Invisível a folha branca não fala
Não se move nem procura a ternura
A folha voa, fugidia, altiva e crua
É branca, tão branca e impossível.
A cor não existe na folha branca
A cor desdisse que é cor.
É branca. É ausente.
A folha branca não sabe que o amor não existe.
Que o amor é uma abstracção do céu.
É tarde para amar agora que o branco chegou.
Uma parede alta ergueu-se na fronteira cinzenta dos corpos.
Há pó invisível pesado e o ar rarefeito sem brisa não ecoa.
As estrelas balançam na inquietação agitada dos seus cinco braços.
O corpo não sabe, só dói.
A folha não pensa pesada e branca.
Descansa leve no mar, com o universo por baixo.
O amor são as ondas mudas, em silêncio.
A folha branca continua.
Muito branca.
Cheia de estrelas invisíveis por nascer.
sábado, 31 de março de 2012
a mudança e o solstício
Bill Brandt
era um dia dos mais frios
não tinha previsto essa roupa de gelo
dobrava a alma, corria um fecho sobre a tarde cinza
lembrava-se dela como se a encontrasse hoje
deitada sobre um livro, como se fosse um campo de lírios –
anunciaram outro dia a mudança e o solstício, quem dera, disse –
a interrogação é constante, uma lua é um espaço branco
não tem mãos rugosas nem lâminas nos brilhos
é um outro espaço, um espaço platina
um espaço entre estrelas
onde por vezes surgem incessantes
não legítimos
um manto negro e nebulosas que não adivinha;
mas assim é o sangue quando corre no oxigénio
um rio, vermelho e vivo
percorrendo caminhos –
essa é a parte que espera
uma janela sem vidros, sem cortinas e nunca sem linhas
que seguram um balão ou enrolam um novelo de fios
como quando a mãe era ainda menina e ele pequenino
como quando engraxava sapatos e recebia uma moedinha
como quando uma tarde inteira passava roupa
e tinha muito cuidado com os colarinhos
com os vincos das roupas, as marcas longínquas
que andavam na rua e eram difíceis –
o mundo não é insustentável, digo-te
pode ser limão ou manga
uma cadeira de verga, singular e repetida
ou mãos dadas e rostos de diamante
ou uma dança de rumba e um mar de chamas –
o mundo pode ser tudo se acreditares antes do fumo
em ti e no mundo –
o mundo pode ser tudo, o impossível -
repara
o impossível é construído
é algo que se acrescenta e nos toca os lábios
como um raio de luz ou uma onda perdida
nos toca, mesmo que não agora, de braços à volta, mesmo que não agora
mas pode, no futuro –
repara
o impossível é construível
o impossível nasce do possível
quando se junta uma sílaba –
repara e acredita
o mundo é verde, sustentável, digo-te
acredita –
josé ferreira
sexta-feira, 30 de março de 2012
O caminho
Asas dobradas no meu jardim
Anjos caídos descrentes do céu
Parecem mudos, vestidos de breu
Inertes, brancos de um cal de morte
Jazem sem sangue ainda que vivos
Os olhos brilhantes sabem de cor o azul
O desconhecido da terra batida
A humana forma de sentir o chão
Em misto de angústia e de ilusão.
Quieto o silêncio, foge ao vago verbo
Tão vero, tão certo, tosco e insincero.
Viagem ao centro da dúvida exacta
Pura, sem corpo, de face abstracta.
Cortam-se a xizato as asas e o sol
Recortam-se as estrelas, decantam-se as lágrimas
Desdobram-se as mágoas com a fita métrica
Embrulha-se o medo em papel celofane
Um vestido novo e um longo arame
Onde na vertigem se dá mais passo
O céu lá tão alto.
É um caminhar sem asas na terra.
O levante erecto do corpo deitado.
Eis que ao percorrer o caminho incerto
As asas recrescem e o céu já perto
Sussurra ao ouvido das estrelas bebé
Já podem nascer, o novo já é.
Anjos caídos descrentes do céu
Parecem mudos, vestidos de breu
Inertes, brancos de um cal de morte
Jazem sem sangue ainda que vivos
Os olhos brilhantes sabem de cor o azul
O desconhecido da terra batida
A humana forma de sentir o chão
Em misto de angústia e de ilusão.
Quieto o silêncio, foge ao vago verbo
Tão vero, tão certo, tosco e insincero.
Viagem ao centro da dúvida exacta
Pura, sem corpo, de face abstracta.
Cortam-se a xizato as asas e o sol
Recortam-se as estrelas, decantam-se as lágrimas
Desdobram-se as mágoas com a fita métrica
Embrulha-se o medo em papel celofane
Um vestido novo e um longo arame
Onde na vertigem se dá mais passo
O céu lá tão alto.
É um caminhar sem asas na terra.
O levante erecto do corpo deitado.
Eis que ao percorrer o caminho incerto
As asas recrescem e o céu já perto
Sussurra ao ouvido das estrelas bebé
Já podem nascer, o novo já é.
um mar azul e branco - um poema de Sophia
quinta-feira, 29 de março de 2012
Era o sol uma sombra
Rasgo de sol enquadrado na árvore como o amor na pele
Triângulo isósceles de indefinições que cresce e morde
A seda de um beijo, a sede da doçura de tudo o que foi.
É tarde e o sol não fica, talvez já não volte a nascer.
A incerteza da luz gravada na clorofila do rosto comove.
Será o coração a raiz? Mente ancorada a corpo incerto.
Não.
A raiz é o cerne neuronal do pensamento que acende os olhos.
O coração não se arranca nem dá fruto.
É só um músculo liso, autómato e acéfalo.
O miocárdio não pensa tão cheio de sangue.
Um punho fechado de células síncronas
Um sol ao contrário, que apaga e sorve luz.
O coração arranca-se. Quando é preciso.
Entra o sol e os neurónios continuam vivos e ternos
Sem a saudade melancólica do beijo.
A raíz é o corpo ser inteiro.
Ser inteiro em si na incompletude da dor.
A inteireza de se saber ser quem se é e faz.
A luz nas folhas verdes de uma árvore direita.
Inteira.
Triângulo isósceles de indefinições que cresce e morde
A seda de um beijo, a sede da doçura de tudo o que foi.
É tarde e o sol não fica, talvez já não volte a nascer.
A incerteza da luz gravada na clorofila do rosto comove.
Será o coração a raiz? Mente ancorada a corpo incerto.
Não.
A raiz é o cerne neuronal do pensamento que acende os olhos.
O coração não se arranca nem dá fruto.
