sábado, 26 de março de 2011

Santa Suspensão da Descrença (o caso de Maria Jaguar M.)




1. O amor mora na suspensão da descrença. Somos nós que, a certa altura, mantendo a mesma pose de vigilantes do que não auferimos, resolvemos acreditar no amor e desacreditar (nem que seja por breves momentos) na crença de que o amor é, ele próprio, uma crença, com tudo o que uma crença tem de estático e letal.

2. A certa altura da sua vida, também Maria Jaguar M. decide suspender a sua descrença. Já o tinha feito anteriormente com filmes, livros, gestos, concertos, conceitos, mas nunca com ela como autora ou protagonista, nenhuma forma que a levasse como agora ao reflexo, ao seu outro-próprio reflexo, e à árvore milenar da asfixia.
A rota arredondada dos dias, talvez, mas também a liquefacção dos trajectos de sempre, a débil companhia de uma senhora com pelo menos mais 20 anos do que ela e 200% de catolicismo.
Todas estas coisas (e outras que me não me canso de dizer) tiveram o seu peso para que Maria Jaguar M. decidisse suspender a sua descrença e acender um fósforo à porta de um labirinto.

3. O autocarro é um cavalo de chapa quente e monotonia. A manhã colide com o autocarro, que rasga as últimas partículas da noite, desmascara com o seu focinho achatado e inocente as núpcias negras dos vestígios. As pessoas colidem dentro do autocarro, sentadas com a alegre previsibilidade dos dias. Está tudo imensamente triste, mas acaba sempre por haver quem brinque com a convicção de que nem tudo está perdido. Maria Jaguar M., por exemplo, vem distraída. Vem todos os dias distraída. Nunca a vi validar o bilhete. A máquina com ela coíbe-se. Nunca a ouvi dar um passo sequer, mesmo quando sugere ser mortal, o rosto um pouco melancólico, um pouco atribulado e esquecido, entre a descrença e a suspeição de que pode, nem que seja por uma só vez e para sempre, suspender a descrença, voltar à vida. Não leva livros, pelo menos visíveis, mas é como se os levasse. Estou a ensiná-la aos poucos a descrer, a descrer mais ainda, mas a verdade é que ela também me ensina, quando descrê que eu exista na mesma perspectiva que ela queria que eu existisse, só para ela. E, por isso, suspender a descrença tem sido mais literatura que litígio. Mais perfume que consequências.
No entanto - e à hora enganadora que é -, a razão atravessa-a agora de lado a lado, como um raio de sol que movesse o autocarro para fora das leis dos transportes terrestres, abnegados e colectivos. O autocarro finge que voa só para mim. Revolta-se e voa. Dá estranhamente fé do indivíduo.

1 comentário:

josé ferreira disse...

André, original e fantástico, entre o transcendente e o quotidiano.

Abraço