sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Imaterial Girl
A natureza fez os dançarinos no seu
círculo como fez o milho no seu círculo
Antonin
Artaud
I.
Magra
consolação a de haver linguagem
se
em tantos fundos ela não toca,
Há
ainda a pele, por baixo a velocidade
o
coração a bombear a música, a
ultrapassagem -
É
ela a nossa única matéria
Repara
como tudo o que é incompleto te chama
e
se te juntares a isso tudo, isso tudo não deixa de estar incompleto,
descansa
agora o olhar neste novelo, só te posso
dar o que não tenho
e
é tanto o que não tenho,
Aquece
a voz, deixa que tudo o que é bom se enrole em ti
A
bretã tem um trevo no bolso,
Não
aparece no desenho o que se tem nos bolsos
Quatro
folhas como a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
Alguns deles são respeitados acima do Equador
onde
Ronald Macdonald nos dá a comer o seu pão negro
também
ele precisa tanto do chão como uma semente
Um
pouco mais acima alguém fala da dignidade e diz: Não sei de que ângulo
os
vi partir, levavam antenas de prata nas mãos, os olhos muito abertos
Os
corpos pediam novas formas de beber:
A
primeira loba dorme, o leite vai-se formando nos seus seios…
II.
Sobre
a morte não sei mais do que uma borboleta
Também
ela cai ao fim de sete dias
ou
é apanhada num esguicho de urina de alguém que vai para Fátima
pára na berma da estrada nacional – faz
pontaria o assassino da natureza
A
filha mais nova ri-se, o sol lambe-lhe a cara, molda-lhe o sorriso
a
perfeição é perto disto, voltam ao carro:
levam
na mala uma lancheira, na lancheira vai a merenda
nos
assentos vai a família unida e quentinha e no meio delas a união
E
dentro delas a crença e dentro delas também a felicidade e todos os mistérios
mais
uma hora e o santuário e o suor e as velas reproduzindo a anatomia humana,
pernas e braços-velas a derreterem - à noite a Casa dos Segredos
O tempo que uma borboleta demora a cair
parece-se com a tua pele
Também
a queda tem cor, é um acordar,
Não
ter chegado ainda é a razão de ser dos caminhos
A
pele não é um limite, apenas um começo,
A
nuvem humaniza
O
céu-da-boca desloca-se para zonas mais austrais
A
bretã caminha porque a pintora o quis, desenha-lhe
um país, as suas gentes, os seus campos de
trigo, as fábricas,
as
igrejas, os sinos, a giz o fumo que sobe e se soma ao ar
Tudo
é soma na natureza humana.
III.
Só
as obsessões flutuam neste bar onde se bebem lágrimas de Orfeu
com
muito limão, é a Espera o barman que enche o copo
Mas
ele não tem fundo, lágrimas de Orfeu amargas
A
saudade sabe a Gin, vejo por esta janela a Bretã
Há um nervo nela que treme: nas fontes onde corre a
vida inteira
um fio de azeite desce pela montanha, contornando
as patas dos ouriços e dos javalis,
Antes de haver bicicletas e os caminhos que elas
percorrem
Já havia ladrões de bicicletas que roubavam à
linguagem
Novos caminhos
só se pode dar o que não se tem
e é muito o que não temos, passa a ser também nosso
quando damos
No bico de um corvo as cinzas de um ditador morto
serão uma árvore, será depois papel,
Fechar um ciclo faz também parte do ciclo
Sobre a perenidade não sei mais do que uma borboleta
também ela asfixiada num esguicho de urina de alguém
que
estaciona o carro na estrada nacional, vai para
Fátima, fica aflito
leva na mala uma lancheira, à noite dá a casa dos
segredos,
resta-me saber que também aqueço, é talvez esse o
milagre
Vêm-se de todos os ângulos os fotões ágeis
atravessar o corpo do mensageiro
é ele a mensagem toda:
preciso mais de chão do que uma semente,
debaixo da pele, líquido quente de um astro,
de todas as escalas – a
humana, a mais perigosa, a Maior
Há ainda a inclinação
natural dos girassóis a acompanhar o astro que foge,
Numa
auto-estrada para sul aproximamo-nos cada vez mais dos pólos
a
sombra de um ditador enrola a paisagem em mortalha de goma antiga
Cair
tem todas as cores, tudo é soma e Link perfeito
Também
o cimento é Deus.
