quarta-feira, 13 de julho de 2011

Nós todos e cada um de nós




Nota: o texto que se apresenta de José de Almada Negreiros reproduz-se na íntegra como foi publicado em Lisboa no ano de 1924

- Sabem quantas pessoas tem havido desde o principio do mundo até hoje?
- Duas. Desde o principio do mundo até hoje não houve mais do que duas pessoas: uma chama-se humanidade e a outra individuo. Um a é toda a gente e a outra é uma pessoa só.
Um dia perguntaram a Democrito como tinha chegado a saber tantas coisas.
Respondeu: Perguntei tudo a toda a gente.
Bastantes seculos mais tarde Goethe confessou por sua propria bocca que "se lhe tirassem tudo quanto pertencia aos outros, ficava com muito pouco ou nada".
Por aqui se vê que cada um é o resultado de toda a gente; o que de maneira nenhuma quererá dizer que seja o bastante ter cada qual conhecido toda a gente para que resulte immediatamente um Democrito ou um Goethe! Precisamente o difficil não é chegar aos Grandes, mas a si proprio!...Ser o proprio é uma arte onde existe toda a gente e em que raros assignaram a obra-prima.
O que está fora de duvida é que cada um deve ser como toda a gente, mas de maneira que a humanidade tenha effectivamente um bello representante em cada um de Nós.

"Pierrot e Arlequim", personagens de Theatro. Ensaios e dialogo seguidos de commentarios por José ALMADA NEGREIROS com um autoretrato dois figurinos um desenho allusivo e o motivo de capa

Portugalia Editora 78, rua do Carmo, 75 Lisbôa Nov. XXIV

XLVVIII


De um filme de Godard


Dois amantes felizes fazem um só pão,
uma só gota de lua sob a erva,
deixam andando duas sombras que se juntam,
deixam um único sol vazio numa cama.

De todas as verdades escolheram o dia:
não se ataram com fios, mas com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A alegria é uma torre transparente.

O ar, o vinho, vão com os dois amantes,
a noite dá-lhe as suas pétalas felizes,
têm direito aos cravos que apareçam.

Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Pablo Neruda " Antologia Breve" Dom Quixote 1977