quinta-feira, 31 de março de 2011
poema 401 - a urgência
fotografia retirada da internet
nas urgências sofre-se.
passam batas brancas e azuis
anunciam-se alertas laranja
e servem-se sopas quentes
em tupperwares com tampa
que não destapam a dor
aquela mesma soletrada nas mãos do doente
agarrada aos ferros da maca
uma cama que não fala
mas sobe e desce
de acordo com a altura adequada.
nas urgências sofre-se.
não há qualquer poesia nas palavras
apenas disfarces nos olhares de mais audácia
e não há poesia alguma nas palavras
no corredor cheio de medos e marcas
pelas dores que não são nossas
mas passam -
José Ferreira 30 Março 2011
quarta-feira, 30 de março de 2011
o recorte da lua
terça-feira, 29 de março de 2011
Muito pouca
Richard Avedon "Marylin Monroe e Arthur Miller"
a morte é uma coisa muito pouca
em nada se compara ao crescimento das constelações
a morte não respira nem se expande desde o centro
como fazem as estações desde o coração da terra
e assim eu sei que um sorriso é precioso
porque respira e alarga-se dentro dos olhos
e quando chega ao lugar em que a mão se abre
é já uma forma de sossego uma lua coberta de luar
um modo certo de trocar nomes em dias de excepção
Vasco Gato "Um mover de mão" Assírio & Alvim 2000
domingo, 27 de março de 2011
Fragmentos IV - Ternura
Marc Chagall "Enchantement"
Ternura. Prazer, mas também a valoração inquietante dos gestos ternos do objecto amado, na medida em que o sujeito compreende que não tem o privilégio
1. Não é apenas a necessidade de ternura, é também a necessidade de ser terno para com o outro: fechamo-nos numa bondade mútua, somos reciprocamente maternais; regressamos à raiz de toda a relação, aí onde a necessidade e o desejo se confundem. O gesto terno diz: pede-me seja o que for que que possa adormecer o teu corpo, mas não te esqueças também que te desejo um pouco, ligeiramente, sem nada querer para mim imediatamente.
Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso"
sábado, 26 de março de 2011
Santa Suspensão da Descrença (o caso de Maria Jaguar M.)
1. O amor mora na suspensão da descrença. Somos nós que, a certa altura, mantendo a mesma pose de vigilantes do que não auferimos, resolvemos acreditar no amor e desacreditar (nem que seja por breves momentos) na crença de que o amor é, ele próprio, uma crença, com tudo o que uma crença tem de estático e letal.
2. A certa altura da sua vida, também Maria Jaguar M. decide suspender a sua descrença. Já o tinha feito anteriormente com filmes, livros, gestos, concertos, conceitos, mas nunca com ela como autora ou protagonista, nenhuma forma que a levasse como agora ao reflexo, ao seu outro-próprio reflexo, e à árvore milenar da asfixia.
A rota arredondada dos dias, talvez, mas também a liquefacção dos trajectos de sempre, a débil companhia de uma senhora com pelo menos mais 20 anos do que ela e 200% de catolicismo.
Todas estas coisas (e outras que me não me canso de dizer) tiveram o seu peso para que Maria Jaguar M. decidisse suspender a sua descrença e acender um fósforo à porta de um labirinto.
3. O autocarro é um cavalo de chapa quente e monotonia. A manhã colide com o autocarro, que rasga as últimas partículas da noite, desmascara com o seu focinho achatado e inocente as núpcias negras dos vestígios. As pessoas colidem dentro do autocarro, sentadas com a alegre previsibilidade dos dias. Está tudo imensamente triste, mas acaba sempre por haver quem brinque com a convicção de que nem tudo está perdido. Maria Jaguar M., por exemplo, vem distraída. Vem todos os dias distraída. Nunca a vi validar o bilhete. A máquina com ela coíbe-se. Nunca a ouvi dar um passo sequer, mesmo quando sugere ser mortal, o rosto um pouco melancólico, um pouco atribulado e esquecido, entre a descrença e a suspeição de que pode, nem que seja por uma só vez e para sempre, suspender a descrença, voltar à vida. Não leva livros, pelo menos visíveis, mas é como se os levasse. Estou a ensiná-la aos poucos a descrer, a descrer mais ainda, mas a verdade é que ela também me ensina, quando descrê que eu exista na mesma perspectiva que ela queria que eu existisse, só para ela. E, por isso, suspender a descrença tem sido mais literatura que litígio. Mais perfume que consequências.
