terça-feira, 30 de junho de 2009
Pastelaria
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra
Mário Cesariny (Lisboa, 1923-2006)
in Nobilíssima Visão
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Castelos de pedras pequenas
a impressão de um olhar cravado que nada mostra
esconde, não desvenda, um lugar de outros
que não se conhecem, sombras de outras histórias
na ansiosa existência indefinida de diversos sentidos
os recém-nascidos, os do meio, os mais antigos.
Por vezes a tontura surge como eixo de um globo
corte certeiro de Equador nas florestas tropicais
chuvas caudalosas, calores infinitos, Amazónias
de paisagens magníficas, arábicos ventos desertos
de passos lentos que conduzem à vida dos Nilos.
Não pára esse olhar intenso do lado detrás da nuca
como uma queimadura no dia frio; um pêndulo largo
contando os segundos, alinhando os ponteiros
no som das aves.
Construo paredes, ergo castelos de pedras pequenas.
Os quadros nas paredes não são meros adereços
inertes, sem vida. Os quadros são significantes
insubmisssos, soldados de futuro, células vivas.
Ruas pequenas, muitas esquinas
na reinvenção de um novo ser,
uma planta de uma nova fotossíntese,
seiva líquida de cor rubra, vertigem
nesse olhar de traves grossas
por trás da nuca...
e a tontura do vapor
de uma veloz locomotiva...
sábado, 27 de junho de 2009
A vida
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice, in "Teoria Geral do Sentimento"
A folha branca na manhã complexa
um braço de sol, anjo caído que ilumina
a lisa folha branca disponível
na manhã complexa.
A luz suficiente recolhe numa aurora circular
o olhar fundo de uma noite incompleta.
No íntimo inclinar de sobrancelhas
encontro a ausência no teu mundo
a escondida claridade do teu sorriso
cândido, a estranha sensação diferente
de um toque demasiado leve nos lábios.
Quase o choque imediato de neurónios
na queda imprevista de umas chaves
e o deslize de uma auréola
para o lado de lá da janela.
Uma brisa,
fluxo imperceptível de Venturi,
estabelece a fronteira entre a rua,
a saída no corredor e o lugar fixo
de gravidade presa no meio espaço
de uma sala sem a luz suficiente
o oxigénio necessário depois do bater
da porta de uma despedida geométrica.
A folha branca eleva-se um pouco
na corrente de ar à altura medida
de um prisma de cores cruzadas.
Um código de palavras invisíveis
surge nas sombras de um poema
guardado; incompreendida
tatuagem interna, inscrita
no sabor ainda presente
de uma pele de pétalas
macias.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
quinta-feira, 25 de junho de 2009
A quadra premiada
que até o cravo ao meu peito
com o teu, num halo à parte,
mostrou que tinha mais jeito!
Agostinho
Esta foi a quadra premiada no concurso deste ano do "Jornal de Notícias".
Uma tradição poética que se mantém!
Um cardume de cabeças
de santos populares. Muitos, são muitos
debicando broas e sardinhas
engolindo ruídos, saboreando as notas
de um concerto de Villa Lobos
na praça do cogumelo gigante
cimento branco...
Antes era as Fontainhas (no lugar assassinado
de uma ponte) e as barracas, carroceis
farturas, desacatos e cadeiras circulares
na roda giratória de um enxame de gritos.
O fogo de artifício junto ao muro, beiral do rio
um cardume de cabeças,olhos brilhantes
os lábios abertos de espantos.
Passos lentos até ao "Cristal" destruído
o palácio inexistente. O final destino
nas tílias da Rotunda.
No caminho inverso barulhos breves
os pés mais arrastados, o suporte
de relvas em desalinho na Avenida.
Comprava sempre o "Notícias", na madrugada
onde se lia as quadras, as melhores
a premiada.
Na noite de S. João até aos nossos dias
permanece a memória e a poesia.
quarta-feira, 24 de junho de 2009
Adeus
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade (Póvoa de Atalaia, 1923 - Porto, 2005)
in Os Amantes Sem Dinheiro (Lisboa, 1950)
segunda-feira, 22 de junho de 2009
A retina dos poemas
os pirilampos acendiam as vestes verdes
e os mosquitos serpenteavam globos de vidro
nos passeios;
actividade de solstício
despertar natural da canícula.