É só um músculo liso, autómato e acéfalo.
O miocárdio não pensa tão cheio de sangue.
Um punho fechado de células síncronas
Um sol ao contrário, que apaga e sorve luz.
O coração arranca-se. Quando é preciso.
Entra o sol e os neurónios continuam vivos e ternos
Sem a saudade melancólica do beijo.
A raíz é o corpo ser inteiro.
Ser inteiro em si na incompletude da dor.
A inteireza de se saber ser quem se é e faz.
A luz nas folhas verdes de uma árvore direita.
Inteira.
Isto tudo que nos rodeia (I) - Cartas de Mécia Sena/Jorge Sena
John William Waterhouse "Ophelia" 1889
Querida Mécia (28/11/46)
De manhã andei na obra. Almocei. Depois chegou o correio: um postal da Mãe, outro do Óscar, e provas do Pessoa. Até às 4 e meia, vi , e empacotei para as devolver, 80 páginas do Pessoa, e escrevi-te, ao Óscar, à Manuela Porto, ao Salgueiro (da Inquérito) e à Mãe. Fui ao túnel, andei por lá. Vim para o quarto repousar, ler um pouco: Shaw, E, à luz da vela, porque a electricidade foi-se mais uma vez, aqui estou a escrever-te com vagar.
Como já disse não recebi notícias tuas, que se calhar mandaste para Évora …
(…)
Acaba de regressar subitamente a luz, não sei por quanto tempo – (agora está a apagar e a acender) – (…) Apaga , acende, apaga, acende, que nem as velas se poupam, nem as velas servem (até esta frase parece um final de poema – hein? – um princípio de outro vem à cabeça do papel desta carta, mas não passou daí, em verso, e continuou-se por aqui fora como estás vendo).
(…)
São sete e meia, estou cansado, muito, muito cansado. Até amanhã, querida.
Jorge de Sena
quarta-feira, 28 de março de 2012
A lógica do amor
A lógica não tem olhos nem sabe sentir
Hermética na dor decide em cru e ri
Há sabedoria na dor, tão leve como a ausência
Toda a luz é leve, inesperadamente profunda
Pesa a tristeza, mente em chumbo
Caminho em vazio, sopro estranho o do amor.
Vento que revolve, enleia e move
Flores presas nas mãos como beijos
Ondas largas que inundam o rosto
Vagas áureas e nos cabelos a solidão.
Asas episódicas libertam-se nuas
Colhe-se a sombra nos segundos
As sementes voam e são espectros
Fantasmas mnésicos do que foi
O amor não tem lógica, é um transacto.
Hermética na dor decide em cru e ri
Há sabedoria na dor, tão leve como a ausência
Toda a luz é leve, inesperadamente profunda
Pesa a tristeza, mente em chumbo
Caminho em vazio, sopro estranho o do amor.
Vento que revolve, enleia e move
Flores presas nas mãos como beijos
Ondas largas que inundam o rosto
Vagas áureas e nos cabelos a solidão.
Asas episódicas libertam-se nuas
Colhe-se a sombra nos segundos
As sementes voam e são espectros
Fantasmas mnésicos do que foi
O amor não tem lógica, é um transacto.
lua crescente
uma lua crescente e branca venceu a noite.
aquela noite que por vezes sem chave
não abre as portas e se perde na estrada
procurando palavras
procurando sempre palavras –
é grande o poder da lua na noite original.
a noite original é aquela que não tem regras
a noite dos aromas das glicínias maduras
a noite que não é mão fechada nem praia deserta
a noite que se debruça sobre as águas e sobre as ondas
onde há um barco ao largo sem visão de terra
o barco de um sonho que caminha com pés de tábua
sem remos sem velas por vezes magoado –
e a lua crescente crescendo na noite mostra-lhe uma estrela
como quem desce de uma longa escada para lhe tocar o cabelo
para lhe iluminar os olhos tapar os ouvidos e erguer a cabeça -
e a lua crescente traz uma luz no mar e senta-se no barco
um barco em forma de gente de pés molhados –
e o mar compreende tudo e fica iluminado
abre uns lábios brancos
e na força do vento e de vagas incessantes
ergue uma mão gigante de espuma e de sal
e mistura barco e lua de uma só vez
de uma só vez na hipnose do tempo
como se solúveis
feitos de uma mesma essência
a lua no barco e o barco na lua
assim de repente –
josé ferreira 28 março 2012
terça-feira, 27 de março de 2012
Dúvida
Era tarde para não nascer agora que chorava
Berço pronto lácteo e doce, colo quente em descoberta
Vida feita de invisível, cruo encontro de acasos
Espera eterna ou morte certa, dois bocados de infinito
A unir a escuridão, fina luz, ténue e fina
Lua branca, um não ao escuro, régua estranha a do futuro
Num jogo com o presente, a brincar com a razão
Só será depois de ser, ao fazer cria ilusão
Do tempo ser uma linha, costurada a precisão
Segundos certos de nada, tão perdidos no passado
Rodam num ciclo em relógio de comboio disfarçado
Onde era o fim da linha , vê-se a nascer enfim
Nova vida, novo grito, novo choro e novo fim.
A vida enrola-se em si, um novelo tão perfeito
Que seria em vão tentar estendê-lo todo a direito.
As perguntas não são vãs, mas são vãs as incertezas
São tão certas as manhãs e os poentes no mar.
São tão certos os sabores que até sabem pensar.
Nascimento ou infinito, maresia ou escuridão
Seja silêncio ou grito, plenitude ou confusão
Estou tão certa da certeza que já só tenho Razão.
Berço pronto lácteo e doce, colo quente em descoberta
Vida feita de invisível, cruo encontro de acasos
Espera eterna ou morte certa, dois bocados de infinito
A unir a escuridão, fina luz, ténue e fina
Lua branca, um não ao escuro, régua estranha a do futuro
Num jogo com o presente, a brincar com a razão
Só será depois de ser, ao fazer cria ilusão
Do tempo ser uma linha, costurada a precisão
Segundos certos de nada, tão perdidos no passado
Rodam num ciclo em relógio de comboio disfarçado
Onde era o fim da linha , vê-se a nascer enfim
Nova vida, novo grito, novo choro e novo fim.
A vida enrola-se em si, um novelo tão perfeito
Que seria em vão tentar estendê-lo todo a direito.
As perguntas não são vãs, mas são vãs as incertezas
São tão certas as manhãs e os poentes no mar.
São tão certos os sabores que até sabem pensar.
Nascimento ou infinito, maresia ou escuridão
Seja silêncio ou grito, plenitude ou confusão
Estou tão certa da certeza que já só tenho Razão.
