terça-feira, 29 de novembro de 2011
C de cem - um poema de Pablo Neruda
Richard Avedon
No meio da terra afastarei
as esmeraldas para te ver
e tu estarás copiando as espigas
com uma pluma de água mensageira.
Que mundo! Que profunda salsa!
Que navio navegando na doçura!
E tu talvez e eu talvez topázio!
E não haverá separação nos sinos.
E haverá apenas o ar livre,
as maçãs levadas pelo vento,
o suculento livro na ramada,
lá onde os cravos respiram
criaremos uma roupagem que resista
à eternidade de um beijo vitorioso.
Pablo Neruda "Cem sonetos de amor", Campo de Letras, 2004
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Soneto XXXV - um poema de Pablo Neruda
Thomas Cooper Gotch
Tu mano fue volando de mis ojos al día.
Entró la luz como un rosal abierto.
Arena y cielo palpitaban como una
culminante colmena cortada en las turquesas.
Tu mano tocó sílabas que tintineaban, copas,
alcuzas con aceites amarillos,
corolas, manantiales y, sobre todo, amor,
amor: tu mano pura preservó las cucharas.
La tarde fue. La noche deslizó sigilosa
sobre el sueño del hombre su cápsula celeste.
Un triste olor salvaje soltó la madreselva.
Y tu mano volvió de su vuelo volando
a cerrar su plumaje que yo creí perdido
sobre mis ojos devorados por la sombra.
Pablo Neruda Cem Sonetos de Amor
A rua fragmentada
David Hockney
Os passeios são fragmentos de vidro, sensíveis.
O verde invade a moldura, corre uma brisa.
Não há o movimento brusco da rua, quase uma fotografia
Ou fotografias de pequenos espaços que se autonomizam,
Se atomizam na diferença.
Voltamos sempre a este ponto de partida, como o ovo.
A casca que não pode ser cramelizada em demasia.
A auscultação dentro, de batimentos, enche cada espaço escondido
E as manhãs de domingo são por vezes frias –
Estou calmo, tranquilo, não há redes nem teias no caminho
Aqueles ramos de palavras reanimaram a suavidade.
Não há fúria, desengano, desistência ou desertos de destino.
Não se levantam as fogueiras fátuas de esconderijos.
O imponderável de um segredo pode ser o lugar mais próximo.
Há uma meditação sobre a ausência e o silêncio.
Os ramos de palavras foram bálsamo,
A posologia intangível para o renovar das brisas.
Agradeço-te esse fragmento que alimenta a manhã,
O seu tamanho original de pele e braço físico, material
Por detrás da janela
Na rua fragmentada e vazia -
Sinto-te, invisível -
José ferreira 28 novembro 2011
domingo, 27 de novembro de 2011
mensagens mal compreendidas
David Hockney
não vou falar nada,
conheces palmo a palmo a minha altura,
dedo a dedo a minha face
e os olhos estão cansados de noites falsas.
não vou falar nada -
o mar nunca repete os ruídos e ando descalço
de pés limpos, brancos e macios
junto às fontes dos conventos, lugares sem desígnio.
não vou falar nada -
os braços são tábuas náufragas, metáforas repetidas
na persistente invasão dos oceanos,
tempestades e navios.
não vou falar nada, nem mais, nem nunca
porque fico com lágrimas
sempre que te iludes e me confundes -
lembro-me bem das loucas viagens, foram belas e sensíveis
construindo pedaços de natureza como se fossem duas,
as setas, vindas de um longínquo oriente
onde nascem sedas sibilantes, purpurinas -
não vou falar nada -
calo-me então no infinito dos tempos laminados
pelas metades impossíveis.
não vou falar nada -
tens o lugar de inesquecível
e as madrugadas serão sempre grandes;
lábios de segredos, palavras invisíveis,
varandas abertas, do lado de lá do escuro,
células robustas, desenvoltas, desmultiplicadas
de girassóis e margaridas
por jardins insuspeitos de deslizes -
não vou falar nada.
não vou falar nada, disse
mas sabes que não é verdade
e quanto ao nunca, é sempre
um qualquer dia -
josé ferreira 26 novembro 2011
sexta-feira, 25 de novembro de 2011
feitos de lava - 8 poemas de Ana Luísa Amaral
1.