Nuno Brito
um poema sobre um quadro de hammershoi
Vilhelm Hammershoi
aproximam-se na memória os teus dedos de sombra
quando suspensa na ausência lanças palavras sem nome –
pergunto, perante uma tão larga desistência
quem delineou caminhos? quem construiu horizontes?
ambos, ambos, por detrás das portas –
quem fechou as portas? quem silenciou as vozes ?
ambos, ambos, nos medos do vento norte –
quem ofereceu rosas? quem ofereceu os corpos?
ambos, ambos, num leito inevitável, sem margens –
quem contrariou o rio? quem suprimiu as águas?
ambos, ambos, olhando rodelas de limão numa última varanda,
justificando as circunstâncias da forma mais fácil,
como todos os outros, numa rotina de enganos,
numa preguiça lassa, indiferente, conforme -
e agora sem a mobília dos versos
sem o fogo dos alicerces
a casa é um caco de tábuas
um espaço em branco, sem chama –
nem cinzas soltas nem braços sem roupas.
um vestido negro veste o teu corpo.
preparas a partida sem a pressa do regresso.
as malas esperam no alpendre.
no vazio de todos os lugares varres
os últimos traços da memória.
não há pó, apenas um cheiro a cera, penetrante, intensa –
era uma casa muito antiga de tectos altos
agora abandonada.
se acreditasse em Jüng, diria que tinha uma alma
muito forte, de antepassados.
e diria que depois de fechares a porta
continuará a escrever a nossa história,
para que nunca acabe -
josé ferreira 30 dezembro 2011
quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
que lindo que me mandaram no natal...
.
Cai a noite e as ruas ficam repletas
de escuridão e vazias de gente. Por cada
casa que passas brilha o que resta de uma
noite milenar. Imaginas a alegria dos
reencontros principalmente quando a
distância é apenas a do abraço. Decoras
uma música atrás de outra como se
talvez fosse importante manter-nos
em vigília. E quase de repente acreditas
que a infância ainda é um mapa do
tesouro que esconde as mais complexas
explicações do mundo.
.Dezembro de 2011
Sandra Costa
de escuridão e vazias de gente. Por cada
casa que passas brilha o que resta de uma
noite milenar. Imaginas a alegria dos
reencontros principalmente quando a
distância é apenas a do abraço. Decoras
uma música atrás de outra como se
talvez fosse importante manter-nos
em vigília. E quase de repente acreditas
que a infância ainda é um mapa do
tesouro que esconde as mais complexas
explicações do mundo.
.Dezembro de 2011
Sandra Costa
.
Sintomas e Síndromes - um poema de Ana Luísa Amaral
fotografia daqui
Primavera em sintoma repetido.
Estão aí outra vez, intrusos na
manhã. Não me deixam pensar.
O gato quer sair, treme ao vê-los
nos ramos a cantar. Preciso de
pensar. Silêncio em síndrome.
Ruídos de madeira, o tempo a ba-
dalar, são dez e meia. Intrusos
no meu sono de pensar. Preciso
de ar. Mas eles são piores, agora
na manhã já levantada, juntaram
companhia. É ópera de azul.
Um Wagner maior. Navio Real.
O enjoo do ar. Preciso de pensar.
Mas cantam. Cantam. Canção que
não me deixa nem ramo de pensar.
Primavera outra vez e todas as
manhãs o seu sintoma. O gato em
frenesi a tremer mais ao vê-los
a saltar de ramo em ramo. É
primavera e cantam: ligações i-
legais, o ninho em alvoroço.