Adiamento - um poema de Álvaro de Campos
fotografia por Christine Schneider
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos
domingo, 25 de março de 2012
Morte
Há na vida um tom ocre de lamento
Doce dor em vento, sopro e liberdade.
Face da metade de um outro equinócio,
Árida e surpresa, uma nuvem presa, na terra
em inércia, parada e muda, epitáfio surdo
Memória inquieta, paixão em colcheia
Rápida e segura, alterna a loucura com a centopeia.
Só a incerteza sorri à inconstância
De mudar de par a meio da dança.
Rodopio áspero, a vida em moinho
Mói a juventude em centeio fino;
Branco e sabedor, cor de luz e leve
Há no fim a luz da mais branca neve.
Doce dor em vento, sopro e liberdade.
Face da metade de um outro equinócio,
Árida e surpresa, uma nuvem presa, na terra
em inércia, parada e muda, epitáfio surdo
Memória inquieta, paixão em colcheia
Rápida e segura, alterna a loucura com a centopeia.
Só a incerteza sorri à inconstância
De mudar de par a meio da dança.
Rodopio áspero, a vida em moinho
Mói a juventude em centeio fino;
Branco e sabedor, cor de luz e leve
Há no fim a luz da mais branca neve.
Dorme, descansa
Leighton Frederic "Flaming June"
Dorme, descansa, não abras os olhos –
na marginal pela tarde ruidosa não falámos. longe.
os passeios eram diferentes, apenas o mar
as suas ondas, o ar cinza e as palavras brancas –
sento-me nesta cadeira e deserto das letras omnívoras
estas notícias que anoto e guardo na memória
estes deslizes da corrupção dos políticos
que como as ondas levam segredos nos colarinhos
e guardam-nos como plâncton branco, escondido
a vã riqueza, apenas o útil não a essência
até que transparece o rosto, a cor do crime –
Dorme, descansa, não abras os olhos –
apenas moscas lá fora, aqui e aí o sossego das palavras
as folhas gastas dos livros, hoje os poemas, amanhã é domingo-
faço soar repetida uma música de vinil, antiga
roda no automatismo da tecnologia, gira sem curvas e sem linhas
mas não existe como forma , soa mais alto com o volume dos neurónios
e veste-se de pinturas de Dali, as cordas tangidas
as cores, o azul, os brancos, as musas, o intangível –
Dorme, descansa, não abras os olhos –
as minhas mãos estão paradas como pombas
naquela fotografia dos dançarinos, Spring
e não te tocam nem por um segundo.
os teus dedos são compridos, inclinam-se
os cabelos expandem o contorno das penas, respiram –
esticam-se e desnudam o pescoço como um fragmento de sonho
enquanto as minhas mãos, paradas de um voo, como pombas, duas –
e os dedos encolhidos no pulsar afirmativo de veias e sangue
interrogam a alma na recepção dos sentidos-
a música repete-se, contínua –
na marginal andavam pés de corrida, pés de bicicleta, pés nos ouvidos
e havia uma capela caiada, muito branca com raízes, de pedra
onde a água batia –
o meu braço recolhia o braço mais antigo, os passos lentos
o olhar já um pouco perdido, do meu berço, do meu início
num ar cinza, num mar verde, numa névoa sem frio
e alguém dizia o mar ali está manso e aqui mais forte
são diferentes –
sim, são diferentes: a circunstância, a rocha, a areia, lisa
a música a mesma, contínua –
Dorme, descansa, não abras os olhos –
sou apenas eu e as pombas; esta alma de linho, fios, plantas e caminhos
em ondas, sem ruído –
Dorme, descansa, não abras os olhos
amanhã é domingo –
josé ferreira 25 de Março de 2012
sábado, 24 de março de 2012
O novo
O novo, manto de inquietação, sob a forma dorme.
É no espaço abstracção, redondo e indiscreto
Cede a mente ao medo ameno de conforto ensonado
Hera doce do passado, presa à casa, já não voa
Mentira em forma de estrela, ilumina encadeante
A verdade e a fé, cegas voam bem distante
Névoa gasta a saudade, pé ante pé rói a cor
Árvore grande, só raiz, terminal parte da dor
Azul breu cor de infinito, nova hora, novo Deus.
Manto em pó de som desdito, carne morna marmoreia
Procura seta certeira, miocárdio ou cinzenta linha
Onde corre o racional, ténue dor nova e sozinha
Corre solta em espiral, catavento de doçura
Onde se aprende a ternura.
É no espaço abstracção, redondo e indiscreto
Cede a mente ao medo ameno de conforto ensonado
Hera doce do passado, presa à casa, já não voa
Mentira em forma de estrela, ilumina encadeante
A verdade e a fé, cegas voam bem distante
Névoa gasta a saudade, pé ante pé rói a cor
Árvore grande, só raiz, terminal parte da dor
Azul breu cor de infinito, nova hora, novo Deus.
Manto em pó de som desdito, carne morna marmoreia
Procura seta certeira, miocárdio ou cinzenta linha
Onde corre o racional, ténue dor nova e sozinha
Corre solta em espiral, catavento de doçura
Onde se aprende a ternura.
when faces called flowers float out of the ground
Birmingham Royal Ballet
when faces called flowers float out of the ground
and breathing is wishing and wishing is having-
but keeping is downward and doubting and never
-it's april (yes,april;my darling)it's spring!
yes the pretty birds frolic as spry as can fly
yes the little fish gambol as glad as can be
yes the little fish gambol as glad as can be
(yes the mountains are dancing together)
when every leaf opens without any sound
and wishing is having and having is giving-
but keeping is doting and nothing and nonsense
-alive;we're alive,dear:it's(kiss me now)spring!
now the pretty birds hover so she and so he
now the little fish quiver so you and so i
(now the mountains are dancing, the mountains)
when more than was lost has been found has been found
and having is giving and giving is living-
but keeping is darkness and winter and cringing
-it's spring(all our night becomes day)o,it's spring!
all the pretty birds dive to the heart of the sky
all the little fish climb through the mind of the sea
(all the mountains are dancing;are dancing)
e.e. cummings
sexta-feira, 23 de março de 2012
Soneto IV - um poema de Pablo Neruda
Waterhouse
Recordarás aquella quebrada caprichosa
a donde los aromas palpitantes treparon,
de cuando en cuando un pájaro vestido
con agua y lentitud: traje de invierno.
Recordarás los dones de la tierra:
irascible fragancia, barro de oro,
hierbas del matorral, locas raíces,
sortílegas espinas como espadas.