Quando dia
quente tão quente a areia.
Oito horas a praia deserta...
na toalha de conchas e bolsa amarela
há quanto tempo não era assim o crepúsculo
lento descer até ao fim
uma linha ténue de aguarela
laranja decrescente paralela
na vertigem de um mar chão...azul.
O olhar na ausência de Rolleiflex
os passos breves o adeus da cor;
um mergulho ao centro dos peixes.
Depois do dia
na noite mais noite
asas longas ao encontro
de um rosto que divide o horizonte
e adianta de um lado a madrugada
do outro o nascer de estrelas
e a luz dos pirilampos
nos silêncios da noite
na retina dos poemas.
sábado, 20 de junho de 2009
Sudenly I see
palhaços de Carnaval
pulos, esgares, risadas
infância em fantasias
certezas de outros dias
disfarces sem qualquer mal.
sexta-feira, 19 de junho de 2009
Dois amantes, o mundo
cada um no seu reino, beijam-se nas praias
quando as ondas batem as areias
o mar é o meu navio,
hoje naufrago feliz
sabes quem sou, as dunas
que se levantam com o vento são
os sonhos do amor que dormita
em sossego nas praias
a terra és tu o mar sou eu
Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"
quinta-feira, 18 de junho de 2009
O tempo
adição de surpresa que não discrimina
persiste flutuante na existência
de relâmpago e trovão
na brisa beige do deserto
no brilho azul preciso
de um céu no Alentejo.
O tempo é vida
acrescenta, surpreende no segundo passado
no instante minuto que avizinha
ainda ausente, indefinido, diferente.
O tempo são os lábios e o desejo
e é ciência
no limite como alguém disse
o tempo nas janelas de um comboio
é energia!
quarta-feira, 17 de junho de 2009
TEMPO ALÉM DO TEMPO ( ou Outro Tempo)
preciso de tempo, de muito mais tempo,
porque um dia saís-te de mim
e leváste-me o meu tempo.
Por distanciação no tempo
e sem vontade expressa,
apoderáste-te do meu tempo:
o tempo alegre,
o da compaixão,
o do convívio
e da compreensão!...
Hoje vivo outro tempo:
o tempo do inconformismo,
e o tempo que gira em meu redor,
que é o da incompreensão,
o da marginalisação,
um tempo sem clarificação
e sem qualquer temporalidade!...
E eu , que até dominava o tempo
perdi assim de repente
todo o meu querido tempo.
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Mas pela paixão
recriei um outro tempo,
tempo de sentir,
tempo de amar e florescer,
mas ainda e sempre de saudade
por vezes de solidão:
é o meu tempo moderno,
assaz emotivo,
também de compensação,
mas em simultâneo
um tempo gélido
por ser de afastamento,
tempo de discriminação,
que eu devo compreender
mas que tanto afecta
meu tempo de viver!
Odeio agora o tempo,
aquele que eu não temia,
o mesmo que eu dominava!
Agora fragmento o tempo
para o preencher e aceitar,
e juro que nunca, mas nunca,
me deixarei por ele dizimar,
pois é um tempo que entristece
e por vezes me faz calar!
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Refugio-me silenciosamente
no tempo dos meus silêncios,
deixando-me assim dominar;
assim controlo o meu tempo,
o tempo que me vai restando,
mas que sempre me estimula,
incentiva e agiganta
na procura de um novo tempo:
tempo de nova vida,
de afeição e ternura,
tempo de concórdia familiar,
tempo de criatividade,
tempo de inovação de sentimentos,
tempo de humanismo
e de aproximação vital
entre todos os nossos tempos!
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Suplico apenas
mais tempo de viver,
um tempo de sublime vivência,
ou serei forçado a inventar
um pouco mais de tempo
além do meu actual
mas tão curto
e tumultuoso tempo!...
