sábado, 10 de outubro de 2009

O cúmplice


Juan Gris "A guitarra em frente do mar" 1925


Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos.
Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta.
Enganam-me e eu tenho de ser a mentira.
Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno.
Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo.
O meu alimento é todas as coisas.
O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo.
Tenho de justificar o que me fere.
Não importa a minha felicidade ou infelicidade.
Sou o poeta.

Jorge Luis Borges, in "A Cifra"
Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Sorriso líquido


Paul Klee " Anatomia de Afrodite " 1915

O oposto do silêncio é o sorriso
na madrugada incinzenta, incisiva
de quatro paredes brancas.
O sorriso líquido sem penumbra
na fina claridade.
Paralela a escada que nos liga
na altíssima noite branca
como águas puras de uma nascente
de pedras luminosas subindo
sem veredas, medo ou labirinto
aos véus da Lua grávida
um mar de estrelas -