sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

espero-te
plantada no rochedo mais alto
farol solitário
derramo guia luz
fios em prata escorrem
meu corpo de pedra e sal
prolongamento distante
teia tecida
guardiã sem nome
não tens como te perderes
na demanda de me encontrares


claraoliveira12.01.20

história antiga feita hoje

.
era uma vez
o joanete rabanete
com cabeça de alfinete
e cara de biscoito.

que era vizinho da frente
do chocolate larate
com nome de disparate
que vivia no número oito.

eram grandes
amigos de há muito tempo:
passeavam juntos,
partilhavam de tudo,
conheciam-se bem,

e não escondiam nada nada nada
um
do
outro…
excepto que
um era caprichoso
e o outro supersticioso,
mas qual deles era
o quê ou o porquê
não sabiam eles nem ninguém.

um dia -
sem estar sol nem ser feriado -
o joanete rabanete e o chocolate larate
passeavam nos arrabaldes do bairro,
lá para os lados do laranjal azul,
quando foram, de repente, atacados
por uma horda de jábastassins plim-plins
corridos das terras arrepiadas do sul.

muito assustados e atrapalhados
o joanete rabanete com cabeça de alfinete
e o chocolate larate com nome de disparate
correram pelo caminho de volta
a gritar que o fim do mundo andava à sólta
e tropeçavam e rebolavam
mas nem precisavam
que os jábastassins plim-plins
não vão daqui                                                     ali
sem papéis assinados,
dois atestados,
três decretos e afins.

correram, correram
muito depreeessa!
quem os via, dizia:
lá vai
o joanete larete com cabeça de disparete
e o chocolate rabanate com nome de alfinate!

chegaram a casa estourados,
coitados!
e esconderam-se logo, muito assustados.
um
na cave trancado, com um olho fechado
na sua cara de biscoito,
o outro
debaixo de um travesseiro da cama do quarto traseiro
da casa do número oito.

nunca mais ninguém os viu.
dizem por aí que o chocolate larate
por medo ou superstição
fez uma dieta de chás e temperos
com grandes desesperos
e agora está magrinho,

e o joanete rabanete
por capricho do acaso,
escreve papéis assinados, decretos e atestados,
nas terras arrepiadas do sul
onde hoje é meirinho.
raquelpatriarca|treze.janeiro.doismiledoze
.

Duas canções portuguesas


                                                           O mais humano sentimento são.
Márcia[1]

A meio caminho de um falso império
alguém diz: tu que tudo desatas, leva-me contigo
o teu corpo é feito de viagem – e repete que a pele não é uma fronteira
a sua cara é a de todos e enrola-se na paisagem
o mais honesto animal – caem-lhe do bico sementes de sésamo e girassol
cabe toda no fio de um cabelo:
a mais magnética das memórias do fundo
puxa-nos para baixo

O Cristo de Mantegna parece o Che morto –
as mantas de lã que estavam nos baús da CIA
 e nas arcas douradas dos Alexandrinos
esvaziadas das rendinhas, servem-lhes de última morada
O mesmo baptismo no Rio de Los Remédios,
o mais sujo da América Latina
Relíquias, granadas, missais,
pontas e molas que lhe servem de fundo
o musgo que cresce com ou sem ideais
Os mesmos e grandes olhinhos enrolam a paisagem
Derrubado o muro fica outro muro:
Invisível, Maior, Interior
De um lado o amor e o ódio - Do outro lado o amor e o ódio –
Em Fátima as pumas entram na capelinha das aparições
e estão entre os sacerdotes que as domesticam e as inserem no ritual
As pumas e as peregrinas seguem o cortejo das velinhas
Revitalizam o ritual
e as pumas e as peregrinas cantam
Sabendo que toda a frase é incompleta
feita para ser esquecida e reinventada,
estranho recheio este, um ideal,
se em nada ele toca, mas se tudo ele liga

A meio caminho de um falso império
 alguém diz:
Tu que tudo desatas prende-me novamente
Puxa-me para o fundo
Animal invencível: amor.

Ouço uma música portuguesa do século XXI que acaba assim:
A razão de ser de um poeta é.[2] [Fim da canção].


                                                      Nuno Brito




[1] Letra de música do álbum – Dá.
[2] Manuel Cruz – Foge Foge Bandido.

Manet e a carta a Olympia


Manet "Olympia" 1863

enquanto recebo o calor da celeuma
lembro letra a letra a carta de Olympia
a surpresa de a ver assim (in)vestida
de nudez, nas cores do seu poema
o adeus:

"manet meu ingénuo e querido amigo

beijo a tua mão direita

comovi-me

naquele divã de donzela
o lugar das minhas linhas.
sentida perfeita no meu corpo
no meu olhar felino que domina.

maria vestida de flores
escondida no seu olhar de noite
guarda os segredos daqueles que autorizo
os meus melhores momentos
a voz aguda dos amantes
e são tantos.
não os quero loucos nem distantes
de fogueiras impertinentes
ou amores frios
trato-os como filhos nos meus seios
a quem sugo os receios, os seus medos
na falta dos berços.

comovi-me

na largura dos traços
nas camadas de tinta
por sobre a tela virgem
de muitas horas e anseios.

beijo a tua mão direita

a do laço de cetim
trémula de pudor
quando inclinavas o rosto
e pousavas a paleta.

meu querido e ingénuo amigo
espero não te ver
sob pena de não ser
olympia-

e assim será manet
serei o poema
o teu espelho
e só meu o teu olhar
até ao fim -

beijo a tua mão direita
olympia

p.s. envio-te a flor "

josé ferreira ( out 2009)

(desculpem republicar mas achei apropriado porque este quadro de Manet é colocado em paralelo com a Vénus de Urbino de Tiziano)