António Luíz ( 21-05-2009)
Como começa um conto
com tradução de Egito Gonçalves e publicação da Quasi. Resolvi partilhar.
" As histórias que os homens contam são frequentemente tristes, não procuremos conhecer a razão deste facto e ouçamos antes uma delas, um conto sobre um tema antigo, que se pode ouvir nas margens do Danúbio, do rio azul...
Ao longo deste rio há uma floresta, velha e poderosa. Começa na própria margem e mergulha na profundidade das planícies; as ramagens prolongam-se por cima das ondas azuis e sonoras e as raízes nodosas e enrugadas deixam-se beijar e lavar pelas águas que acorrem à margem com um ruído suave e acariciador.
Na floresta viviam elfos, fadas e velhos gnomos, sábios, que tinham construído sob as raízes palácios onde meditavam acerca da vida e de todos os outros assuntos em que convém meditar para se ser sábio. À noite saíam para as margens sombrias e sentados em pedras recobertas por um macio musgo verde-escuro ou em velhos troncos abatidos pela tempestade, contemplavam as ondas que corriam para o mar, vindas de um longe incompreensível, tenso como uma cortina de trevas enevoadas, e prestavam atenção ao murmúrio do rio. "
terça-feira, 16 de junho de 2009
Palavras mínimas
largos sentidos, vastos mares, nuvens
raios solares a perder de vista.
Feitas de giras células em carapaças
químicas; sente-se o ruído de asas
em fim de ciclo, o ciclo da seda
casulos de borboletas cor de cera.
As palavras mínimas, as poesias
abrem de cuidados as dermes, soltam
o mais íntimo sentir do centro
que se espalha fluorescente
luz clara de corpos que cresce e sobe
em teia de tecidos, céu de vitrais
nos fios finos que unem as estrelas
ao núcleo de veste branca
musa de um mar de veludos.
Nas palavras mínimas dos poemas
não há o perigo fugaz dos líquidos
as asas são sólidas não de Ícaro.
Porque um dia voltaremos
Gostava de partilhar convosco um poema muito especial para mim. Aconteceu na última aula de Português de uma das minhas turmas de 10º Ano. Um poema da autoria de todos os alunos, tocados pela magia da palavra poética, neste último mês de aulas. Um texto que poetiza momentos do percurso escolar, deles e meu. Um texto cheio de reminiscências, minhas e deles. Um texto/poema que dá resposta a um dos desafios que lhes lancei - enquanto escrevemos, permanecemos...
Obrigada a eles por aceitarem o desafio, obrigada a vós por os receberem neste espaço dedicado à poesia e protegido pelos poetas...
Um dia cheguei
não sei bem como, ainda,
e permaneci.
sou escritor de mim.
enquanto escrevo
permaneço.
e houve um tempo em que escrevi
sob baloiços de outono,
passando pelos contos
até ao poema,
aquele que cresce na carne.
nas páginas de uma aula
aprendi a voar.
reencontramo-nos (intrinsecamente)
num abrir de asas.
Porque um dia voltaremos.
Alunos da Turma D/E, Colégio Luso-Francês
domingo, 14 de junho de 2009
Dedicatória a um amigo
Alguns minutos, como amigo.
Impossível recusar.
Sabia que a dor seria mútua
no previsto problema
adivinhava as paredes desfeitas
os estilhaços, as ruínas;
ninguém gosta das partes más
o inverter de horizontes
a gravidade ao contrário
que afoga na queda dos mares
e projecta a alma nua de agulhas
nas pontas das estrelas
quando se perdem as luas.
As verdades já não eram.
Um abraço
forte, apertado, sentido.
Falei dos jogos de ténis, das férias em Ibiza
das noites no fim das praias
do "rouge" das queimaduras
mas não querias, não era esse o motivo.
Disseste: "Senta-te como amigo."
Tentei de novo, tinha receio do fungo
o cogumelo anelar que crescia, colocava
a cabeça perto de nuvens densas.
Falei da origem de uma viagem a Elvas,
os comícios políticos, o comboio, outros amigos.
Tu nervoso, um sorriso ténue, por fim
o grito:"Não digas nada! Ouve-me!