Recordarás el ramo que trajiste,
ramo de sombra y agua con silencio,
ramo como una piedra con espuma.
Y aquella vez fue como nunca y siempre:
vamos allí donde no espera nada
y hallamos todo lo que está esperando.
Pablo Neruda 1959
quinta-feira, 22 de março de 2012
Infinito
Entra docemente o caos disfarçado de gente e de palavras
É estranho no sentir, no corpo e no ser
Uma implosão entranhada de identidade desconhecida
Memórias sentadas inquietas face à tela em branco
Um filme que se cria em rotação de inspirações e choro.
O corpo é pó revolto em sangue e ventre
Um embalo quente de solidão com braços ternos
A voz de dentro estranha a si própria
Cor de mar e de nuvens misturada em imensidão de sonhos
O som das trevas cansadas e das madrugadas despertas
O colo quente do amor em voos de braços descobertos
Árvores grandes, gigantes que nos seguram nos ramos
Beijos em palavras, poemas de olhares silenciosos
O amor é uma metamorfose, lenta e densa, cor de tanto
Ar que se é, brisa que desassossega a inércia do ser
Em tempos misturados com espaços num só, a dor do infinito.
A cor do infinito traz paz em cestas grandes, gigantes.
É estranho no sentir, no corpo e no ser
Uma implosão entranhada de identidade desconhecida
Memórias sentadas inquietas face à tela em branco
Um filme que se cria em rotação de inspirações e choro.
O corpo é pó revolto em sangue e ventre
Um embalo quente de solidão com braços ternos
A voz de dentro estranha a si própria
Cor de mar e de nuvens misturada em imensidão de sonhos
O som das trevas cansadas e das madrugadas despertas
O colo quente do amor em voos de braços descobertos
Árvores grandes, gigantes que nos seguram nos ramos
Beijos em palavras, poemas de olhares silenciosos
O amor é uma metamorfose, lenta e densa, cor de tanto
Ar que se é, brisa que desassossega a inércia do ser
Em tempos misturados com espaços num só, a dor do infinito.
A cor do infinito traz paz em cestas grandes, gigantes.
quarta-feira, 21 de março de 2012
ser poeta
.
que nada mais sonhara -
nenhum outro horizonte
nenhuma outra meta -
só o ser, por inteira
e ao menos uma vez no ano,
nada menos que poeta
.
que nada mais sonhara -
nenhum outro horizonte
nenhuma outra meta -
só o ser, por inteira
e ao menos uma vez no ano,
nada menos que poeta
.
raquel patriarca | vinteeum.março.doismiledoze
.
poesia e metafísica
Marc Chagall "The painter to the moon" 1917
não sei como pôr um coração no meio de uma poesia
de forma a segurá-lo, transparente, para que não tape as letras
e deixe nascer de dentro delas
um quadro que seja aquilo que cada um quiser
de dentro da sua cabeça
como um sonho, um rosto ou um lugar
que se deseja –
josé ferreira 21 Março 2012
ouvir a natureza é uma forma interessante de começar o dia
Arthur Buckland " Spring "
estou assim de um modo de me querer misturar com as árvores
sentir-lhes a seiva, subir o verde das folhas
e descer por sobre as flores protegidas –
estou assim de um modo de me perder na natureza, no pólen
levado numa onda de pó, amarela, pelos braços do vento
um pó pequeno que pouse sobre os sentimentos
e preencha os mais pequenos espaços dos teus cabelos –
não pretendo ser um fio visível como o dos marionetes
nem ser daquele material mais vulgar com que se cosem os homens
uma sedução opaca, sem teclas de música, demasiado feita de nós
na brusquidão dos sentidos –
apenas podemos sentir o momento se formos um duo
um síncrono agudo que não fira os ouvidos;
a perfeição é importante quando procuramos o mundo –
e depois há a natureza
que se incomoda com os nossos dias, os passos e as pedras
que nos toca com esses dedos de pólen sobre os ombros
depois de um transporte delicado de abelhas
ou um pouco mais trepidante
nas asas de girândola das borboletas
e nos diz
com uma voz de magnólia;
uma seda nos ouvidos
hoje começa
não de forma antecipada, nem porque é março
mas da forma mais interessante
hoje começa a Primavera -
josé ferreira 20 de março 2012
terça-feira, 20 de março de 2012
Hoje o céu é menos azul perdido em si mesmo
Desponta a manhã enquanto sonhamos inquietos a morte inaudita
O verbo não dito ante a escuridão do breu é um raio de luz
As palavras não cabem na solidão nem a podem nomear
A prosa não consola a agonia da ausência
Hoje não há poemas, antes rochas pétreas entretidas à espera
Há imagens surdas de som neutro que passam em filme mudo
Há pó de solidão nas estradas paradas que desdançam sem fome
Há céu a cobrir o infinito do meu mar
Um céu de nadas, de via láctea e de estrelas
A magia do azul que transforma conteúdo em forma
A tristeza num salpico salgado preso no trabalho raso
Os sapatos que sabem o caminho de cor mas não o percorrem
Só a mente hoje viaja longe num céu menos azul
O corpo sozinho já não é carne, é poeira transparente
É pó de solidão macio e terno, revolto de ausência.
Desponta a manhã enquanto sonhamos inquietos a morte inaudita
O verbo não dito ante a escuridão do breu é um raio de luz
As palavras não cabem na solidão nem a podem nomear
A prosa não consola a agonia da ausência
Hoje não há poemas, antes rochas pétreas entretidas à espera
Há imagens surdas de som neutro que passam em filme mudo
Há pó de solidão nas estradas paradas que desdançam sem fome
Há céu a cobrir o infinito do meu mar
Um céu de nadas, de via láctea e de estrelas
A magia do azul que transforma conteúdo em forma
A tristeza num salpico salgado preso no trabalho raso
Os sapatos que sabem o caminho de cor mas não o percorrem
Só a mente hoje viaja longe num céu menos azul
O corpo sozinho já não é carne, é poeira transparente
É pó de solidão macio e terno, revolto de ausência.