Só um falcão de asa franjada e
preta que tem casa aqui perto
e que não canta. Só por ele eu
podia pensar. Só por ele o meu
ar, como um telhado. (E o gato
sem ousar-se, viciado, nem
exibindo assim, junto à janela,
estes sintomas de delirium tre-
mens.)
Ana Luísa Amaral, Assinar a Pele, Assírio & Alvim, 2001
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
em primeiro lugar - IV - um poema de Paul Eluard
Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelos olhos que se volvem rosto ou paisagem
E o sono dá-lhe o céu da sua cor
Por toda a água da noite
pelas linhas das estradas
Pela janela aberta por uma fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança sobrevivem.
Paul Eluard "Algumas Palavras" trad. António Ramos Rosa
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
psicanálise
relâmpagos, relâmpagos,
a luz forte sobre uma torre de paralelepípedos cinzentos –
brilhos de azeviche e micas, águas torrenciais
tudo cai –
acordou órfão num filme mudo de ruídos imaginários.
tornado realidade pela claridade de um sonho.
cindido numa narrativa entrecortada de signos
enquanto um gato brincava com laços de uma prenda
que caiu, estrondosamente,
do alto de um armário -
quando de novo adormeceu
a tempestade pertencia ao domínio do passado, um equívoco,
uma má interpretação de um episódio de infância
que recorrente, tinha uma boca grande, um monte muito alto,
um precipício, o risco imediato
e depois a salvação -
há noites de muitas noites, sem luz alguma, sem nenhuma lua
mas entretanto chega o Sigmund, cofia a barba, une os dedos,
cruza as pernas, e em voz calma
explica tudo -
josé ferreira 26 dezembro 2011
sábado, 24 de dezembro de 2011
Ladainha dos póstumos Natais
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
David Mourão-Ferreira
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
esta noite espero a estrada branca - um poema de natal
Vermeer
espero a estrada branca quando subir a serra.
não haverá alces nem renas nas franjas da montanha.
talvez um lume que lance faúlhas, sorrisos abertos
e olhos que encontram olhos como arquétipos
de muitas épocas, sem litígios de ex-irmãos
sem guerras, sem fome, sem corações cortados
sem o ruir dos sonhos, das ilusões –
prevejo as calças azul de ganga, as botas de piso de borracha
e uma camisola vermelha como manda a tradição –
quando escolher o cálice, quando colocar os traços de lenha
subirão lentamente os aromas diversos, alguns sinais de fumo
a resvalar de muitos anos em múltiplos quadros firmes:
aguarelas de Turner, difusas, suaves, não terminadas
e óleos mais escuros, de Caravaggio, já ultrapassados,
mas colocando ainda relâmpagos e gritos de Münch –
lembro-me agora de Vermeer, a pérola,
Klimt, um rosto adormecido,
e os rostos tapados, dos amantes de Magritte –
recordarei preferencialmente o sabor do chocolate,
pequenos grupos de prendas no sapatinho de uma suposta lareira
que não havia, e o pai natal era invisível –
sonharei com macieiras e cerejas de brincos, já sou crescido
e não tenho medo de serpentes –
terei a caneta permanente no bolso esquerdo da camisa
e escreverei alguns versos, sem que ninguém veja –
falarei com muita gente, sem fios
e haverá uma nascente de episódios, vivos, apesar de mortos
desde o começo, desde ser berço, desde ser sólido
desde ser fogo, desde ter medo, desde fechar os olhos
e olhar todo o meu corpo, crescendo e decrescendo
de dedos grandes, de dedos mansos, de pensamentos
desde todas as certezas até um sol apagado, uma lua cega,
ou um paraíso de almas boas, uma távola redonda –
desejo sossego e sossegos para o meu músculo de sangue
para o de todos, de que me lembro, e são tantos –
não mais claustrofobias de paredes pálidas, exangues –
desejo as brisas de morango para o meu cérebro de sonho
e o de todos, e são tantos –
Holly night, holly night,
Ruidosa por dentro, silent por fora,
ninguém dará por nada –
muitos lugares e muitos outros, juntos,
que sorriem na noite de graças
minhas, deles , emoldurando os rostos de estrelas
como senão houvessem opacidades, intransparências,
himalaias, sombras, rotações de planetas –
desejo a noite máxima, feliz, luminosa, branca, sem pesadelos,
de todos, de todos os que me pisaram as nervuras dos cantos
e são muitos e são tantos -
e alguns existem, e alguns não existem
e alguns estão distantes -
josé ferreira 23 dezembro 2011
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
azul
azul
um azul claro, aguado, que me abre como flor fora d’época
na profundidade dos meus lábios, tão mal usados.
