
Suave.
Sem ira, sem pressa, sem destino,
sem desfolhar o verde luxuriante da árvore.
Desliza, entre as folhas preguiçosas.

Suspensa num quase-que-cai indeciso,
uma maça vermelha, roliça e gulosa,
imagina-se Compal Ligth, em calda caseira ou saladas gourmet.
- Ah!... Quem me dera ser pêssego!
- Ah! … to be apple ou pomme de terre !
- Ah ! Que inveja!


Pelo tronco - majestoso, soberbo de si,
correm - no carreiro obediente,
formigas avarentas.
Fabricam carreiras e riquezas urgentes:
grão a grão, grão a grão, grão a grão
Muito pão.

No sopé,
ensonada, sob sete pecados mortais
Alice sonha chocolate e rimas em francês: ma mère, la mer, l'amour …