Princípio bom - o meu poema para o dia do pai
Comigo eram três e por fim eram cinco
quando nasci fruto de um princípio bom
um pai que ainda está de cabelos ao vento
brancos de oitenta -
Conta-me ainda da mesma forma
os passeios de andas nos riachos
as quedas do marfim à frente
nas brincadeiras de criança
uma vez...e outra...e outra
com a mesma graça -
Estende no olhar a história difícil
de uma grande guerra de dor, fome
e ameaça; a altura em que viu partir
os muitos irmãos nas terras de Álvares
e Bolívar- os anos sem casa cheia
nos destinos díspares ausências
nas margens de um Oceano -
Ele e ela dois nós cinco somos
sete gomos do mesmo fruto
princípio bom
onde há mais sumos de futuro -
Um pouco surdo de ruídos telegrafista
nos tempos onde os segredos eram achas
fogueiras bruxuleantes de uma nova Inquisição
sem liberdades feitos de estátuas
pedras de um jogo obediente:
quem ouvia calava, quem sabia assobiava
quem sofria, era ilha que gritava na DGS
era esse o estado da Nação; mãos postas
bolas relvadas no chão, um fado cansado -
Um Setembro passado ouve festa
casou-se a primeira neta.
Este Dezembro montou-se o presépio
uma bisneta de mãos estendidas
olhos fechados a boca aberta
linda...linda...tão pequenina -
(A mim só de filhos, deu-me a saudade
de uma menina)
Não sei se lhe dar este poema
estes traços de verdade
factos precisos de meu pai -
Concerteza o abraço forte
beijos de face no sorriso da testa
e dizer emocionado que ainda
somos sete. Responderá "obrigado"
e dirá ao meu presente que não era
preciso -
Não sei dos outros e tantos são
falo do meu
do princípio bom
de mim nada digo
aguardo as palavras dos meus filhos -
Março 2009
segunda-feira, 19 de março de 2012
meu pai tinha sandálias de vento - um poema de Fernando Namora
Bill Brandt
Um segredo
Meu pai tinha sandálias de vento
só agora o sei.
Tinha sandálias de vento
e isto nem sequer é uma maneira de dizer
andava por longe os olhos fugidos a expressão em
[nenhures
com as miraculosas instantaneidades que nos fazem
[estar em todos os sítios.
Andava por longe meu pai sonhando errando vadiando
mas toda a sua ausência era
o malogro de o ser
só agora o sei.
Andava por longe ou sentíamo-lo longe
vem dar no mesmo
e no entanto víamo-lo sempre
ali plantado de imobilidade absorta
no cepo de carvalho raiado de negro
a que o caruncho comera o miolo
como as lagartas esvaziam as maçãs
estranhamente quieto murcho resignado
no seu estranho vadiar
os olhos aguados numa tristeza que hoje me dói
como um apelo perdido uma coragem abortada.
Ausência era tão de mágoa urdida tão de fracasso
[tingida
ausência era
altiva e desolada altiva e triste sobretudo triste
tristeza sim tristeza solene e irremediada
só agora o sei.
Às vezes parecia-me uma águia que atravessa os ares
sulco azul
que nada distingue do azul onde foi sulcado
e por isso nem é águia nem ao menos
o que do seu voo resta para que
o sonho se faça real.
Meu pai era um homem com as nostalgias
do que nunca acontecera e isso minava-o víscera a
[víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs
e então sei-o agora calçava as ágeis sandálias
miraculosamente leves soltas imaginosas
indo de acaso em acaso de astro em astro
eram de vento as suas sandálias fabulosas
levando-o aonde mais ninguém poderia chegar.
Os outros não o sabiam nem eu o sabia
só o víamos sentado no cepo velho
raiado de negro como uma estrela fossilizada
por isso tudo era para ele mais irremediável e triste
sei-o agora tarde de mais
tarde de mais é uma dor de remorso
que me consome víscera a víscera
como as tais lagartas esfarelam as maçãs.
Mas de qualquer maneira existe um segredo
de que ambos partilhamos
ciosamente avaramente indecifradamente
como os astutos conspiradores
que fazem do seu segredo
um mágico tesouro inviolado.
Um segredo simples:
o que sentiste pai
sinto-o eu agora por ambos
sinto-o por ti
sinto-o por mim.
Ainda que por ele devorados.
Fernando Namora, in 'Nome Para Uma Casa' lido aqui
Sabes,pai - um poema de Jorge Reis Sá
sabes, pai
o cachecol bege nos muros da foz
cobria as árvores com o seu pêlo, ao vento
o boné azul, marinheiro nos cabelos louros
sussurrava pequenas frases às silentes águas
o teu sorriso tão leve, enternecia o rosto
esses óculos, teu cabelo nas tardes de sol
ou o barco encalhado na areia breve
junto ao castelo onde nos passeávamos
eu tu a mãe, duas ou três falas e o meu corpo
que se chegava a vós junto à estrada
nestes muros da foz, abertos ao mar
que voava
Jorge Reis Sá
sábado, 17 de março de 2012
Sem tempo para sonhar
Doem-me estas horas de silêncio
Em que o nome encoberto das nuvens se expande por dentro
Setas errantes de nada perdidas em introspecções materializadas de sonho
Dói-me a ausência da tua forma em mim
Numa escala de quartas perfeitas tocada em câmara lenta sem perdão
Eram teus os meus dedos de sombra, poente de sentidos despertos e longínquos
Toma este intuito sonorizado de letras e enrola-o no teu ventre
Como um gato expoente de liberdade e independência caseira
Relê-me o tempo nas dobras dos segundos
Um tempo lento sem a tua cor, onde se desdobram sinos vazios e lupas
Porque pára o tempo no sem sentido?
Na nudez mista da carne desnomeada, exausta, gasta de sinapse inúteis
Uma esfera vaidosa encranizada em osso quente
A volúpia do sangue morno em banho Maria
A volta exacta dos espaços de seda dobrados sobre nós
Como a dúvida ou a certeza, presas nuas da verdade
Dói-me a mão da escrita densa e nua, só magma esculpido e terno
Dói-me o céu de tão azul nesta mariposa celeste em mutação
Tempo atrasado que arrasta verbos e colhe sonos
Hora certa para sonhar.
Em que o nome encoberto das nuvens se expande por dentro
Setas errantes de nada perdidas em introspecções materializadas de sonho
Dói-me a ausência da tua forma em mim
Numa escala de quartas perfeitas tocada em câmara lenta sem perdão
Eram teus os meus dedos de sombra, poente de sentidos despertos e longínquos
Toma este intuito sonorizado de letras e enrola-o no teu ventre
Como um gato expoente de liberdade e independência caseira
Relê-me o tempo nas dobras dos segundos
Um tempo lento sem a tua cor, onde se desdobram sinos vazios e lupas
Porque pára o tempo no sem sentido?
