domingo, 4 de dezembro de 2011

sexta-feira: é totalmente certo o pressentimento


David Hamilton

tenho pressa, procuro a porta aberta, do café.
sobra ainda meia hora nos ruídos da cidade.
os rostos transfiguram-se em sorrisos frágeis
sabendo de cor o último dia antes de sábado -
só se reconhece o natural nas corridas das crianças,
de mochilas soltas. há sombras por todo o lado.
sentado nesta mesa leio as tuas palavras, uma lava, pura,
do fundo da alma, enquanto abro mais olhos
depois de ter roubado as células vivas na cafeína.
os versos de sexta-feira costumam cair como nevoeiros
um afirmar de opacidades, suficientemente redondas
para esconder as arestas, as saliências.
e é totalmente certo o pressentimento, existes e existo.
talvez continuemos o voo indefinido dos ventos?
o particular subir aos céus como mártires de juízo?
e seremos com certeza a raça diferente,
sempre preocupada com os outros
perdendo o pouco tempo das existências
porque demasiado exigentes no sentir profundo do corpo e da mente.
escutamos todos os dias os sabores urbanos;
as alegrias, os espectáculos e os momentos reticentes;
houve greves de metro, greves de autocarros, greves de gente.
pessoas sofrem no patamar mais baixo, a segurança,
a fisiologia dos inocentes, de gritos silenciosos
em permanência, sempre, impotentes,
e isso magoa tanto, causa imensa revolta e queremos
abrir os punhos, acusar os impunes, os novos abutres
que não rejeitam as reformas falsas
bebendo copos de vermute –

e é totalmente certo o pressentimento, existes e existo.
somos dois filhos de luas brancas, e quando sonhamos
somos o fogo dos puritanos, erguendo as leves asas do vento
subliminares aos oceanos, a segunda pele –

não sei porque de vez em quando perdes o leme
e misturas cenas sonâmbulas, sem vermelho,
a preto muito preto, na distância –
por vezes não te reconheço, difusa e breve.
sobe o arrepio, o frio e o medo
enquanto os teus fragmentos se esfumam
num continuum viajar de sombras, só nocturna
escondendo as terminações dos dedos,
as cintilações dos poemas, os olhos sobre os joelhos
depois de serem belos, muito belos
e únicos, e belos, muito belos, como os dias de céu -

josé ferreira

1 comentário:

Mel de Carvalho disse...

a enorme diferença entre a poesia banal e corriqueira e aquela que sai da alma, direi, reside, no detalhe, na imagem renovada - no pressentimento diferenciado, volto aqui e leio-o, partindo certa de que, a cada volta de verbo, se sublimará o trajecto das asas.

"e é totalmente certo o pressentimento,[...] erguendo as leves asas do vento
subliminares aos oceanos..."

gratidão, a minha, sempre, pela partilha.

abraço fraterno
Mel