Alguma falta de tempo à qual se acrescentam trabalho q.b. e uma “pitada” de intranquilidade levam-me a cumprir com este novo desafio da Ana Luísa, de uma forma facilitada.
A leitura do texto de Saramago, que transcrevo a seguir, forneceu-me a solução para o «trabalho de casa».
“o olho humano escondido”! É isso! A poesia acontece como a escuridão acontece – “Não foi para nenhum lugar, a escuridão é simplesmente o outro lado da luz, a sua face secreta”.
E não é também Garcia Lorca que diz “Todas as coisas têm o seu mistério. E a poesia é o mistério de todas as coisas.”?
O outro lado
Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas? Esta pergunta, que cada dia me vem parecendo menos disparatada, fi-la eu muitas vezes em criança, mas só a fazia a mim próprio, não a pais nem professores porque adivinhava que eles sorririam da minha ingenuidade (ou da minha estupidez, segundo alguma opinião mais radical) e me dariam a única resposta que nunca me poderia convencer: “As coisas, quando não olhamos para elas, são iguais ao que parecem quando não estamos a olhar”. Sempre achei que as coisas, quando estavam sozinhas, eram outras coisas. Mais tarde, quando já havia entrado naquele período da adolescência que se caracteriza pela desdenhosa presunção com que julga a infância donde proveio, acreditei ter a resposta definitiva à inquietação metafísica que atormentara os meus tenros anos: pensei que se regulasse uma máquina fotográfica de modo a que ela disparasse automaticamente numa habitação em que não houvesse quaisquer presenças humanas, conseguiria apanhar as coisas desprevenidas, e desta maneira ficar a conhecer o aspecto real que têm. Esqueci-me de que as coisas são mais espertas do que parecem e não se deixam enganar com essa facilidade: elas sabem muito bem que no interior de cada máquina fotográfica há um olho humano escondido… Além disso, ainda que o aparelho, por astúcia, tivesse podido captar a imagem frontal de uma coisa, sempre o outro lado dela ficaria fora do alcance do sistema óptico, mecânico, químico ou digital do registo fotográfico. Aquele lado oculto para onde, no derradeiro instante, ironicamente, a coisa fotografada teria feito passar a sua face secreta, essa irmã gémea da escuridão. Quando numa habitação imersa em total obscuridade acendemos uma luz, a escuridão desaparece. Então não é raro perguntar-nos: “Para onde foi ela?” E a resposta só pode ser uma: “Não foi para nenhum lugar, a escuridão é simplesmente o outro lado da luz, a sua face secreta”. Foi pena que não mo tivessem dito antes, quando eu era criança. Hoje saberia tudo sobre a escuridão e a luz, sobre a luz e a escuridão.
Outubro 7, 2008, 10:26 pm, O Caderno de Saramago.
4 comentários:
Sem querer comparar-me a Saramago, ainda eu corria, de bata cor de rosa, pelos corredores do Colégio, e já me fazia, mais quando estava sozinha comigo mesma, essa pergunta: "Como serão as coisas quando não estamos a olhar para elas?" Mas logo me punha de novo a tagarelar e deixava que a pergunta se esvaisse de mim sem resposta. Já adulta, algumas leituras como La Invención de Morel de Bioy Casares, punham-me de novo a pensar nisso, mas acabava sempre a rir de mim própria. Pensando melhor, afinal, a resposta a essa pergunta, não a obtive de Saramago nem de Bioy Casares, mas do meu querido Pai, que agora recordo, e que todas as noites, antes de eu ir dormir, por alturas da bata cor de rosa, me contava, com toda a sua loucura e poesia, que as minhas bonecas, que eu via impávidas e serenas na estante, logo se iriam pôr a fazer uma grande festa assim que eu adormecesse no sono do João Pestana. Era assim todas as noites. E acho que um bocadinho de mim acreditava. Que saudades... E que bom haver poesia!!! Elza
Em tudo há o reverso, nada é completo, excessivo. Na luz a escuridão, no ar do céu que o horizonte une há água,nas estrelas que na noite fundem o dia. E até os objectos terão a sua própria vida, não total e exclusiva.
No ser humano tudo se junta porque conforme dizia o António Gedeão
" O sonho comanda a vida "
O texto é simplesmente delicioso! O tivesse lido, antes de fazer o meu tpc!
um texto muito bonito. gostei imenso do final. E a sua queixa "Foi pena que não mo tivessem dito antes, quando eu era criança", não vale a pena (a não ser do ponto de vista poético): sabe-o, ou entáo não tinha escrito...
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