um sonho brando e doce, com braços grandes,
um segredo de praias desertas e um berço de manhãs
embalando como onda, como ondas
de um mar navegante
e raro -
josé ferreira 21 Dezembro 2011
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
Irei eu em todas as minhas mãos - um poema de Catarina Nunes Almeida
o lado esquerdo, suspenso
Tamara Lempycka
nesta mesa coxa que oscila no café
traço uma diagonal que liga os fragmentos dos dias.
apoio com força o braço no canto mais direito
para que permaneça quieta
para que possa passear os dedos ternamente pelas letras
para que o lado esquerdo, suspenso
ganhe aquelas asas que reconheces
como raios de seda como luz que se acende
na volta do teu rosto na volta do teu corpo
até que sossegues
e adormeças -
josé ferreira 20 Dezembro 2011
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
desencontro - um poema de natal
não habitei os lugares habituados de natal
não liguei o rádio e pensei em ti
nessa fúria de olhos que te abarca
sendo o teu estado natural o de uma concha
rodeada de ruídos de mar e de cinzentos bons –
não quero acrescentar a neve artificial
o aerossol de falso branco
nem renas nem trenós nem Ooh! Ooh! Ooh!
apenas dizer-te algo de diferente que te acalme
que te abra um sorriso manso
como dedos quentes de lã, deslizando
pelo canto esquerdo da nuca
torneando o cimo dos ombros
a curva inclinada do pescoço
e terminando num chorinho muito baixo
que seja curto e depois pare
num abraço que seja forte, muito forte e depois pare
e num silêncio que junte todas as palavras
que não disse, que não disseste
nas mil e uma oportunidades –
sinto que as nossas almas estão despenteadas.
não percebo a razão porque não és concha
porque não sou onda –
josé ferreira 19 dezembro 2011
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011
Precocemente pressentiu - palavras de David Mourão Ferreira
Livro do desejo - poemas de Leonard Cohen
Guy Bourdin
Ela entrou no meu pé com o pé dela
e entrou na minha cintura com a neve dela.
Entrou no meu coração a dizer,
"Sim, é isso mesmo."
E foi assim que o corpo de solidão
se viu coberto por fora,
e por dentro se viu
o corpo de solidão abraçado.
Agora sempre que tento inspirar
ela segreda à minha falta de ar,
"Sim, meu amor, é isso mesmo, isso mesmo."
Leonard Cohen, Livro do Desejo, quasi, 2008
sábado, 17 de dezembro de 2011
por vezes a chave do sonho
Fotografia de Annie Leibovitz
a tua hipnose de alma vê o vazio
mas há um outro lugar, a suavidade distendida –
a imperfeição das margens não pode condicionar os rios
e as aves intermináveis não interrompem os cursos livres,
voam por sobre a barragem abrupta
que suspende o leito
e bicam incessantes a saída –
não permaneças nas vestes de tecidos pesados,
é triste e mudo o espelho deitado, horizontal sob a lua,
sem a dupla característica, sem a envoltura de um olhar vertical,
omisso no frente a frente que ilumina olhos e lança braços como lenhos
- a árvore magnífica, grande –
as palavras são uma armadura ronceira, pesada, imperfeita,
em algumas batalhas movem-se sem jeito.