Na nudez mista da carne desnomeada, exausta, gasta de sinapse inúteis
Uma esfera vaidosa encranizada em osso quente
A volúpia do sangue morno em banho Maria
A volta exacta dos espaços de seda dobrados sobre nós
Como a dúvida ou a certeza, presas nuas da verdade
Dói-me a mão da escrita densa e nua, só magma esculpido e terno
Dói-me o céu de tão azul nesta mariposa celeste em mutação
Tempo atrasado que arrasta verbos e colhe sonos
Hora certa para sonhar.
sexta-feira, 16 de março de 2012
alma
é muito tarde e dói-me a alma
o dia trouxe-me uma coroa que não queria, de espinhos –
mas esta alma é forte como os ventos, dura como os diamantes
esta alma não se rende, não se rende nunca
esta alma que é minha, misturada com o sol e com a lua
é como um barco feito de artérias e sangue;
correndo, correndo sempre na linha directa do horizonte
qual funâmbulo
sem medo da queda nem de afogamento
lá longe
onde se junta mar e firmamento –
esta alma não é pura não é branca nem é suja
é uma alma que acredita
e por mais que doa a alma, há sempre caminho
os pés cansados, os dedos moídos e a corrida
e por mais que doa a alma, revela que existe
que é humana e que há vida –
josé ferreira 15 de Março 2012
quinta-feira, 15 de março de 2012
ao tocar um caminho
falei-lhe ao ouvido
de uma matéria mais quente
para se esquecer da imitação das árvores
à escala de uma estação
o olhar
cada volta que a informação dá no espaço
como um convite para dançar
fomos deixando crescer as árvores
não era urgente falar de árvores
não são urgentes as praças
não sou urgente?
ao toque os caminhos acalmam
e sentam-se nas praças
fingem dormir
nesta praça
a cair de uma estrela
onde a informação se encostou um dia
apaixonada pelos olhos de um bicho
e caminhou
sobre o fumo que une e separa
Man Ray
às vezes pergunto se a minha cabeça não é uma casa pequena e incompleta
com uma chaminé gigante, soltando fumos e fumos de uma fogueira a arder –
e para onde irá o fumo quando a fogueira apagar?
verdadeiramente não sei e pergunto, pergunto e pergunto-me
para onde irá o fumo quando a fogueira apagar?
um dia, um dia impertinente e indeterminado
pode chegar, na forma de um pássaro, assobiando a marcha imprópria
e uma tesoura de silêncio pode cortar a continuidade -
mas não é suposto o fumo parar –
estou preocupado com a origem e o fim. o fumo.
a fogueira arde intensamente
e interroga-me dos lugares que não conheço
das nuvens e do universo
da súbita afirmação e do perigo da subtracção
a perda de nitidez, o desvanecimento do fumo como corpo
sem prejudicar a fotossíntese
porque é um fumo de espírito, de agricultor;
plantas certas ou aromáticas tornadas imortais; fotografias de tempo
naquele fumo que sai e se espalha pelo ar
como uma alma reapreendida, intersubjectiva, diferente, seminal
de uma consistência renovada de outras almas que se encontram e se misturam
como alquimia, uma nova obra no meio das mãos de ventos originais
a nova forma, reinventando o tempo
uma nova aura
que se estende para sempre -
mesmo quando as outra almas se separam
sem a possibilidade de um novo olhar –
josé ferreira 14 de Março 2012
quarta-feira, 14 de março de 2012
Começávamos o dia por baixo - um poema de Catarina Nunes Almeida
Henri Matisse
Começávamos o dia por baixo
pelo tempo da pedra. A escarpa muscular
onde ia gastando os teus sapatos.
Manhãs compridas que chegavam ao mar.
Trazíamos as letras inclinadas trazíamos
na ponta da língua o nome dos naufrágios
e estávamos à mesa como um corpo de baile.
Uma subsistência sonora era esse
o estado da arte: éramos as claves do sul
de lábios estendidos à medida das máscaras.
Eu ia de rastilho, de árvore acesa. Ia iluminando a mão
com que batias no fundo. Traçava as águas
juntava as pernas para as covas do teu dente.
Passavam orlas e orlas e nós naquela descoberta
naquela terra toda à vista brincando ao verão
aos redemoinhos na chávena.
Catarina Nunes Almeida lido aqui
terça-feira, 13 de março de 2012
a não interpretação dos sonhos
tenho que te confessar um segredo
hoje nasceu um sol indomável pela manhã
um sonho ou uma realidade da qual duvido
talvez uma invasão sobrenatural –
de repente, muito de repente
imobilizou-me como se não fosse gente
e à volta, a matéria inanimada, ganhou movimento:
as telas e os poemas ficaram cobertos de fumos
e sofreram o toque mágico de uma fluida existência;
os poemas cheios de problemas numa grande confusão
e as telas descoladas das paredes
a libertarem impossibilidades:
figuras cresceram, soltaram-se deixaram as telas brancas
também libertas mas com pernas, andando como se fossem cartas
vazias de letras, sem paus nem espadas–
as mulheres que eram mulheres, nas telas
sentavam-se nas cadeiras do quarto
e o espanto era grande
as cores mais improváveis, uma maçã azul
atravessava-se de realidade
e silvavam setas pelo ar que me atravessavam por todos os lados
mas sem qualquer dor, como se fosse de ar ou uma nuvem
ou um pedaço de vento num corpo sem visibilidade –
uma figura pequena, nua, voava e ria-se com gargalhadas grandes
ia contra as paredes, subia pelo candeeiro
e ria-se com gargalhadas grandes.
pisava com os pés pequenos todos os poemas
e ria-se com gargalhadas grandes.
e falava-me com palavras estranhas, imperceptíveis
como quando as águas se despenham nas gargantas de cataratas
ou como quando o silêncio dos lagos nos colocam a agarrar a lua –
aquela figura pequena e endiabrada
falava-me na tal língua como se me contasse um segredo
um nome, um lugar, um barco, um rio ou uma cidade, imperceptível
e girava na secretária, no dedo grande, como se tivesse aulas de dança
por cima das letras mais escondidas, mais incompletas
mais encerradas de fumo ou submergidas por algas e limos –
aquela figura pequena e endiabrada, de asas brancas
erguia-se de arco nos dedos como as borboletas
e atirava setas e mais setas, setas e mais setas
e ria-se com gargalhadas grandes
de tal forma
que todas as mulheres que eram mulheres
sentadas nas cadeiras
levantavam as mãos e tapavam a boca
batiam com os pés no chão
e pareciam compreender tudo
como se eu não estivesse mudo
e os braços chegassem realmente ao céu
para abraçar a lua –
josé ferreira 13 março 2012
domingo, 11 de março de 2012
Painted Love
na tessitura líquida de um fogo prometido
ardem-me os olhos no dia monumental-
ao longe dentro dos meus quartos vazios
um vestido oscila a nudez explícita ;
uma tontura do sol –
segredos apertam a alma
dedos desenham alças que se soltam
linhas imprecisas, difusas formas
insinuando-se na duplicidade dos sentidos –
o real, o irreal, a dinâmica dos espaços vazios
mesmo que multidões atravessem as ruas
que apitem milhares de carros
um sonho para além da vida
para além das cores, dos óleos que se misturam nos quadros –
braços oblíquos, pés rodeados de limos
uma luz estonteante, íntima, fluida
desvanecendo, subindo escadas, inatingível
como uma estrela do Norte acendendo o escuro
cintilando a noite no veludo que a cobre –
se fosse numa praia vazia onde as areias são também milhares
as espumas parariam junto dos teus pés
abrindo as portas do mar.
