quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Soneto a uma Vénus de Tiziano


O seu cabelo preto parece cantar,
seus membros cintilam brancos como natas,
como se o gracioso corpo adivinhasse
que era a doce soma de graciosos sons.

Está deitada na sua longura implorante,
apoiada num género de otomano,
como se fosse um estandarte alto e delgado,
amavelmente inclinado para os homens.

Um ramo de violetas sorri-lhe nas mãos,
endereçando ao observador odores,
a serva ajoelhando-se perante o altar.

Ó, olhar de novo aqueles cabelos
e ainda uma vez mais a magnífica
imagem humilde do seu doce lombo.

Robert Walser, em histórias de imagens, Cotovia (2011)

Castanhas e chocolate




Estava a comer castanhas cobertas
De chocolate. Devorava-os, feliz,
As castanhas e o chocolate, e era
Muito bom. Sem cascas, as castanhas,
Sem prata, o chocolate, comem-se
Facilmente – pensava eu. E era assim.
O gosto delas e o gosto a chocolate.

Uma voz – a da minha mãe – soou alta
E ameaçadora: – Vais ficar com dores
De barriga e os dentes podres, guloso!

Encolhi-me como pude – as castanhas
De chocolate na boca – para não ouvir,
Pelo menos muito bem, aquelas palavras
E senti por momentos os dentes podres
A cair e muitas, muitas cólicas intestinais.

Uma luz habitual de todas as manhãs
Beijou-me os olhos ensonados. Terna.
Espreguicei-me e surgiram-me uns lábios
Pé-ante-pé e sorridentes na testa morna
Ainda adormecida. Fiquei contente. Sorri.

A minha mãe prometeu-me um chocolate
Se eu lavasse os dentes depois de o comer.
Não pude esperar para me deliciar.

Dormira comigo um sonho generoso e cruel.
A minha Mãe já morreu. É mentira, sim, é
Mentira. Trago-a doce sempre no coração –
2011.11.09
José Almeida da Silva

Página de diário ou quase




– Oito de setembro.
Nunca visto em S. Félix da Marinha.
Na sala da Teresa, entrou solícito o Mar –
Trazia Vozes – cheio de poemas, e vozes
Muitas vozes na rebentação das ondas – FA4 –
Algumas exibiam Um mar com cidade dentro,
Encrespada espuma nos rochedos, revolta e branca,
E houve piquenique na maresia sob o olhar subtil
Do Preto e do Branco, olfato estimulado
Pelo generoso odor a mar e a guloseimas na mesa postas

As ondas deram voz às palavras do horizonte que no poema
Era suave linha branca – Abraço ténue do céu e do mar
No nosso olhar. Di-lo a nossa memória de era uma vez…
… a nossa infância. Dizem-no os habitantes do mar que nos seduzem
E ergue-se, bela, a memória da Menina do Mar a correr
Para nós trazendo nas mãos acesas corais e cavalos-marinhos
E a evocar-nos que somos adultos e sempre meninos;
Atravessada pela paixão, outra voz acendeu um longo eco
Da alentejana voz de Florbela: “Queria amar-te como o mar/

Numa entrega de perpétua maresia”, e todos vibraram muito
De alegria. Depois chegou do mar dolorosa voz e as cores assim
Lá longe diluídas, para a seguir serem azul só no olhar como o
Amor ao sentir. De repente pula um peixe encarnado mas um
Caranguejo, coitado, pincelou-o. Fotografou este insólito momento,
Um fotógrafo ambulante e era janeiro. Se fosse junho, e o calor viesse,
Os meninos na praia, ou na sala da Teresa se o mar voltasse, assustariam
O caranguejo que começaria andar para o lado, impedindo-o de ir contra
O peixe encarnado. Por falar em fotógrafo, lembro-me de uma voz
Encantada que contava a história de um fotógrafo – O homem
De Imilchil que herdara uma máquina e que tinha um fogo ateado
Na alma: “Ver uma fotografia do mar”. Há poetas que inventam
Estes sonhos e têm máquina fotográfica e fotografam os sonhos.
São “pele e outros temperos”. As saudades que tenho da Inês. Será
Que o Natal trará a luz e que vai amanhecer “sem mais salina”?

De novo o mar a entrar pela varanda. E sorrateiros os fumadores
Aproveitaram essa nesga de azul por onde entrara o Mar. E uma
Voz de palavras e dor oculta no peito soltou um dó menor no ar de luz:
“Era minha dor o mar / (…) /Pena azul, revolta e terna.” Eterno, este
Vaivém: “O meu mar são os teus olhos / Onde me perco e me alcanço /
(…) // (…) azul é a cor do meu amor”. E isto é dor? E é prazer e alegria?
Muitas vezes, o revisita a elegia. E revisitou a casa teresina, eu bem na vi,
Sophia saindo grácil dos seus livros, ali pousados, na mesinha alta. Por ali,
Vivera quando menina saudando o mar da sua infância todas as manhãs e
Aos fins da tarde, e ali se encontrava com o Búzio – um velho amigo sábio.

“O mar intacto” procurou intacto lugar. Há sempre uma primeira vez
Para olhar o nunca visto. Cheguei-me à vidraça que dava para o mar –
“Olho os navios que ainda não chegaram”. E houve comemoração:
“São uma gota de água estes três anos”, e VOZES lidas com o coração.

Apagou-se a luz, já era tarde, o mar recolhera ao Mar, e só a Teresa
Estava em casa. E os outros? Somente a viagem e um calor no coração –
2012.01.06
José Almeida da Silva