as palavras perdem-se no ruído de rotinas
não se escutam, nem sempre dizem
e reinventam-se por vezes no almofariz de um alquimista
como um cálice de persistente loucura, mas boa e cheia de sentido -
as palavras batem cruamente nos desenhos de um muro, por vezes não entram
no som oco do tijolo, na porta, na fechadura
e deformam-se e misturam a incompreensão dos sinos
mas por vezes como chaves dirigidas, têm boca e têm dentes
e rodam certas no cronómetro do tempo
provocam a síncope na anacronia que colocava anteriormente
um aro em volta do espelho como uma redoma de espinhos
e a porta abre no primeiro lugar, no suave distendido
num cimo do monte
onde os pés podem ser mãos,
despentear os cabelos e tapar os ouvidos
um eco completo que inunda as planícies -
josé ferreira 17 dezembro 2011
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
o nº 1 da revista ATHENA _ Outubro de 1924
Tive a oportunidade de consultar e fotografar o nº1 da Revista ATHENA - Revista de Arte, dirigida por Fernando Pessoa e Raul Vaz,editada em Outubro de 1924 e na qual se publicou a tradução do poema "O Corvo" de Edgar Allan Poe, as Odes de Ricardo Reis e ainda a peça de Almada Negreiros "Pierrot e Arlequim". Resolvi partilhar algumas dessas páginas.
sobre a evidência do sonho - fragmentos de Coimbra de Matos
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
seria indevido como um relâmpago
Thomas Struth
seria indevido como um relâmpago
partir ao meio o tronco
separar o som dos sinos
os mil fragmentos dos vidros -
quem poderá ser anjo sempre
de asas caídas
quando sopra o vento sul
e se perde a bússola
e se perdem os dias, os dias
os dias prometidos
e se perdem as causas e se embrulha um lençol branco
um sudário sem cor e sem espinhos
porque foi uma partida, um desvanecimento físico
um desvanecimento de presença e de sentidos
uma ausência de leituras
vapores insolúveis arrumados dentro de frascos antigos
em prateleiras largas de cerejeiras, polidas de ceras
aos pares, em brincos, vermelhos, sobressaindo
de aromas verdes de folhas, mal apreendidos –
sobram brancos e cinzentos
e seria indevido o silêncio das fontes
a elegia da sombra
ao omitir as gotas de água, para que a sede subsista
para que a semente se elimine -
josé ferreira 15 de Dezembro 2011
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
areias esvoaçantes
Renée Magritte
(...)
Areias esvoaçantes, sob o foco dessa luz, enchiam-lhes o quarto, o claro território da ternura.
Então adormeceu, com a mão dela na sua mão, e entre os cabelos dela. A princípio ainda escutava, no fundo longínquo de si, o pulsar das nascentes do sono; depois tornou-se tudo azul e inefável, era o prolongamento daquela felicidade de asas e orvalho.
(...)
Urbano Tavares Rodrigues
entrei pelo mar - um poema de Ruy Cinatti
sábado, 10 de dezembro de 2011
saliento esse silêncio que te abarca
Gerard Richter Tate Gallery
saliento esse silêncio que te abarca e te reduz, não o uses.
na demasia, fractura e alucina, esfuma,
desvanece a brasa simbólica no manto escuro do céu;
essa lua magnífica que envolta, rodeia e se envolve
num crepúsculo de segredos. sublima
perto das pontas dos dedos, nas faces verdes,
nos musgos certos que decoram os muros. afirma
essa dança habitual, o acordeão, o violino,
o sublinhar das melodias, e desliza
por sobre a frialdade das noites
como a musa dos gregos, do parténon,
das ágoras duplas e inventadas,
esse lugar de ninfa
acariciando na ponta dos pés
as pedras mais difíceis -
josé ferreira 10 dezembro 2011
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Quero sentir brotar a espiga do universo - um poema de Paul Eluard
(...)