Há-de ter sido assim:
o princípio do mundo
– antes de os grandes sáurios
invadirem o chão
e os céus
Muito antes
da súbita explosão
que lhes pôs fim
Há-de ter sido assim:
um caldo borbulhante
e os veios roxos,
entre azul e lilás,
a rocha
negra negra negra
– e cor
de fogo
2.
Ou nessas veias:
via sacra de espanto
informe,
a promessa das formas
mais perfeitas
Ou ali antes:
a quase perfeição?
Uma forma de fala
entre o quase trovão
e o ressoar,
o tempo que parou,
sem voz –
3.
Depois,
a lava fria,
lagos da lava fria
– e a perder-se
o olhar,
cratera quase igual
a gelo e lua,
quase sem luz,
o tempo a repetir:
o fim do mundo,
quem sabe
o seu romper
4.
Não tem conforto
o corpo
ao lado da cratera
sabe-lhe a cinza,
sente-lhe o vazio
e a implosão
das veias
e do sangue
5.
Esta paisagem
não tem a cor de areia,
mas é cor de vulcão
a sua carne
e de repente,
como em flanco,
o verde em vários
lumes
E o horizonte:
tão liso,
como se fosse
orientado
a régua
6.
Mas nulos são
os pontos cardeais
Onde quer que o olhar,
navegam as estradas,
e o mar sobeja
– sempre o mar –
sobrando,
campos bordados
a rosa e a lilás,
demais, demais
as flores
Não há voz
que resista,
nem coração
que fale
7.
A enseada
de repente
invadiu-se de barcos
pequenos,
coloridas as bandeiras,
quase
uma via sacra
Ou o conforto humano
em luta contra o sal
a lutar contra o frio
do nevoeiro
a lutar contra
o sol
8.
Faltava só
o nevoeiro
aqui
E vinha já de cima,
de antes dos grandes sáurios,
dos veios roxos,
do caldo borbulhante
De lá chegara já,
embora omisso
em letra
Nesta letra
que tanto se esforçou
em fogo
e lava,
faltava
ver-se
nula
E o princípio
de tudo
é como um quadro
negro
E é lógico
que a apague
em número:
desenhado
arremedo
de
infinito
Ana Luísa Amaral, Açores 2009 lido aqui
Se perguntarem: das artes do mundo? - um poema de Herberto Helder
Robert Doisneau "Picasso e Françoise Gilot"
Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
caem dentro dos dias - e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.
Herberto Helder
quinta-feira, 24 de novembro de 2011
da leveza
Margarida Cepêda "leves são os pássaros" 1999
naturalmente é da leveza de que falo.
o equilíbrio inseguro e afastado de quem lê o mar
da praia ou do alto da amurada.
o simétrico das águas reflecte-se no céu
da mesma forma que os espelhos cruzam vidros e pratas
numa soldadura química que voa
como pássaros -
há uma dança clara de silêncio, de ausências
que revela o ser diferente, na multidão e nas massas.
há um batimento e ritmo de campos no meio dos carros,
no meio das cidades
por onde deslizam rios e flores, tecidos de urzes e cardos
ou um soprar de odores, emergido, pelo meio das searas.
e há um sentido, sem ser único nem determinado,
um fluxo indisciplinado de procurar o mundo, um outro mundo
irreverente e irrevelado -
é da beleza de que falo, não na forma imediata
não do postal, fotografia ou anúncio mediado
mas sim de um sentir de metáforas que seguram espadas
e cortam os ventos quando são de fuligem e se propagam,
invadindo o rosto, procurando a alma -
é da beleza de que falo; do campo, do mar e da leveza-
um cântico supremo perto dos pássaros -
José ferreira 24 Novembro 2011
quarta-feira, 23 de novembro de 2011
Praia - um poema de Sophia
agora
quieta a mesa, quieto braço e sobram imagens.
há silêncio por todo o lado.