No entanto - e à hora enganadora que é -, a razão atravessa-a agora de lado a lado, como um raio de sol que movesse o autocarro para fora das leis dos transportes terrestres, abnegados e colectivos. O autocarro finge que voa só para mim. Revolta-se e voa. Dá estranhamente fé do indivíduo.
sexta-feira, 25 de março de 2011
Um poema de Sophia - Ítaca
Saul Leiter
Quando as luzes da noite se reflectirem imóveis nas águas
[verdes de Brindisi
Deixarás o cais confuso onde se agitam palavras passos
[remos e guindastes
A alegria estará em ti acesa como um fruto
Irás à proa entre os negrumes da noite
Sem nenhum vento sem nenhuma brisa só um sussurrar de
[búzio no silêncio
Mas pelo súbito balanço pressentirás os cabos
Quando o barco rolar na escuridão fechada
Estarás perdida no interior da noite no respirar do mar
Porque esta é a vigília de um segundo nascimento
O sol rente ao mar te acordará no intenso azul
Subirás devagar como os ressuscitados
Terás recuperado o teu selo a tua sabedoria inicial
Emergirás confirmada e reunida
Espantada e jovem como as estátuas arcaicas
Com os gestos enrolados ainda nas dobras do teu manto
Sophia do Mello Breyner Andresen "Geografia"
quarta-feira, 23 de março de 2011
os barcos planos dos papiros
muito falámos de papiros, esse papel em tiras e antigo
onde dormem, enroladas, em imagens, as palavras.
e vejo-as, precisas, na geometria de uma colmeia
favos, favos de mel doce, de geleia, abelhas , asas.
e vejo-as, as palavras, nascentes, rios, águas decididas
em queda, mas sempre brandas, suaves
sedas, onduladas de brancos, de rubros, de verdes
na lisura digital dos meus medos
voltas em voltas, círculos velozes na cabeça
nos cabelos tisnados de negro -
escrevo-as soltas e unem-se.
independentes, insubmissas,
diferentes, imprudentes, permanentes, resistentes
como barcos planos de papiros
navegando, navegando, sempre e quando
tão parados e ao mesmo tempo sem sossego -
nunca te afastes do mar,das cores, dos segredos
esses fumos de incenso, névoa, névoas
nunca te afastes do mar. não confies no silêncio
neblinas de substância, de sentidos
sombras de sombras, cortinas, espelhos -
por vezes, não escrevo. enclausuro a tinta
pouso a caneta no tampo ou dentro do bolso esquerdo
enquanto me visita o gato branco
o castanho de muito pêlo
o cinzento encostando uma orelha
e o outro como um novelo, de cabeça e dorso ao mesmo tempo -
e doem-me os dedos em cada movimento, enquanto penso -
e todas as articulações do peito, no incomportável receio
enquanto penso -
nunca te afastes do mar
da semente -
terça-feira, 22 de março de 2011
Fragmentos III - A dedicatória
José Torrent
O presente de amor procura-se, escolhe-se e compra-se na maior excitação - excitação essa que parece ser da ordem da felicidade. Calculo activamente se este objecto dará prazer, se não desiludirá ou se, pelo contrário, parecendo muito importante, ele próprio não denunciará o delírio - ou o logro - em que estou preso. O presente de amor é solene; arrastado pela metonímia devorante que regula a vida imaginária, transporto-me inteiramente nele.
Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso" ed. 70
segunda-feira, 21 de março de 2011
minha amiga poesia, admiro-te
Salvador Dali 1934
minha amiga poesia, admiro-te.
hoje foi difícil.
acordei com os olhos demasiado fechados por um vento aberto
e escondi as pupilas nos vidros redondos
mesmo debaixo das sombras.
bem sei que é o teu dia. bem sei que é Primavera.
mas foi difícil. talvez logo com o fogo das estrelas
e uma pena de tinta permanente
consiga de novo procurar-te no silêncio da noite
no sossego de um mocho e de uma árvore que conheço
aquela onde de asas recortadas vejo tudo ao contrário
como os morcegos -
e não vejo a rua.
só a musa que conheço. descalça.
girando girando em danças de véus brancos
girando girando na superfície mais lisa do teu ventre
esse lugar onde habitas
minha amiga poesia -
José Ferreira 21 Março 2011
no dia mundial da poesia
.
.