Por um instante! Como amigo!"
Eu sabia
eu e a tua barba de três dias
por isso falava de um resto de outras vigas
férreos alicerces onde tinhamos nascido:
o mesmo bairro, a bola de trapos
o jogo da casquinha, as caricas
das águas do Cruzeiro (mais estáveis
nas curvas devido aos vazios.
Os sumos Cristalina, as gasosas
os bailes de aldeia, as fugas
nas cavas rochas,abrigos de pastores
e do calor, o calor imenso das lareiras
dos caldeirões de pernas metálicas, pretas.
Tu: "Como amigo!"
Pedi um Whiskie, baixei os olhos
na dança das pedras frias. Ouvi.
"Sabes a Isabel, o Matias, a Maria...
...comigo!"
E por aí fora, não era uma história nova
durava, parava, retorcia, aviltava
aqui um pouco mais de sal, ali escura
ou clara na expressão de um facto
o excesso de pimenta. Uma hora. Ouvi.
Como amigo. O balão esvaziava no rodopio
até ao nível de uma lágrima.
Silêncio. Silêncio. Silêncio.
As minhas palavras : "Tem calma!"
Nascia em mim outro desejo
um outro universo que consumia
emergente, a vontade, a mão no ombro
e o retorno aos anteriores lugares
não das derrotas modernas que doíam
mas sim das vitórias antigas
e das outras que viriam.
"Tem calma! Se hoje há chuva amanhã é dia!"
Não havia mais pedras na roda do copo.
Cessa o frio.Disseste:
"Sabes é bom ter um amigo!"
À memória de Fernando Pessoa
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!
António Botto
Poema de Cinza
As Canções de António Botto
Editorial Presença
1999
sábado, 13 de junho de 2009
Sempre a luz
e os verdes do jardim?
Será do Sol de brasa
da noite, da Lua
da água mole
da pedra dura?
Logo passa
logo volta a andorinha
a estação e o jardim.
Na nossa mãe natureza
só há meios
nunca fim.
Nem sempre o dia se levanta
de amarelos vestido
nem sempre as nuvens
nem sempre o frio.
Sempre existe mudança
a lonjura que aproxima
a seguir à noite escura
sempre a luz
de um novo dia.
Sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Encubro a luz que me habita
Não por ser feia ou bonita
Mas por ter assim nascido
Sou de vidro escurecido
Mas por ter assim nascido
Não me atinjam não me toquem
Meus amigos sou de vidro
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
E um cinto de escuridão
Mas trago a transparência
Envolvida no que digo
Meus amigos sou de vidro
Por isso não me maltratem
Não me quebrem não me partam
Sou de vidro escurecido
Tenho fumo por vestido
Mas por assim ter nascido
Não por ser feia ou bonita
Envolvida no que digo
Encubro a luz que me habita
Vale a pena ouvir este poema na voz de Clara Ghimel "Entre mares"
sexta-feira, 12 de junho de 2009
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Encontro-te
na galeria de arte, no bazar antigo
na fila do teatro, no grupo animado
de um bar novo.
Costuma ser ao sábado
cruzamos o olhar,sabemos o sorriso
onde se apaga o lápis dos versos
e sobresssai a tinta permanente
do desejo ... a noite longa.
De frente vejo o grande aquário
um mundo pequeno: uma praia, duas luas
as estrelas, o mar suspenso
e dois corpos sem toalhas
vestidos de águas breves
(h)ora descendo num balanço
(h)ora subindo em desafio
ao sal mais salgado dos lábios
infindável beijo.
As mãos acenam e os teus olhos levam
o meu sonho dentro deles
esvoaçam as doces ancas, os cabelos
as marés dos teus seios
e os meus receios de que não chegue
o dia das cerejas, das certezas;
essa barca dos perfumes
que me leve com eles.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Dia de Portugal
Metáfora malvada
falso granizo, berlindes metálicos de ruído.
Nos olhos líquidos um céu claro, claro de cio
húmido e branco escorrendo rios no azul cinzento
céu sem chama e o sol assim tão pouco
a luz insuficiente.