antes o lado mais obscuro, a costura grossa,
pedras duras nos vidros, boomerangs tortos,
o ranger assustador de tábuas, o castelo,
os mochos escondidos, os morcegos, os corvos,
o nunca mais dos mortos -
o excesso de silêncio mata
agora que li de novo as tuas palavras -
José Ferreira 23 Novembro 2011
terça-feira, 22 de novembro de 2011
As amoras - um poema de Eugénio de Andrade
Margarida Cepêda " A criação de Eva "
O meu país sabe as amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
Eugénio de Andrade "O Outro Nome da Terra"
segunda-feira, 21 de novembro de 2011
Iunia
Charles Curran
De volta a casa, dei por mim a agrupar ainda argumentos contra as palavras de Iunia. Contra as que ela disse, contra as que imaginei que ela poderia ter dito. Ocorriam-me novas citações, versos, trechos de tragédias, mitos. Importunava-me a ideia que faltava dizer-lhe qualquer coisa e de que aquela hostilidade que sempre desastrava entre nós resultava, afinal, duma incompreensão que poderia ser removida por raciocínio, por demonstrações, por palavras. Pensei em frases, atitudes. Gesticulei, só comigo. E, no fundo, sabia que tudo isto provinha da minha imaginação…
Passeei longo tempo pelo átrio, sentei-me perto do tanque e procurei concentrar-me numa prática antes usual para mim, masque os últimos tempos não vinham propiciando: o exame de consciência. Ganhei o dia? Perdi o dia? E a imagem de Iunia, olhando.me um pouco de viés, entre o irónico o desconfiado, teimava em se interpor e perturbar.
Mário de Carvalho, Um Deus passeando na brisa da tarde, Caminho
domingo, 20 de novembro de 2011
Fragmentos XII - os óculos escuros
Nathan Altman
ESCONDER. Figura deliberativa: o sujeito apaixonado interroga-se, não sabe se deve declarar ao ser amado que o ama (não é uma figura de confissão), mas em que medida lhe deve esconder os «cuidados» (as turbulências) da sua paixão: os desejos, as aflições, em poucas palavras, os excessos (no dizer de Racine: o furor.
Roland Barthes "Fragmentos do discurso amoroso" ed.70 1981
sábado, 19 de novembro de 2011
a leveza impenetrável
Michael Garmash
nunca seria capaz de te magoar.
quando quiseres esquecer, corre a cortina,
e elimina a transparência que mostra a lua
e uma fronteira demais à frente -
mas não permaneças no lugar obscuro
( por onde prendes os pés, tão bonitos )
solta a capa vermelha, assume o sumo
e sê como aquelas almas que nos tocam
em todas as horas do dia, uma face imemorial
magnífica, uma frase tão bem escrita
que não se esquece nunca
e sobrevive -
sê essa surpresa que enrubesce os mitos
que não tem lugares, que não se adivinha, uma cantiga
entre rumores de rios, entre subidos montes
desfolhando em pormenores as margaridas
folha a folha, entre brancuras alongadas e únicas,
submetendo o improviso, caindo ao de leve sobre o campo
amarelo, solarengo de destinos -
parece uma vulgaridade
mas as soluções de caminhos difíceis
são por vezes pesadas e tão visíveis
como asas de miligramas
cansadas de serem simples -
sê onde quiseres e em qualquer lugar gravítico e redondo
deste mundo, mas lembra-te
a leveza é impenetrável, só há consciência quando existe -
José Ferreira 19 Novembro 2011
As palavras aproximam - um poema de Ana Hatherly
fotografia retirada daqui
As palavras aproximam:
prendem-soltam
são montanhas de espuma
que se faz-desfaz
na areia da fala
Soltam freios
abrem clareiras no medo
fazem pausa na aflição
Ou então não:
matam
afogam
separam definitivamente
Amando muito muito
ficamos sem palavras
Ana Hatherly
sexta-feira, 18 de novembro de 2011
para que o sonho aconteça
uma música minimalista soa incessante.
uma repetição de tempo.
a invisível visualidade de um teatro de marionetes.
fios, fios finos, que não se cruzam no acaso.
a energia é variável.
a hora muda e não há mudança na hora.