"dia mundial da poesia"
fragmentoisas - e outras colagens - em reflexos invertidos
raquel patriarca | vinteeum.março.doismileonze
."o pão é fundamental, a poesia é supérflua. mas o homem não consegue viver sem o supérfluo. pão e poesia andam lado a lado."
ana luísa amaral | vinteequatro.fevereiro.doismileonze
poesia
.
tu –
mal sentada e meia de lado –
na madrugada da página
.
e eu
que não sei nada do mundo ou das coisas da vida –
e estou longe –
a ler-te
.
tu –
mal sentada e meia de lado –
na madrugada da página
.
e eu
que não sei nada do mundo ou das coisas da vida –
e estou longe –
a ler-te
.
raquel patriarca | vinteeum.março.doismileonze
domingo, 20 de março de 2011
Um poema de Ana Luísa
Mary Cassat "Auguste lendo com a filha" 1910
POESIA (OU PALIMPSESTO)
Limpa o cesto bem limpo,
mas deixa lá ficar sombra ligeira:
essa primeira sílaba.
Sobre ela,
podes encher o cesto com mais sílabas,
e até outras palavras.
Terás assim um cesto
que aos olhos de quem vê
é um cesto só teu,
onde escondeste as coisas
do costume dos cestos: flores, solidões,
rastilhos, bombas.
Foi limpo o cesto
aos olhos de quem vê,
mas tu sabes que não.
Que houve ali um momento de ladrão,
quando nele ficou
a sombra dessa sílaba.
E agora mostras
a toda a gente o cesto,
e não há sombra.
Há só a mão que surge
e pega no teu cesto,
o toma devagar.
E o olha com olhos de quem lê,
e o limpa muito limpo,
ao teu antigo cesto,
deixando lá no fundo,
disfarçada,
uma segunda sílaba.
Ana Luísa Amaral
sábado, 19 de março de 2011
A minudência de um cisne
Meia-noite e a minudência de um cisne. Num determinado ângulo, a electrocussão de um cisne, apenas e apesar de tudo, visível pela vibração das ondas concêntricas, que se formam quando a pedra derruba a sanidade espontânea do charco e deixa-se ir, na validação consequente do gesto, na trepidação elegante e convulsiva, na direcção mais sinistra, até ao fim, até que o atrito a separe do movimento que ela, se pudesse, manteria para sempre impingido.
E como é maravilhoso ver uma pedra deixar-se impingir.
Aproximemos, por isso, a fé da objectiva, a ganância do credo, a prática do sistema mental que o branco do cisne produz no seu duvidoso equilíbrio, como se o cisne não passasse de uma representação fria de um ansiolítico tomado a desoras, perto da periferia do nada a sua total inadequação ao tumulto e não obstante as ondas, a frequência, o imprinting, pedra-água-meia-noite-e-a-minudência-de-um-cisne.
Sejamos leais com as evidências. Foquemos o momento em que a arte radicaliza o momento da meia-noite e da minudência de um cisne, o momento em que o cosmos abre totalmente o ângulo determinado onde só é possível a electrocussão de um cisne, apenas e apesar de tudo, a electrocussão de um cisne, e voltemos às 23 e 59 do cadáver do dia anterior, porque no dia seguinte é meia-noite ainda e a minudência de um cisne.
sexta-feira, 18 de março de 2011
I e II e III
Paul Klee 1939
I.
Na cidade não se falava de amor
mas eu amava
e resistia à cidade
porque falava de amor.
II.
Uns viviam em ruas com nome
de escultor,
outros viviam em ruas com nome
de pintor,
muito poucos viviam em ruas com nome
de gente.
III.
Na cidade tudo era circular:
terminava no mesmo ponto
em que começava.
Redondos, inúteis,
sobrevivíamos
como as montanhas lá ao fundo.
Filipa Leal "A cidade líquida e outras texturas"
uma poetisa de quem gosto...
Era ontem quando o rodado das bicicletas passeava na estrada solarenga e levava os nossos risos transformados em eco de gargalhadas aos vales da nossa infância. Fazíamos grinaldas com o branco dos carrapiteiros que nos aguardavam na caminhada. Pareciam sorrir por entre a brancura florida e pactuavam connosco nas descobertas. Tínhamos o mundo nas mãos. Adormecíamos no tapete dos sonhos e inventávamos a felicidade.
Dalila Moura
poesia e outras surrealidades úteis
o dia em que atingiu a maturidade não tinha nenhum significado especial. era quinta feira e o sol tentava desarrepelar-se das nuvens. a meio caminho de atravessar a estrada, sem os vestígios da epifania ou apoteose que se esperam num momento de absoluta clarividência, descobriu uma verdade fundadora. quando pisou o passeio do outro lado, estava em paz. aceitara sem reserva a natureza desajustada de si próprio e a incapacidade molecular para compreender a aritmética das coisas da vida. aceitara a incoerência como condição essencial de existência e o absurdo de depender a felicidade nos sorrisos alheios, na poesia e noutras surrealidades úteis.
