sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Duas canções portuguesas


                                                           O mais humano sentimento são.
Márcia[1]

A meio caminho de um falso império
alguém diz: tu que tudo desatas, leva-me contigo
o teu corpo é feito de viagem – e repete que a pele não é uma fronteira
a sua cara é a de todos e enrola-se na paisagem
o mais honesto animal – caem-lhe do bico sementes de sésamo e girassol
cabe toda no fio de um cabelo:
a mais magnética das memórias do fundo
puxa-nos para baixo

O Cristo de Mantegna parece o Che morto –
as mantas de lã que estavam nos baús da CIA
 e nas arcas douradas dos Alexandrinos
esvaziadas das rendinhas, servem-lhes de última morada
O mesmo baptismo no Rio de Los Remédios,
o mais sujo da América Latina
Relíquias, granadas, missais,
pontas e molas que lhe servem de fundo
o musgo que cresce com ou sem ideais
Os mesmos e grandes olhinhos enrolam a paisagem
Derrubado o muro fica outro muro:
Invisível, Maior, Interior
De um lado o amor e o ódio - Do outro lado o amor e o ódio –
Em Fátima as pumas entram na capelinha das aparições
e estão entre os sacerdotes que as domesticam e as inserem no ritual
As pumas e as peregrinas seguem o cortejo das velinhas
Revitalizam o ritual
e as pumas e as peregrinas cantam
Sabendo que toda a frase é incompleta
feita para ser esquecida e reinventada,
estranho recheio este, um ideal,
se em nada ele toca, mas se tudo ele liga

A meio caminho de um falso império
 alguém diz:
Tu que tudo desatas prende-me novamente
Puxa-me para o fundo
Animal invencível: amor.

Ouço uma música portuguesa do século XXI que acaba assim:
A razão de ser de um poeta é.[2] [Fim da canção].


                                                      Nuno Brito




[1] Letra de música do álbum – Dá.
[2] Manuel Cruz – Foge Foge Bandido.

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