Quero sentir brotar a espiga do universo
Tenho o sublime instinto da chuva e do fogo
Fecundo a terra e restituo à luz
O leite dos seus anos férteis em milagres
E devoro e alimento o esplendor do céu
Apenas temo a sombra atroz do silêncio
Pronuncio pedra e aí se aninha a erva
Aí se reflecte a vida excessiva e móvel
A penugem de um pássaro é musgo no granito
Uma débil trepadeira devora um muro de pedra
O canto do rouxinol diminui a noite
Presa do alto a baixo em minha voz flexível
A floresta aglutina-se ou então entra em férias
Ravinas e pântanos em minha voz renascida
Aligeiram-se como um corpo que se despe e canta
Mares planícies desertos nasce o dia na terra
Vitoriosa aventura das cores dos sabores
A flor é o fermento da minha língua faladora
O tempo não passa quando o ruído cintila
E refaz cada aurora com o nome de uma flor
(...)
Paul Eluard, Algumas das Palavras, Trad. António Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge, Dom Quixote, 1977
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
Próspero morreu (II) - um novo livro de Ana Luísa Amaral
"Em Próspero morreu, aquele que é o seu primeiro texto em forma dramática, Ana Luísa Amaral convoca vozes vindas de tempos diferentes e tradições diversas, que falam do amor, do poder, da ambição – e da magia. “Próspero morreu” e, com ele, uma ordem chegou também ao fim. “Sem liberdade é o poder um monstro / de braços bifurcados e língua bifurcada / onde se alojam leis sem pensamento / e se torna viscoso o coração” – o aviso é de Ariel, “ser vindo do caos e do abismo”, cuja voz anuncia a chegada à ilha de gentes de paragens várias. Será na ilha que se entrecruzam os vários fios que dão lugar às histórias de Penélope, de Teseu e Ariadne, de Barbara (a escrava) e Luiz, e também a história de amor entre Ariadne e Caliban." retirado do blog Graphias
Foi esta a história do labirinto,
as ilhas, e além.
E eu, que a contei, ou eu, coro de nós,
irei ficar em história.
Escrava dos tempos, mas do tempo livre.
Que mais a desejar, senão memória?
Caiu a noite. E sopra um vento fino.
E não é já assombro
assombro tal?
Ana Luísa Amaral
terça-feira, 6 de dezembro de 2011
era uma mulher escrita há muito tempo
ou talvez fosse uma mulher sentada numa cadeira
com a hipótese de cair lá dentro
a sala à volta era suficiente
mas ela interessou-se pelo espaço quieto dentro da madeira
na quase divergência que era ver-se
com um infinito por dentro
a ser ultrapassada devagar
era a cadeira o mais apetecível
o importante equilíbrio da matéria sem vontade
será o não saber do problema da velocidade das coisas
que a debruçava para dentro
porque havia espaços mais quietos ali
espaços onde certamente os espaços dela podiam ser atrasados
não a forma e o nome de esperar
teriam ali dentro ficado debruçados de outros
e acima de tudo o que não podia entender era que de entre as duas
a que ficasse não devolvesse ali quieta
a história de movimentos lancinantes
de demandas a moinhos bem explicados
da velocidade ridícula a que se gastam as coisas vivas
tinha um século aquela cadeira
à medida de a assustar
e não lhe devolvia quase nada
a não ser que lhe fora escrita por um infinito
para outro que lhe iria nascer e sentar-se
na mesma cadeira
que a ultrapassou devagar
as planícies indizíveis
Lilla Cabot Perry
há músicas que nos invadem os ouvidos
e descem pelas cordas da alma
como as ondas do mar,
em milhares de gotas, brancas como a lua -
uma miríade, leve, pura, húmida,
um olhar suave e triste de mil versos, dez mil palavras –
nas mãos cansadas coloco as linhas dobradas da mente,
os quadros sem a negritude do ressentimento,
o voar dos pressentimentos, as histórias das cidades
as espumas que procuram asas, na amplitude de voarem
como os pássaros –
escuto, deitado, a longitude do som nas latitudes do corpo,
a intersecção do oblíquo e de um ritmo síncrono,
o reencontro dos sonhos, as sintonias das ilhas -
porque há dias marcados e claridades sem labirintos,
onde teias completas de bordados
tecem o improviso, o unir de dedos, o fechar de braços,
o unir de lábios, por planícies indizíveis -
josé ferreira 6 dezembro 2011
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
a lua no chão
Billy Brandt
seja assim a lua
escondida no manto escuro.