As ideias secas e a impressão que devia pousar a caneta:
"Hoje não! Hoje não escrevo!"
A chata tinta obrigando as lentes, os olhos
os dedos obrigando sempre o correr das letras:
metáfora, a nova metáfora, que ninguém conheça:
"Onde estás?Metáfora malvada!"
Ânsia e sede de uma gota mágica, gota metáfora:
"Onde estás?Metáfora malvada!"
Crina esvoaçante de uma estátua de pedra
que fluída expanda as células vivas
levante os cascos dos sentidos
leia o vento dos segredos nas narinas
o prazer frémito de cavalo de corrida!
"Onde estás?
Metáfora, metáfora, metáfora malvada!"
terça-feira, 9 de junho de 2009
Pérolas
no fundo do meu mar
oceano de brilhos
janelas de vida
poesia de gestos
o teu olhar.
Levantas leves as meninas
as pupilas do desejo;
desce uma nuvem do céu
nos ampara e eleva
acima ao Sol
onde se solta a luz...
nasce o sonho!
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Pedro de Santarém
rapariga
primitiva
que eu sou
fui
e hei-de ser
Minha
querida
rapariga
para ti
os girassóis
são giros
e giram
e é o amor
que move
o Sol
que move
o girassol
E
é o girassol
que move
o Sol
Querida
rapariga
imperativa:
gira, Sol
gira, girassol
E
Deus
é
o girassol"
Retrato de uma cena alguns anos atrás
frases de encanto
inverdades de efeito letal.
Porque vejo lianas
piruetas de troncos
gritos surdos de Jane?
Porque só eu ouço
de rosto fixo e alma traçada?
Porquê o ridículo gesto do chapéu
esgar cínico olhar de Bogart?
Saímos juntos na noite fria
ainda de mão dada
estranha liberdade.
Comentários banais
circunstância esquecida
invenção de véspera
contagem final
do dia que termina.
para quê enviar-te uma carta
Para quê enviar-te uma carta se estás aqui ao meu lado, para quê.
Porque não me quero ouvir declamar as falas de um discurso
decorado em antemão, decorado, que já não sinto
sequer, mas tenho que to ler em sílabas completas
sem o choro dos passados partilhados.
E naqueles tons eu vou deixar-me aceso em lenta vida,
em lenta vida naqueles tons monocórdicos aos quais me rendi
sem a tua presença radiante. Para quê enviar-te uma carta.
Talvez me sinta mais homem. Talvez. Aquelas palavras brutas
e animalescas que te chamo nas ideias estão lá, aquelas palavras
únicas que eu não digo porque te ferem, frágil que és, te ferem
até à medula do teu ego. Sentir-me-ia mais homem porque
não te teria de olhar nos olhos. E olhar-te dói.
Dói-me ao respirar-te, ao ouvir-te falar, ao chegar-me a ti
e saber que não te posso encharcar de amor, dói.
David Campos Correia
O jardim das cores
o azul e o laranja,
o amarelo, o violeta,
o lilás e o carmim...
saltam das flores
à paleta do poeta
nas asas do perfume
a pétalas de rosa,
a jasmim!
domingo, 7 de junho de 2009
Direito ao pequeno
A nervura constante
claridade na escuridão de fotogramas negativos;
agora um quadro nítido após um intervalo
depois um apagão e de novo outro que se apresenta
díspar na aparente imprecisão.
Esses sentidos que sempre se explicam
mas nunca nesta hora tardia
onde juntam asas os morcegos planadores
abrindo em espaços a luz das estrelas
significam a libertação dos limbos
nos ritmos acelerados de marimbas
em lagos planos
desejos de alma.
