quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Poema em linha recta

Realmente quem, aos dezassete anos, declama e performa assim poesia, ainda para mais do Álvaro de Campos, merece destaque (Obrigado ao José Almeida que me deu a conhecer o jovem talento).

não sei porque saíste


Edouard Boubat


disse
faltavam ainda milhares de gestos
não sei porque saíste da frente do espelho.

- pousou os óculos e acendeu um isqueiro
naquele jeito religioso de um nirvana no meio de um concerto
como era possível ser o único no meio da melodia -

não sei porque escondeste esse olhar de sereia
de afundar navios, a pique, agora, quando
desaprendi a sobrevivência nua de ser ilha.

- foi obrigado a pousar a caneta inclinada de bolina
enquanto o gato lhe subia o colo
arredondava o dorso numa curva da espinha
e no olhar suplicante de uma festa
acendia o seu modo de trabalhar afectos
e exigia a repetição contínua
pelo meio da cabeça, esticando as orelhas -

não sei porque recusaste o devaneio das luas escondidas
o jogo erotizado das cortinas.

- o gato pequeno mesclado de tigre
miou o desespero de poder viajar o ombro
e descer de novo ao colo na tremura dolente -

como conclusão que não surpreende
o poeta desistiu provisoriamente do poema
- enquanto insaciável afagava o pêlo -
e o gato de olhar intermitente
simbolizou ao mesmo tempo o desejo e o recalcamento
enviando sinais de fogo a cada novo movimento
da pele ao deslizar os dedos -

José Ferreira 3Fev2011