.
raquel patriarca | dezassete.março.doismileonze
talvez
a tulipa esguia e alta. caule e pétalas.
no lado esquerdo. repara. alta.
e o silente batente de um metrónomo. repara.
travo o fumo do cigarro.
uma digestão de palavras. um diálogo íntimo
de olhos abertos e olhos fechados
onde há realidades
e onde os sonhos se surpassam
como cenas de um teatro de gaivotas
em recorte curvilíneo de asas
onde
areias finas
uma enseada -
penso na porta aberta de um espelho
quando anoitece
quando a lua solta as cordas da cítara
e canta. alta.penso -
talvez solte o fumo.
talvez pouse os braços.
talvez apague o cigarro.
talvez vista o casaco.
talvez saia no volume negro da cidade
pelas ruas largas, pelas ruas gastas.
talvez saia talvez saia
de rosto aberto e botões apertados.
talvez saia talvez saia
ensaiando a face
ensaiando as palavras
na esperança branca de um segredo
e na presença dos teus olhos -
José Ferreira 18 de Março 2011
quinta-feira, 17 de março de 2011
Momento - poesia e imagens num filme de Manuel de Oliveira
Uma espécie de céu
Um pedaço de mar
Uma mão que doeu
Um dia devagar
Um Domingo perfeito
Uma toalha no chão
Um caminho cansado
Um traço de avião
Uma sombra sozinha
Uma luz inquieta
Um desvio na rua
Uma voz de poeta
Uma garrafa vazia
Um cinzeiro apagado
Um hotel na esquina
Um sono acordado
Um secreto adeus
Um café a fechar
Um aviso na porta
Um bilhete no ar
Uma praça aberta
Uma rua perdida
Uma noite encantada
Para o resto da vida
(Refrão)
Pedes-me um momento
Agarras as palavras
Escondes-te no tempo
Porque o tempo tem asas
Levas a cidade
Solta me o cabelo
Perdes-te comigo
Porque o mundo é o momento
Uma estrada infinita
Um anuncio discreto
Uma curva fechada
Um poema deserto
Uma cidade distante
Um vestido molhado
Uma chuva divina
Um desejo apertado
Uma noite esquecida
Uma praia qualquer
Um suspiro escondido
Numa pele de mulher
Um encontro em segredo
Uma duna ancorada
Dois corpos despidos
Abraçados no nada
Uma estrela cadente
Um olhar que se afasta
Um choro escondido
Quando um beijo não basta
Um semáforo aberto
Um adeus para sempre
Uma ferida que dói
Não por fora, por dentro
Pedro Abrunhosa
quarta-feira, 16 de março de 2011
Janeiro
É esta a completude dos dias
Quando se reúnem sobre a cidade
Os sossegos da nossa idade já meiga.
São estas as palavras que ficam
Desde o interior do nosso mais antigo nome.
É o inverno aberto de janeiro
Com as árvores despidas e o frio azul,
É o ano que começa no tempo que é nada,
Os bolsos que se enchem de mãos,
As casas que parecem mais juntas.
Por esta altura estarão a nascer
As horas mais felizes das nossas vidas
- bebemos chá escutando o lume
E amanhã será um dia a menos,
Um outro som acrescentando à voz,
Um abraço fechando-se até ao amor.
Vasco Gato "Um mover de mão" Assírio & Alvim" 2000
terça-feira, 15 de março de 2011
a preto no preto ou de branco no vazio
realmente não me sinto. é um daqueles dias
a preto no preto ou de branco no vazio.
não me sinto. a realidade um quadro de giz
uma bata atomizante de uma classe sem rosto
o difuso de uma imagem indefinida, um fumo
uma nuvem sem chuva
como rama suspensa nos ramos do tempo.
o contemporâneo.
o momento.
não me sinto. pronto.
não há olhos redondos - o pulsar dos dedos
os tremidos lábios - a sensualidade dos seios
o contar minucioso dos cabelos.
não existe a poesia dos sentidos.