nada que não previsto antes
pela natureza, pelo destino,
por um deus desconhecido -
às noites sucedem claridades
aos dias as fervuras de veludo
e tudo pode ser sígnico no imediato
como o branco ser branco para que o preto magoe.
um Eco dizia que o homem é um animal simbólico
e assim sou, como as folhas de Outono ou como as abelhas
no pólen da primavera, sempre azul,
por vezes melancólico como as teclas de um piano
estendendo a cabeleira, fechando os olhos, interiormente,
ou então um Papageno soltando alegrias
desnudo e sensível, dirigível a Pamina
como um barco que descobre o rumo -
quando vestia calções e couros cor de mel nas sandálias largas
percorria caminhos de terra, respirava o pó ou os aromas molhados
afagava o pêlo dos animais e pensava no sol de uma outra forma.
como bem determinaste o coração cresceu,
guarda portas fechadas e ainda mais espaço;
uma sala onde há livros espalhados,
uma montanha mágica
e um barco de Ulisses sempre em viagem -
não sei se é fraqueza ou excesso de querer essa força que dispara.
as setas enganam, duplas, simultâneas, atingindo os dois lados.
e não é uma questão de perdoar, é entendimento de lugares;
a dinâmica, não o imobilismo das faces, não a falta de intencionalidade,
é tudo ao contrário.
se estiveres de costas para o céu
e sentires o ruído de asas metálicas, poderás dizer: é um avião
e poderás sentir uma imensa vontade de voar, de visitar Londres ou Paris
abrir uma janela no boulevard, ou perto do British Museum,
abrir os dedos de uma mão e juntá-los como lava numa outra mão
e podes abrir um imenso sorriso, perder sete vezes a gravidade
mesmo sem sair do chão.
podes sorrir, sentir o afecto, a pertença
a realização, um sonho, de costas para a cidade no cimo das costas do céu
e pode ser bom -
não é determinismo, nem sequer ironia fraca ou cepticismo permanente,
é o respirar sempre, habitar as metades de tudo procurando a melhor direcção
porque há uma estrela de norte e um brilho de oriente.
não pretendo desvendar todos os véus subtis, o indelével que seduz.
há margens, estradas de poeiras, as vias lácteas perto da lua.
mas prossigo.
essa é a grande música que cresce dentro dos ouvidos -
josé ferreira 5 Dezembro 2011
domingo, 4 de dezembro de 2011
sexta-feira: é totalmente certo o pressentimento
David Hamilton
tenho pressa, procuro a porta aberta, do café.
sobra ainda meia hora nos ruídos da cidade.
os rostos transfiguram-se em sorrisos frágeis
sabendo de cor o último dia antes de sábado -
só se reconhece o natural nas corridas das crianças,
de mochilas soltas. há sombras por todo o lado.
sentado nesta mesa leio as tuas palavras, uma lava, pura,
do fundo da alma, enquanto abro mais olhos
depois de ter roubado as células vivas na cafeína.
os versos de sexta-feira costumam cair como nevoeiros
um afirmar de opacidades, suficientemente redondas
para esconder as arestas, as saliências.
e é totalmente certo o pressentimento, existes e existo.
talvez continuemos o voo indefinido dos ventos?