Estão cobertos os ombros nus
de bordados monogramas
só nossos como os genes
e os cabelos despenteados
aguçam o interno mundo
onde vivem homens de guelras no fundo do mar
onde anjos agitam harpas nas nuvens amarelas
Os ritmos as cores mudam no descanso do sonho:
um xilofone de Orff nos oito braços de um polvo
não é vulgar
um violino de cordas de barro não é suposto
tocar
melodias de Paganini
uma boneca de Rosa Ramalho de cara informe
não dança
no entanto
os oito braços podem ser desejos de sete vidas
mais esta que é real
as cordas de barro o medo de não ser flexível
não saber a música quebrar
a boneca de cara informe a fábula do sapo
na versão da princesa
sapatos de vidro sorriso de graça
verdadeiro rosto de mistério
alguém a quem se guarda
as palavras mais belas desta noite
onde como onda a nervura constante
me aperta o sono
sábado, 6 de junho de 2009
Paul Eluard
Pintura de Eluard efectuada por DALI
Paul Eluard - Poeta
Eugène-Émile-Paul Grindelul
* Saint-Denis, França - 1895 d.C
+ Paris, França - 1952 d.C
O poeta Paul Éluard nasceu no ano de 1895 em Saint-Denis, hoje um subúrbio ao norte de Paris.
O poeta francês foi autor de poemas que circularam clandestinamente durante a 2a Guerra Mundial, contra o nazismo.
Participou no movimento dadaísta, foi um dos pilares do surrealismo, abrindo caminho para uma ação artística mais engajada, até filiar-se ao partido comunista francês. Tornou-se mundialmente conhecido como O Poeta da Liberdade.
Aos 16 anos, Paul Eluard contraiu tuberculose, o que o obrigou a interromper seus estudos.
No sanatório de Clavadel, na Suíça teve o primeiro encontro com Manuel Bandeira. Foi o primeiro encontro de Éluard com um grande artista brasileiro.
Na Suíça, no Sanatório de Davos, ele conhece uma jovem russa, Helena Diakonova, que ele chama de Gala. Os dois casaram-se durante a guerra, em 21 de fevereiro de 1917. Sua impetuosidade, seu espírito decidido, sua cultura impressionam o jovem Éluard, que encontra nela seu primeiro impulso de poesia amorosa. Juntos, eles lêem poemas de Gerard de Neval, Baudelaire e Apollinaire. Em 11 de maio de 1918, nasce sua filha Cecile. Viveram juntos até 1929. Gala em seguida se casaria com o pintor espanhol Salvador Dalí.
O “Éluard”, adotado depois, era o sobrenome de sua avó materna.
Embora o trabalho de Paul Éluard tenha conhecido várias fases - foram dezenas de títulos publicados entre 1913 e 1952, ano de sua morte -, Paul Éluard tornou-se conhecido principalmente pela sua poesia surrealista. O poeta formou-se num momento extraordinário da vida cultural francesa.
André Breton e Louis Aragon
Conviveu intensamente com poetas como André Breton e Louis Aragon e artistas plásticos como Picasso, De Chirico, Dalí, Magritte, Miró, Man Ray e Chagall
Liberdade
Nos meus cadernos de aluno
Na minha carteira e nas árvores
Na areia e na neve
Escrevo o teu nome.
(…)
Nos campos do horizonte
Sobre umas asas de pássaro
Sobre o moinho das sombras
Escrevo o teu nome
(…)
Na vidraça das surpresas
Nos lábios que estão atentos
Muito acima do silêncio
Escrevo o teu nome.
(…)
Na ausência sem desejo
Na solidão despojada
Na escadaria da morte
Escrevo o teu nome.
(…)
Sobre a saúde refeita
Sobre o perigo dissipado
Sobre a esperança esquecida
Escrevo o teu nome.
(…)
E pelo poder da palavra
Recomeço a minha vida
Nasci para te conhecer
Nasci para te nomear
Liberdade
S.O.S.
acalma a contrariedade
do S.O.S.
Sonho com tréguas de luz
deitado na marquesa
no estado vegetal da hipnose.
Liberto-me dos ecos
labirintos de emoções
e acordo dos socalcos
de ar luminoso
latejado de sorrisos.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
Azul claro
entrar dentro da minha tenda
nela pousar o rosto
junto ao rádio portátil
oscilante
de música suave:
"Oceano Pacífico"
Não vás. Permanece
calma
sobre o meu peito
no cristal límpido
da memória.
Deposita em mim
o azul claro dos miosótis
o ponteado amarelo
dessa flor pequena
que se deseja.