a pergunta surge, porque um pouco sobre o escuro,
porque é noite e está frio
e as ruas estão vazias como desertos sem rios
e os céus escondidos na constância da rotação nocturna.
dentro dos olhos fechados, a claridade num cadeado de diário.
a claridade que pode abrir um baile de Renoir
uma grinalda pendurada nas ruas de Paris
ou um barco que desliza assíduamente
no apoio de uma gôndola pelos canais mais lentos
entre palavras sussurradas junto à pele dos ouvidos
ou o descer dos sorrisos, uma corrida, até que o mar engula os corpos
os rodeie de espuma, e os traga de novo às toalhas estendidas
para que se libertem de todas as humidades de sal ;
a claridade tamanha na noite das prateleiras
onde o eu se perde, o sub some e o inconsciente assume
uma verdade completa e momentânea num campo de flores
rodeadas de lume -
no interstício mais ínfimo da memória há a cor do diamante
a esmeralda no rosto, o rubi directo e vivo
retomando a revolução sem forma, o poder do conteúdo
desfazendo-se pela manhã na totalidade do fumo
como folhas de Outono
que foram tão únicas e agora se juntam
no estaladiço dos jardins -
e os dias passam pelas tempestades dos segundos.
para quem lê de fora nada parece significar, apenas um intermezzo
um entretanto, uma indiferença
mas não é assim, não é menos vida, não é um planar constante
uma mente distraída.
são intervalos concretos e atentos entre realidades
que por vezes não se revelam criativas, sonolentas
evidentes -
intervalos, intervalos de ampulhetas de areias
como a música minimalista, a mimese dos gestos
nos trejeitos de um mimo, que não mostra a cara
e que por dentro insossega triste a incerteza,
a incompreensão de muitas mentes sobre a mesa
porque não existem territórios perfeitos,
isso são máquinas
ilusões fulminantes de cientistas
porque não se acredita na inteligência dos circuitos
e a pergunta surge:
imaginas, por exemplo um computador a ler Neruda e Shakespeare?
a escrever poemas e cartas de amor, achas possível, a quem se dirige?
quererá seduzir a delícia de uma aresta, a perspectiva de uma seda
que se afirma de metais e plásticos entre a sede de algoritmos?
essa é a diferença que diferencia o binário e o tecido, a célula clara
e a vontade de melanina -
essa a diferença que alimenta os comprimidos
quando as noites são longas e subsistem
sem revelar segredos, segredos escondidos
e a pergunta surge:
será que informaram o sol? para que se levante hoje devagarinho?
para que adormeça e resguarde um pouco mais a hora matutina?
para que tenha um pouco de preguiça e suporte a hora lisa?
para que a neblina não abrace depressa o dia?
é preciso que o sonho permaneça como asa luminosa
nas campânulas dos olhos,
como flores silvestres num campo vasto
onde abelhas saboreiem flores e voem baixo
dentro da cabeça, zzzzzzzz, um zumbido -
José Ferreira 17 Novembro 2011
quinta-feira, 17 de novembro de 2011
precisava falar-te ao ouvido
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o rnundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Álvaro de Campos
terça-feira, 15 de novembro de 2011
a história de um caso
quando cruzas as pernas não descuido o olhar
sem danos, que se dane
pior seria, observar outras estrelas
um outro rosto junto ao mar –
quando cruzas as pernas não evito o teu olhar
a interrogação na ironia dos lábios
um ligeiro sorriso, um proteger de intimidade
e é fim de tarde, e é Verão
e no areal todas as mulheres mostram mais –
quando cruzas as pernas há um desejo de sexo
e é normal como as ondas, como a água e o sal
no entanto ajeitas a saia e perdes os olhos na folha branca
uma posição flexível e abstracta, baixando e erguendo pupilas
como quem pensa num poema ou numa carta
naquela pura dificuldade
de pensar da mesma forma
sem dizer nada –
quando cruzas as pernas perco-me a imaginar quadros
cores azuis, cores mais pequenas, sensibilidades
entre o prodígio e o vulgar, reinventando penínsulas
numa soldadura de países, sem fragilidades, de hinos –
corre uma brisa de amenas tardes
na lateralidade do rosto, nas maçãs coradas
quando se solta ao de leve a gargalhada
um som pequeno, de quem viu, gostou e disse nada
no rodeio de escrever na folha em branco
uma primeira palavra –
e a razão é fácil, como saborear um rebuçado
caíram-me os óculos, pois claro
sem mais, desamparados sobre o grão de areia
na esplanada de madeira, sem danos
que se dane, ser óbvio não é pecado -
quando abandonamos o supor de intensidades
desce a noite como ave a planar
e sem mais, ao dar os dedos
guardamos dentro da cabeça todas as palavras
e fechamos os lábios -
José Ferreira 14 Novembro 2011
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
A infância de Herberto Helder - um poema de Tolentino de Mendonça
Magritte
No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas
Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
Isso foi antes
de aprender a álgebra
Tolentino de Mendonça
domingo, 13 de novembro de 2011
faz greve à rua, não apertes os sapatos
Almada Negreiros
"A vocação de Almada foi a de dizer-se, de afirmar-se, de passar a vida a ser-se Almada" Eduardo Lourenço
pressas de partida e pressas de chegada, a regular situação da cidade.