é um daqueles dias e pronto
não me sinto -
sabes aquela música dos Beatles all you need?
não. não consigo.
sabes a teimosia das palavras
o não desistir nunca?
mas hoje é um daqueles dias -
não. não consigo -
não fales comigo.
não me sinto -
ou sinto em demasia -
José Ferreira 15 de Março 20011
segunda-feira, 14 de março de 2011
um quadro quotidiano junto dos azulejos
Fotografia retirada da internet
a melhor forma de responder
é não fazer a pergunta
ambos sabemos
a cor dos olhos
o medo -
perpendicular a Santa Catarina
na esquina de azulejos
a cor é ténue e branda
uma imagem difusa na estética imprecisa da rua
mas é indiferente o conteúdo
as cenas planificadas na parede
os ruídos incomodativos na calçada
os gestos e os sorrisos de outras vidas.
apenas não esperes a pergunta
não necessária mesmo fútil
para uma verdade impossível
aquela que traça a distância
aquela que traça o abismo -
beijo-te como sempre -
José Ferreira 14 Março 2011
domingo, 13 de março de 2011
Estranho é o sono que não te devolve
Gerard Castello Lopes
Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.
Daniel Faria "Explicação das Árvores e de Outros Animais"
sábado, 12 de março de 2011
Palimpsesto
Palimpsesto
-------------------------------------------------2001: Odisseia no Espaço
Ilumina-se o espelho do meu espírito –
Reflecte fantásticos momentos e o meu
Extasiado olhar – ao fundo o mar
Onde bailam paisagens distraídas e eu
Tranquilo e só nas húmidas areias;
Voam gaivotas beijando as águas ávidas
De pão que apazigua a fome
E a aventura –
De súbito as ondas são fogo a deslizar
Em direcção à praia
Deixando para trás as tintas que desmaiam
Amalgamando-se nas águas lá longe na linha
Do horizonte.
Incapaz de me mexer, fico aflito e preso
À beleza aterradora – o medo imobiliza,
Lugar armadilhado –
E fugir não é remédio, movo-me apenas dentro
Da vontade atada, e o fogo cresce e desaparece
O mar – um grito é o bastante para estilhaçar
O espelho –
Do sono criador – soube-o depois – ergue-se
O palimpsesto –
2011.01.13
José Almeida da Silva
sexta-feira, 11 de março de 2011
A carta de Paris
josé ferreira
neste café de Paris escrevo-te o ainda princípio
perdida nos signos de uma nova língua
ao som de Tiersen. um acordeão. uma camisa.
na vista do boulevard a transparência intermitente
de desconhecidos passos e ruídos. o burburinho.
na ópera anunciam Aída e penso ainda em Antígona.
“- madame? - café au lait s’il vous plaît et un croque monsieur.”
escrevo-te nas folhas picotadas do bloco preto
o acordeão toca. a música plana.
dispo o casaco. separo da casa o primeiro botão da camisa.
entra um ar frio. arrefeço.
em Orly perdi as nuvens habitadas de um espaço imenso
onde sempre me imagino sentada numa asa
segurando a saia de cabelos ao vento
os pés descalços e frescos.
loucura. loucura consciente.
abstracção inefável. a leveza insustentável.
escrevo-te e descrevo-te os primeiros lugares da ausência
o silêncio que lamento. escrevo-te enquanto espero
os vapores e aromas de uma chávena quente.
escrevo-te.
fecho os olhos e parece que te vejo.
acenando. uma das malas pequenas. um barco.
acostando. junto à ponte de Neptuno. do tridente.
nas escadas sorridentes do cais. na margem do Sena.
lamento. lamento a ausência. os seis meses de distância.
escrevo-te. escrevo-te no momento antecedente
de rodar em círculos na espuma fumegante
a valsa doce em dissolução.
aqueço. a música. o acordeão. Tiersen.
o primeiro botão da camisa -
Amélie -
sementes que nascem em terra queimada I
anteontem.
inquietude tão imprudente
rasga-me.
apetece demais bulir
agarro-me.
ontem.
da paralisia
não resvalou repouso
antes fosse sono.
inquietude tão imprudente
rasga-me.
apetece demais bulir
agarro-me.
ontem.
da paralisia
não resvalou repouso
antes fosse sono.
Exilada
Hoje, noutros agasalhos
não traz quase nada, o frio.
à espera do despontar
da flor de urge, a borboleta.
aqui longe a imaginar
pode o vento que junta
separar as nuvens
ninguém nota, inversão
e receio, até quando deixa
escorrer de mel, se e se
não chega mais flor.
vê, o escorrer das gotas
no vidro, só ainda não choveu.
nas ruínas da ponte
já não importa se é raro!
não traz quase nada, o frio.
à espera do despontar
da flor de urge, a borboleta.
aqui longe a imaginar
pode o vento que junta
separar as nuvens
ninguém nota, inversão
e receio, até quando deixa
escorrer de mel, se e se
não chega mais flor.
vê, o escorrer das gotas
no vidro, só ainda não choveu.
nas ruínas da ponte
já não importa se é raro!