Não osciles
e não vás. Permanece
na teia das sensações
e inspira
o ar das musas.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Retrato de uma cidade
Tem nome de rio esta cidade
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.
Aqui
amanhece como em qualquer parte do mundo
mas vibra o sentimento
de que as coisas se amaram durante a noite.
As coisas se amaram. E despertam
mais jovens, com apetite de viver
os jogos de luz na espuma,
o topázio do sol na folhagem,
a irisação da hora
na areia desdobrada até o limite do olhar.
Formas adolescentes ou maduras
recortam-se em escultura de água borrifada.
Um riso claro, que vem de antes da Grécia
(vem do instinto)
coroa a sarabanda a beira-mar.
Repara, repara neste corpo
que é flor no ato de florir
entre barraca e prancha de surf,
luxuosamente flor, gratuitamente flor
ofertada à vista de quem passa
no ato de ver e não colher.
II
Eis que um frenesi ganha este povo,
risca o asfalto da avenida, fere o ar.
O Rio toma forma de sambista.
É puro carnaval, loucura mansa,
a reboar no canto de mil bocas,
de dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas,
no ritual de entrega a um deus amigo,
deus veloz que passa e deixa
rastro de música no espaço
para o resto do ano.
E não se esgota o impulso da cidade
na festa colorida. Outra festa se estende
por todo o corpo ardente dos subúrbios
até o mármore e o fumé
de sofisticados, burgueses edifícios:
uma paixão:
a bola
o drible
o chute
o gol
no estádio-templo que celebra
os nervosos ofícios anuais
do Campeonato.
Cristo, uma estátua? Uma presença,
do alto, não dos astros,
mas do Corcovado, bem mais perto
da humana contingência,
preside ao viver geral, sem muito esforço,
pois é lei carioca
(ou destino carioca, tanto faz)
misturar tristeza, amor e som,
trabalho, piada, loteria
na mesma concha do momento
que é preciso lamber até a última
gota de mel e nervos, plenamente.
A sensualidade esvoaçante
em caminhos de sombra e ao dia claro
de colinas e angras,
no ar tropical infunde a essência
de redondas volúpias repartidas.
Em torno de mulher
o sistema de gesto e de vozes
vai-se tecendo. E vai-se definindo
a alma do Rio: vê mulher em tudo.
Na curva dos jardins, no talhe esbelto
do coqueiro, na torre circular,
no perfil do morto e no fluir da água,
mulher mulher mulher mulher mulher.
III
Cada cidade tem sua linguagem
nas dobras da linguagem transparente.
Pula
do cofre da gíria uma riqueza,
do Rio apenas, de mais nenhum Brasil.
Diamantes-minuto, palavras
cintilam por toda parte, num relâmpago,
e se apagam. Morre na rua a ondulação
do signo irônico.
Já outros vêm saltando em profusão.
Este Rio...
Este fingir que nada é sério, nada, nada,
e no fundo guardar o religioso
terror, sacro fervor
que vai de Ogum e Iemanjá ao Menino Jesus de Praga,
e no altar barroco ou no terreiro
consagra a mesma vela acesa,
a mesma rosa branca, a mesma palma
à Divindade longe.
Este Rio peralta!
Rio dengoso, erótico, fraterno,
aberto ao mundo, laranja
de cinqüenta sabores diferentes
(alguns amargos, por que não?),
laranja toda em chama, sumarenta
de amor.
Repara, repara nas nuvens; vão desatando
bandeiras de púrpura e violeta
sobre os montes e o mar.
Anoitece no Rio. A noite é luz sonhando.
O piano a preto e branco
onde se compreendia um rosto vago
coloquei-o no sofá vermelho
junto ao candeeiro.
Complexo na técnica singular
imprimia o facto de uma presença ténue
ou talvez uma ausência em fuga de concreto.
A preto e branco
na folha de um qualquer bloco
enquanto ouvia o piano
os dedos nele numa dança
nas teclas deitadas de passagem
rápidas ou lentas
emotivas
e a espaços
em pausas na melodia.