o particular subir aos céus como mártires de juízo?
e seremos com certeza a raça diferente,
sempre preocupada com os outros
perdendo o pouco tempo das existências
porque demasiado exigentes no sentir profundo do corpo e da mente.
escutamos todos os dias os sabores urbanos;
as alegrias, os espectáculos e os momentos reticentes;
houve greves de metro, greves de autocarros, greves de gente.
pessoas sofrem no patamar mais baixo, a segurança,
a fisiologia dos inocentes, de gritos silenciosos
em permanência, sempre, impotentes,
e isso magoa tanto, causa imensa revolta e queremos
abrir os punhos, acusar os impunes, os novos abutres
que não rejeitam as reformas falsas
bebendo copos de vermute –
e é totalmente certo o pressentimento, existes e existo.
somos dois filhos de luas brancas, e quando sonhamos
somos o fogo dos puritanos, erguendo as leves asas do vento
subliminares aos oceanos, a segunda pele –
não sei porque de vez em quando perdes o leme
e misturas cenas sonâmbulas, sem vermelho,
a preto muito preto, na distância –
por vezes não te reconheço, difusa e breve.
sobe o arrepio, o frio e o medo
enquanto os teus fragmentos se esfumam
num continuum viajar de sombras, só nocturna
escondendo as terminações dos dedos,
as cintilações dos poemas, os olhos sobre os joelhos
depois de serem belos, muito belos
e únicos, e belos, muito belos, como os dias de céu -
josé ferreira
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
PENSAMENTO
Um poema é uma espécie de critério de desempate entre o eu físico e a sua condição mais metafísica.
Sylvia Beirute
Sylvia Beirute
poema em letra pequena sobre a irreprodutibilidade
Lilla Cabot Perry
imprevisível,
como os astros que existem por detrás de galáxias.
de encantos distantes, inconcebidos e misteriosos.
um quadro de Dali surgiu como âncora.
falaram ininterruptamente enquanto segurava um vaso de prata
de olhar fixo nos outros rostos que passavam , não tão leves
não tão feitos de intangíveis transparentes, outras densidades.
laços invisíveis ataram os pés e suspenderam os corpos
no alto, sem gravidades.
não se tocaram e continuaram a trocar diversidades.
agora era Klimt que seduzia no ouro esfumado de figuras sofisticadas.
surgia, mais à frente, Picasso
e depois Magritte com chapéus et une pipe, intrigante, inconfessável.
fumaram um cigarro, soluçaram um pouco de fumo e fizeram um arco que rodou e rodava
até perder alguma nitidez, e desaparecer numa dança sem voz, no ar, diminuído
até ao diminuto de um átomo.
disse que gostava de Pessoa, de ser pessoa, de ser algo mais que o intermédio.
lançou dúvidas sobre os oráculos que dizem ultrapassar todas as barreiras
sem nunca falar de morte nem de dores que caminham lado a lado,
a mesma verdade que acompanha os oásis e a ardência das chamas, quando significam
mais do que fogo e mais do que um estado sólido e físico do corpo.
concordaram na alegoria, na semelhança, na simetria reflexa,
e na consequência de estarem por demais absortos nas evidências bruxuleantes.
os laços que se encontravam ainda mais ligados, apertaram . os arcos de fumo
ganharam permanência e rotina, aproximaram -
surgiram depois os óleos mais clássicos, alguns olhares de deuses, de ágoras, as praças gregas
seduzindo de razões e notoriedade, um simbolismo do atingível que perseguia as horas
e colocava túnicas de vidro, brisas de passado em lugares mágicos.
falaram do mar
da imponderabilidade das espumas, do sal.
e as lógicas secaram as nuvens e recriaram azuis de Rubens,
fluidos, imemoriáveis, inumanos, na irreprodutibilidade, filhos da aura,
como flores totalmente únicas, ricas em pólen
e aromas
e láudano -
josé ferreira 1 de dezembro 2011
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