ao longe a tua pele poderia brilhar e deslizar
entrando com suavidade no infindável horizonte;
as gotas cobrindo o corpo, unindo-o em sons de água –
um arco incompleto em ogiva. as mãos estendidas
na descontinuidade simples
talvez de um uníssono impossível
talvez possível
no interior das palavras, no interior de um quadro
numa porta que se abre –
josé ferreira 11 Março 2012
sexta-feira, 9 de março de 2012
Amor é olhar total - um poema de Fiamma Pais Hasse Brandão
um sonho de Guillaume Apollinaire
Guillaume Apollinaire
um dia claro como as águas de um riacho de Coimbra
pela quinta sem lágrimas, pelos lugares secretos dos limbos
onde serás sempre ninfa –
a ilusão é uma pedra de cristal, faces que se multiplicam
brilhos, uma pequena mancha de um incêndio de sol
nos cantos do caderno e as linhas longas –
as palavras substância e os néctares de Mercúrio
o deus das asas, o mensageiro de um rio
que se lança sobre os espelhos das árvores
pelo chapéu das margens onde se sentam os pássaros
e os ramos tocam em cordas grandes, liras gigantes –
de que poderei falar agora quando cessa a luz e surge a lua branca?
talvez de Guillaume depois de Baudelaire
talvez dos poemas mais permanentes de Paul Eluard
talvez de uma filosofia de razão para equilibrar
talvez de músicas roucas e pensamentos profundos
talvez de carumas antigas e sandes nas costas dos pinheiros
talvez do mar, sim, talvez do mar –
mas são apenas fumos, aromas de ópios, incensos
olhares de lado, o soçobrar do desejo
a tarefa impossível de segurar as águas e separar o sal –
quando depois de um dia longo surge a lua branca
fechamos as janelas devagar, percorremos as garças
os rolos de linhas nas cortinas de renda
e todas as portas estão fechadas –
fazemos de conta que vamos descansar;
os pijamas e as escovas de dentes
os passos elevados na leveza dos chinelos
um resto de páginas, uma marca
a mão três vezes na abertura da boca
e depois, puxamos a roupa,
puxamos a roupa como um peso de chumbo
um peso de chumbo sobre o cansaço dos ombros
e adormecemos, adormecemos –
adormecemos os sentidos mais visíveis, os mais recentes
porque dentro do sonho há pó de caminhos
corridas, olhos, braços, crinas selvagens
o corpo, o rosto e um chapéu de abas largas
Caminha, Espinho, Vigo, Santiago, terras de França
e uma tenda de campismo sempre junto de um riacho
sempre junto de um riacho
ouvem-se as palavras –
8 de Março 2012
quinta-feira, 8 de março de 2012
As Novas Cartas Portuguesas
Livro polémico e simbólico, publicado pela primeira vez em 1973, sobre a libertação feminina pelo qual Maria Teresa Horta haveria de ser agredida e insultada em plena via pública da cidade de Lisboa. ler mais sobre o livro e as autoras "As três Marias" aqui
As três marias - um poema para o dia da mulher
Chiara Rizzolo
Titolo: Virginia
Tecnica: digital art & photography
Dimensione: 50x50 cm
"Era uma Primavera irregular. O tempo em constante mudança punha nuvens azuis e purpúreas a voar sobre a Terra. No interior, agricultores olhavam, apreensivos, para os campos. Em Londres os guarda-chuvas eram abertos e depois fechados por pessoas que olhavam para o céu. Mas em Abril era de esperar um tempo assim."
Virginia Woolf "Os Anos"
1ªMARIA
Jovem Maria
Deslizo ainda junto de ti
encolhida nessa asa
onde a pele morena
de mão maior
me espaça os dedos
em ondas soltas
distendidas
na entrega louca-
Este Sol exterior no brilho ofusca
mas na redoma ainda sinto
o morno sopro de beijos
os sussurros e arrepios
num afagar de pomba
de bico escondido
onde me aninho -
Nesta rua não sou eu...
desprovida de sombras;
sete vezes mais leve
em cada passo levito...
Mas não te vendo
em cada minuto que passa
no desejo, na saudade,
sou a personagem aflita
no filme tremido,
na nitidez certa
de te querer
uma outra vez
à minha espera-
Maria Levita
2ª MARIA
Faz-se tarde Maria
Não gosto do olhar cinzento
quando me abraças ao fim do dia.
Procuro o sorriso distante
de fugidas de jardins
entre frases aos molhos,
gotas de orvalho frescas,
melodias de silêncios
entre copas e arbustos,
às escondidas curiosas
dos chapéus vigilantes -
Soltavas beijos em qualquer hora,
perseguias os aromas,
destruías rotinas no desafio
dos sentidos...
e agora onde páras, onde estás
meu amor das Primaveras-
Quero de novo os papéis queimados
de ornadas fantasias de poemas...
ser a musa, a deusa, a louca...
Onde estás?
Tenho a pressa e o desejo
de amores-perfeitos,
margaridas, dos jacintos
colhidos nos passeios
de Domingos,
entre raios de brilho,
relâmpagos de mar -
Porque não me vens de novo,
vestido de orquídeas, de sapatinhos verdes,
de rosas brancas, vermelhas, laranjas...
(antes que venha a noite),
visitar?
Não te quero assim -
Onde estás?... Onde estás?
Maria da Esperança
3ª MARIA
Memórias de Maria
Fecho o cesto de verga,
o vime da memória da tua ausência.
Não era p'ra ser assim
"Primeiro eu, só depois tu"
Mas dizias, afagando rugas:
"...espero por ti sentado
na manta de lã, quadrados azuis,
xadrez,
num relvado, junto a uma cesta
de flores... lá...
espero por ti
a meu lado..."