Música plena sem nome
na distância apenas sombras tremidas
de minimas, semínimas, colcheias
e um cálice de Porto na luz da lareira.
Um toque invisível no canto do ombro
o desvio do olhar (extremos da mente)
nos quadrados nocturnos de uma janela;
supuz as estrelas de modo diferente
nascentes de cabelos que desciam cadentes
numa tal mistura de ondas e curvas
que mal se distinguiam as estrelas
dos cabelos e o contorno claro
-lado absorto da redonda lua.
Na folha flectida do desenho único
supuz a vida sem sono estendida
no eco duplo dos passos
batidas certas de ritmos
nos silêncios dos passeios.
Pensei de um outro modo
a troca do direito das coisas
um outro rumo
na imagem de um mar de vagas
transformadas
num mar de espumas.
Sorriste de rosto nítido
aos caracóis de cabelo
no desenho de improviso
era de dia;
e compreendi
junto ao candeeiro
o poder das sombras nos lábios
não como ausência de luz
como acalmia
refúgio
no tempero dos sentidos.
terça-feira, 2 de junho de 2009
Durmo ou não?
Coisas da alma e da vida em confusão,
Nesta mistura atribulada e calma
Em que não sei se durmo ou não.
Sou dois seres e duas consciências
Como dois homens indo braço-dado.
Sonolento revolvo omnisciências,
Turbulentamente estagnado.
Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.
Disperto. Enfim: sou um, na realidade.
Espreguiço-me. Estou bem... Porquê depois,
De quê, esta vaga saudade?
Fernando Pessoa
Culpa minha
de estender a maré cheia
como um linho de espumas
na cor beige das areias
Culpa minha
apertar as cinzas nos granitos das calçadas
rodar nos dedos as limalhas rudes
arestas afiadas
Culpa minha
candelabros e safiras
caminhos indiscretos
no mausoléu dos retratos
Culpa minha
soprar as neblinas
desnudar ânsias
nos recantos das cortinas
Culpa minha
ser ave nocturna dos telhados
asas abertas no voo curvo dos cometas
de robustas madrugadas
Culpa minha
alvéolos de alvoroço
no passeio dos afectos
de cidades transparentes
Culpa minha
no campo que escuto deserto
ser espanto dos morcegos
no rodopio de Luas
vela de estrelas
de corpo nu
nos lábios d'alma
Ser
culpa minha
culpa minha
culpa minha
...
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Escândalos de homens menores
Duas águas a rodela de limão
três cafés uma entrada;
suspiro breve de migalhas brancas.
Palavras sobre as últimas enguias
finas nos mares da bonança
-rindo dos outros comuns distraídos-
abutres roucos de asas longas
nos grandes voos das finanças.
Macros e micros economias
no meio da impúdica ironia
acervo fácil justificação cúmplice
no falso sorriso de mãos abertas
o ombro encolhido na desculpa
os bicos amarelos de Calimeros:
"Injustiça! Injustiça! Nada disso!"
Uma gota de calor na testa
o abrir dos lábios
três meses apenas
janelas azuis
as mãos pequenas como borboletas.
Já não dorme.
Gestão moderna eficaz de milhões
nada existe golpe de Houdini
impunes os homens cinzentos.
Contas aos tombos de copas e espadas
castelos de cartas levou-as o vento.
Fica o som do desespero a denúncia
tudo passa e em último caso
a renúncia sem prisão nem ameaça.
Polvo enorme de tentáculos de algodão
clamando o branco o puro a inocência
de contas na Suissa, armas nas Filipinas
tsunamis financeiros no Japão.
Uma lágrima
pequeno choro em crescendo
movimento apressado dos lábios de botâo
o querer - instinto único de leite
o aconchego do seio
simples tão simples
nada nada mesmo de montanha russa
subida subida até à China
prédios inclinados em Nova York
cinzas em Saigão
bombas de ruínas na Palestina
as doenças perenes de Hiroshima.
Sossega o menino de rosto dourado
feliz na luz de esperança teimosa
de homens maiores
sem teatros
nem cinemas de maus actores.
Silêncio exterior
já dorme.