[a geada]
Deixamos os segredos atados aos
ramos das árvores
quando a geada desce
sobre as vinhas
e os telhados das casas
para que possa recrudescer
por um instante
o imenso poder da rasura
e do silêncio
nas páginas impressas
de todos os livros.
José Carlos Barros
ramos das árvores
quando a geada desce
sobre as vinhas
e os telhados das casas
para que possa recrudescer
por um instante
o imenso poder da rasura
e do silêncio
nas páginas impressas
de todos os livros.
José Carlos Barros
A carta de Amélie
josé ferreira
a irrealidade quotidiana adormeceu os sentidos.
nas pontas dos dedos os restos da notícia.
partiste.
escureceu o dia na caligrafia azul das palavras.
a assinatura única. a última carta.
silêncio.
o sono profundo do sonho.
a irrealidade quotidiana adormeceu os sentidos.
um campo de papoilas vermelhas
não é costume na cidade.
não há glícinias.
as magnólias exibem a inexistência de folhas.
o jardim permanece inerte no sossego dos gatos.
a carta. a carta um fogo aceso de palavras.
mas não existes. não és realidade.
a irrealidade quotidiana adormeceu os sentidos.
os olhos são quadrados. um quadro de Picasso.
as cores oscilam num caleidoscópio azul lilás.
imagens tremidas nas pontas agudas dos ângulos.
partiste.
relâmpagos de tontura.
seis meses de distância Amélie.
o perfume das letras e o quadro de Monet
são um refúgio frágil do desejo.
conto os dias -
José Ferreira 10 Março 2011
dor
dói-me o sono.
dói-me o estar acordada.
custam-me as palavras
transparentes
em desalinhos de nada.
custa-me a página vazia
densa e opaca
na vigília da madrugada.
dói-me o estar acordada.
custam-me as palavras
transparentes
em desalinhos de nada.
custa-me a página vazia
densa e opaca
na vigília da madrugada.
raquel patriarca | dois.fevereiro.doismileonze
quinta-feira, 10 de março de 2011
Devagar
sono sonho d'aguarela parda
a boca fria tropical desmaia
amarela
farsa valsa
a pé dormente
ali
enrola a língua
o pulso fraco
numa volta em nó
o verme
valsa
pó
quarta-feira, 9 de março de 2011
Soninho
Teve uma vez o sono um soninho tão terrivelmente feio
que nenhuma ama o amava tanto quanto podia
nem o pai tanto quanto queria
e veio o feio sem mãe
e não o amava ninguém
Fez-se o soninho sono ruim
muito desacordado com tudo
fecha os olhos à boa gente
e deixa tudo mudo
que nenhuma ama o amava tanto quanto podia
nem o pai tanto quanto queria
e veio o feio sem mãe
e não o amava ninguém
Fez-se o soninho sono ruim
muito desacordado com tudo
fecha os olhos à boa gente
e deixa tudo mudo
Poema de embalar
Para adormecer o sono como
chocolates regina morango after eight
bebo finos
sonhos docinhos
meninas meninos
travesseiros tortas de azeitão
como nuvens
sombras de sono
sombrinhas de chocolate regina
à noite
de novo
garfadas de algodão
borregos
barrigas
umbigos
bagos
torradinhos de mel
torradinhas de malmequer
e margaridas saladas
delícias do mar morto
chocolates regina morango after eight
bebo finos
sonhos docinhos
meninas meninos
travesseiros tortas de azeitão
como nuvens
sombras de sono
sombrinhas de chocolate regina
à noite
de novo
garfadas de algodão
borregos
barrigas
umbigos
bagos
torradinhos de mel
torradinhas de malmequer
e margaridas saladas
delícias do mar morto
a partir do céu é possível
A partir do céu é possível a visão da muralha.
Dizem.
Mas de todo o lado da superfície o céu é visível.
A muralha é a intersecção atípica do plano
Não é analogia porque divide na forma ingénua
De ser maior mas não sublime
De ser matéria e não fluidez sensível de espírito
De não sentir a pele, a cor dos olhos, a auréola
A singularidade de uma janela olhando a lua.
Quando falamos de céu é metonímia
Sabemos onde começa
Sabemos que não tem fim -
José Ferreira 9 Março 2011
terça-feira, 8 de março de 2011
Fragmentos II - A-REALIDADE
David Hockney
A-REALIDADE. Sentimento de ausência, fuga da realidade experimentada pelo sujeito apaixonado face ao mundo
I. Espero um telefonema e essa espera angustia-me mais do que é habitual. Tento fazer qualquer coisa mas não consigo. Passeio no meu quarto: todos os objectos - cuja familiaridade normalmente me reconforta - , os telhados cinzentos, os ruídos da cidade, tudo me parece inerte, separado, siderado como um astro deserto, como uma Natureza onde o homem nunca tivesse existido.