Saíste de mim neste mundo
Mas sei onde estás...
no outro lado do berço,
num baloiço, num embalo,
adormecido...
no Paraíso -
Guardo alegrias, consolos,
a companhia nos colos que
partilhámos...
Aqui...ainda és meu...
Ainda estás -
Não choro mais!
Maria do Céu
josé ferreira Outubro de 2008
quarta-feira, 7 de março de 2012
A partir de "O Regresso dos Caçadores"
No Inverno o rio transbordava, a chuva
e o sangue dos matadouros traziam-no
abundante desde a nascente. Não um rio
– disseram-me depois – um pequeno afluente
contido entre os muros das casas, vagando
a face impura dos campos e dos pátios, as artes
liquefeitas no clamor da intempérie
e os homens (essa voz
nidificada em cozinhas e colheitas, em papel
de paredes fechada, e apenas vagamente
familiar) abrindo caminho entre as águas
numa irmandade de súbito criada
à distância desamparada
de um eco
Como os séculos, os rios decorrem
sem culpa, com a estase do corvo pairando
O desastre nem sempre é distinto
dos vultos que brincam no gelo
e convergem, cúmplices, na inumana
paisagem
À revelia das mães, as crianças
desciam à rua para ver
o rio transbordar. O barro sem Deus
das bestas, a fluida forma
da morte tingia-lhes o calcanhar
e voltavam para casa
como os caçadores de Bruegel, o magro cadáver
da raposa ilustrando a culpa
doravante inscrita
em todos os postais de Natal
águas de março
caíram três pedras de chuva sobre as folhas da mesa .
preocupa-me o teu olhar sobre a inconsistência
a minha a tua a de sempre.
preocupa-me a tristeza de portas fechadas
as que sentem –
tenho escrito menos palavras sossegadas
menos poemas de natureza
aqueles que se debruçam sobre jarras transparentes;
um ramo de tulipas amarelas, grandes, belas, ainda presas
nos seus corpos pendentes, como sol e sobremesas
brilhantes, luminosas, belas, grandes, amarelas, ainda presas
recolhidas num campo imaginário, um lugar de simbolismos
embora adquiridas num fim de tarde
entre a compra de quatro iogurtes e um vinho rouge
na loja útil de um supermercado -
caíram três pedras de chuva sobre as folhas dispersas
criando borbulhas de celulose, brancas
que se levantam e deformam as letras, armando-as de sal
amando-as, um pouco antes de serem de novo planas
de novo exactas e exaustas, na solidez do tampo –
caíram três pedras de chuva sobre as folhas agora âmbar.
há um oceano de silêncio e em nenhum bar soam músicas de blues
teclas de trompetes, vozes roucas de Armstrong , pianos de Casablanca –
e é março, e as águas murmuram nomes –
josé ferreira 6 de Março 2012
terça-feira, 6 de março de 2012
Já alguém sentiu a loucura vestir de repente o nosso corpo - um poema de Almada Negreiros
Almada Negreiros "Figura de Mulher com pandeireta" 1938 daqui
Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parece ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-lhe, e ganhar-lhe
ao ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais.
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar.
Almada Negreiros
domingo, 4 de março de 2012
Nesta cadeira pálida
Fotografia retirada do The Guardian
Nesta cadeira pálida, livros cheios de folhas e um ruído de vento na janela;
Punhos de força, invisíveis, baques surdos -
Descreves os maus momentos e as repetições incessantes;
A obsessão das árvores, da lua, dos pássaros
Mas não atormentes os silêncios, os momentos parados sobre as asas da alma
Não será essa a faca nem a espada que corta os enigmas
De um castelo de torres agudas de onde saem morcegos
E pousam corvos nas noites mais escuras.
Não apoquentes os sonhos que estão mortos
E ergue a voz apenas pelos mais delinquentes
Aqueles que hão-de ser vivos
Os de raízes frágeis para serem grandes –
josé ferreira 4 Março 2012
A clara noite de verão - um poema de Fernando Pessoa
A clara noite de verão
Com penugem nos sentidos
De leve pousa e afaga, e não
Dorme mais
Novos, nos ensiraram a emoção,
Crescidos, aprendemos a verdade
Resultou
Débeis de mais para buscar o verdadeiro,
Frios de mais para encaixar o sentimento.
Fernando Pessoa
In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005
sexta-feira, 2 de março de 2012
Afogo no teu ombro - um poema de David Mourão Ferreira
quando se sente a lua como um espaço aberto
Zhu Yiyong
quando se sente a lua como um espaço aberto
dentro das costelas flutuantes
sente-se a impropriedade do tempo –
as árvores estão sossegadas no passeio claro da luz de néon
afirmam linhas profundas , perpendiculares e cruzadas
onde se reunem os nossos pensamentos
como uma valsa de fevereiro de um modo diferente
que adia a chegada de um ombro
que adia o desejo de calar o nevoeiro –
o sorriso que guardo e as emoções dos violinos abrem o incêndio.
é seguro que ardo, uma ardência intensa, junto de uma janela muda
junto com os pés congelados
junto com os corpos resguardados –
um homem pensa e uma mulher pensa –
as extremidades de um soalho não são raízes na indisciplina das células
a ciência não explica a química humana quando se desconstrói a matéria
a metafísica envolve-se de uma leveza de vento e rodeia as células pré-rafaelitas
nómadas gigantes de sensibilidades que atravessam as distâncias –
somos seres líquidos e tangíveis num mar de memórias rarefeitas –
os dias são sempre novos e são sempre grandes
um manto de paraíso escreve-se de asas
de olhos nos olhos dos pássaros –
é obrigatório seguir-lhes os passos
quando pisam o ar como se fossem leves as calçadas –
é obrigatório apertar as mãos e alargá-las
respirar o sonho pelo nascer da madrugada –
é obrigatório que sossegues que adormeças os olhos
há uma lua aberta e um quarto de ondas brancas
descansa suavemente
não magoes as raízes dos cabelos e pousa o rosto nas penas da almofada
- a leveza, os pássaros.
perde o peso das realidades, perde as lágrimas
não temas a pulsação vermelha do sangue e do oxigénio
sente os versos e os poemas, são longos como a eternidade –
descansa, os sonhos falam
as palavras vestidas de silêncio são pesadas -
não se sentam nas cadeiras não abrem os braços –
josé ferreira 29 fevereiro 2012
Subscrever:
Mensagens (Atom)