II. Folheio o álbum de um pintor que apreço; não posso fazê-lo senão com desprendimento. Aprovo essa pintura mas as imagens estão geladas e isso aborrece-me.
III. Num restaurante a abarrotar, na companhia de amigos, sofro (palavra incompreensível para quem não está apaixonado). O sofrimento vem-me das pessoas, do barulho, da decoração (kitsch). Um manto irreal, vindo dos lustres, dos tectos de vidro, atinge-me.
IV. Estou sozinho num café. É domingo, à hora de almoço. Do outro lado do vidro, num anúncio mural, Coluche faz caretas e faz de imbecil. Tenho frio.
( o mundo está cheio sem mim, como em La nausée (Sartre); aprende a viver por detrás de um vidro; o mundo está num aquário; vejo-o perto e, no entanto, afastado, feito de uma outra substância; caio continuamente na precisão, fora de mim próprio, sem vertigem, sem nevoeiro, como se estivesse drogado)
…………..
Roland Barthes " Fragmentos deum discurso amoroso" Ed. 70 1981
Um poema para o dia da Mulher
Pablo Picasso
Mãe, agora que guardaste na arca
as blusas pretas e os teus olhos
voltaram a ser azuis; que os meus
irmãos dormem no seu quarto um
sono de poderem ser felizes, que
já conseguimos dizer uma à outra
o nome dele no meio de um sorriso
porque a morte, afinal, é uma coisa
tão longe – deixa-me perguntar-te
porque não há retratos do meu pai
comigo ao colo, como os dos meus
irmãos que ele trazia sempre junto
ao peito e tu depois dividiste pela
casa para ele poder saber que ainda
te lembravas; ou então debruçado
no meu berço – que tu escondeste
no sótão ainda eu era pequena e te
sentavas a embalar vazio quando ele
não entendia porque estavas tão
triste. Mãe, eram tão azuis os olhos
do meu pai no dia em que levou os
meus irmãos à escola e tinham tanto
medo do que pudesse acontecer-lhes;
são tão azuis também os olhos deles
debaixo do seu sono, e os meus tão
negros de dúvidas – porque foste
sempre tu que me levaste sozinha
para as coisas difíceis da minha vida,
que o meu pai nem nunca quis saber
que coisas eram. Mãe, estão hoje tão
azuis os teus olhos com essas roupas
claras, e eu ainda tenho o nome do
meu pai entre as minhas lágrimas, mas
agora, que os meus irmãos descansam
no seu quarto, que já todos podemos
dizer o nome dele sem nos cortar os
lábios, diz-me a verdade: esse homem
que chorámos era mesmo meu pai?
Maria do Rosário Pedreira "Nenhum nome depois" Págs. 42-43
(retirei de blog de Arlindo Correia)
segunda-feira, 7 de março de 2011
Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha
Desculpo-me dos outros com o sono da minha filha.
E deito-me a seu lado,
a cabeça em partilha de almofada.
Os sons dos outros lá fora em sinfonia
são violinos agudos bem tocados.
Eu é que me desfaço dos sons deles
e me trabalho noutros sons.
Bartók em relação ao resto.
A minha filha adormecida.
Subitamente sonho-a não em desencontro como eu
das coisas e dos sons, orgulhoso
e dorido Bartók.
Mas nunca como eles
bem tocada
por violinos certos.
Ana Luísa Amaral
as lentas nuvens fazem sono
David Hockney
As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.
E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém.
Não sou capaz de gozo ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.
Que bom, à margem do ribeiro
Saber que é ele que vai indo…
E eu? Vou indo dianteiro
No som inútil e infindo.
Fernando Pessoa 25.12.1931
Fragmentos I
Guy Bourdin
Esta noite regressei só ao hotel; o outro decidiu regressar mais tarde, já noite dentro.Aí estão as angústias, como o veneno preparado (o ciúme, o abandono, a inquietação); apenas aguardam o tempo suficiente para se declararem. Vou buscar um livro e um soporífero, «calmamente». O silêncio deste grande hotel é sonoro, indiferente, idiota (ronrom distante das banheiras que se esvaziam); os móveis, os candeeiros, são estúpidos; nada de amigável onde nos possamos aquecer («Tenho frio, regressemos a Paris»).
Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso" Ed. 70 1981
domingo, 6 de março de 2011
domingo
Retirada da internet
acordámos na cor dos raios imprevistos
de sol. focos iluminados de suspenso pó.
múltiplo pó molecular de carnaval. multifacetado.
um dois três quatro…impossível de contar
quantos em movimentos rotacionais de sombra e brilho.
todos iguais numa girândola sem actores
sem palcos sem disfarces.
raios imprevistos irrequietos
os primeiros ruídos de domingo -
José Ferreira 6 Março 2011
sexta-feira, 4 de março de 2011
Esplanada
Richard Avedon
Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,
agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.
O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.
Manuel António Pina "Poesia Reunida" Assírio & Alvim
quinta-feira, 3 de março de 2011
Um poema luminoso de Sophia - Mar
lembro_______lembro lembro
Guy Bourdin
lembro___________ lembro lembro
os primeiros dias de fevereiro
antes das glicínias
quando os canteiros de amores perfeitos
gotejavam de amarelos azuis e roxos;
um vestido de folhos nos caules das japoneiras -
lembro__________lembro lembro
vestida de branco
surgia como um raio súbito e passeava o sol
enquanto ele era e permanecia.
até que por fim subia degrau a degrau aquela escada dura
e desaparecia atrás de uma porta
de almofadas verdes e claves prateadas.
lembro__________lembro lembro
descia assim frio o ainda inverno sobre as raízes da terra
sobre a silhueta das árvores a cor das folhas as primeiras flores
em noites de fevereiro___ lembro
lembro_________lembro lembro
subsistia um silêncio sem presença
mas deixava sempre as mãos abertas
e conduzia da lua um foco de luz
na sombra dos muros nos quartos escuros
na cidade deserta -
José Ferreira 3 Março 2011
quarta-feira, 2 de março de 2011
Rotações perfeitas
Se me pedisses de repente e aqui:
«fala das luas e dos dias», eu
nem falaria, diria só que estar contigo
é estar-me:
ofício de tanto tempo,
e natural,
ajustado como pequeno girassol,
ao sul: uma paisagem
Nem saberia por onde começar:
se no olhar, se na palavra,
ou se no teu sorriso
que me devastou o equilíbrio do igual
Não sei, meu amor,
como entender este pequeno girassol,
explicar-lhe o movimento certo,
a rotação completa e tão
perfeita,
as folhas muito verdes
de uma tal filigrana delicada
Sobretudo, este seu hino
em direcção a tudo
e já nem sei falá-lo,
porque lhe basta o tempo, e esse
- sem palavras
Ana Luísa Amaral "Se fosse um intervalo" Dom Quixote 2009
terça-feira, 1 de março de 2011
Lagos e Vacas
Se há alguma coisa verdadeiramente perturbadora, essa coisa é a actualidade. E o facto (ainda mais perturbador) de não existir, por exemplo, medicação que nos afaste um pouco dessa persistente pátria espontânea que é a actualidade de tudo e de todos, e, ao mesmo tempo, a de nada e a de ninguém.
No fundo, estamos tão sentados em cima da actualidade, como o poeta do relato de Hélder está sentado em cima da Holanda. Já sem recursos suficientemente convincentes que o levasse a tomar a decisão (ainda que teórica, apropriada) de se deslocar, ele (mantendo-se em cima da Holanda) pensa na tradição. E nós pensamos na tradição, com ele. Depois ele diz para si mesmo que é “alimentado pelos séculos, [e que vive] afogado na história de outros homens”. E nós repetimo-lo, repetimo-lo incessantemente, num estado de transe, próximo da ecolalia e dos estados catatónicos mais primários, enquanto engolimos água, e nos engasgamos com pedaços das biografias alheias que vêm dar à costa dos nossos dias partilhados.
Mas há um ponto em que, definitivamente, discordamos. Esse ponto é quando o poeta, depois de dar conta da perdição da sua alma (até aqui, não há nada a objectar), se reconhece ao encontrar, perto da sua solidão, primeiro um lago, e depois vacas.
Ora, parece-me muito pouco provável que haja lagos e vacas na actualidade.
imagens interditas
não me perguntes nunca Como me sinto.
é um convite à mentira. um apertar doído.
as palavras de fogo promovem o silêncio
e acendem um reino escuro. a implosão do templo.
a aparência externa de uma brisa segura
esconde a turbulência a grande nuvem
a poeira imensa de crinas selvagens
os ruídos de vento imperceptíveis.
a aparência externa comprime e limita as ondas
o bombardeamento de espumas marítimas
passos compreensíveis incompreensíveis passos invertidos
ao olhar de krípton que enfraquece os sentidos
e o esfumar de imagens interditas
dentro da verdade que não digo -
José Ferreira 1 Março 2011
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