não há o encontro de faces na semana que parte.
os comboios abstraem-se das pessoas e olham os rails, parados, secos, calados.
chuvas caiem –
um homem de olhar estranho desce a rua inclinada.
uma voz fala “ faz greve à rua, fala com a lua, perde-te nos astros “.
os olhos não olham a direito, dão curvas improváveis,
dobram esquinas de mármore e vêem estátuas, lisas, físicas, claras
numa prosa tão correcta que não roça o verso nem desenlaça a alma;
uma questão de luz, túnel e obscuridade, talvez um facto
justificado pelas cores substantivas de um quadro imaginário –
não há a solidez de um corpo junto da voz que fala, auricular.
supõe-se de alguém porque o vento sopra sem palavras.
mas eis que repete: “faz greve, faz greve à rua não apertes os sapatos,
tropeça, cai, não permaneças inclinado”
- uma irrealidade de que Eco falava.
mas será verdade?
a voz repete grave “faz greve, faz greve ao quadrado e aos quadrados,
faz greve à ferrugem nos cronómetros incendiados,
faz greve à ilha, à caverna ou à nau fora d’época,
faz greve simplesmente, abstracto, e cria depois um soluço de paz
encostado no habitual semáforo.
depois corre, corre, até que sopre um vento muito forte
mais quente, e que se acenda , que fumegue, que seja fogueira,
e com esses pés tortos de teatro
procura a simetria próxima, a sede do corpo, a seda e a face –
corre, corre, não pares
nas ruínas e nos ruídos da cidade, corre,
corre sempre
enrola o silêncio na velocidade dos passos –“
o homem não corre e faz lembrar Almada;
ossos largos, faróis redondos, um boné sobre o rosto,
e há uma voz que diz enquanto passam os carros:
“é um homem estranho e inclinado
por vezes tem as mãos perdidas na arte, no fumo dos quadros,
no cair do amarelo. por vezes flutua entre a totalidade e o intermédio,
entre as filosofias de Pessoa e o ultrapassar do vermelho.
por vezes cala-se, por vezes chama, por vezes grita
e por vezes despe-se, insignificante,
na insegurança dos lábios -
José Ferreira 11.11.2011
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
quinta-feira, 10 de novembro de 2011
não é tarde e não é cedo
uma chávena de chá preto em cima da mesa
e a luz branca por cima das teclas, uma lupa redonda.
a ampliação da noite decide a palavra,
a palavra solta na frente dos cabelos desgrenhados
como uma massa redonda, polvilhada,
o pão da alma, no forno que se acende –
não é tarde e não é cedo, respondo-te,
nem nunca cessa o luar sem silêncio
que percorre as distâncias
e cinta cada gota de vermelho –
passam carros a momentos e gente
e ninguém sabe desse tempo de quinta-feira, madrugada,
que aperta uma coleira na pressa do poema
pelo bulício escrito da desistência –
não é tarde e não é cedo, e há o erro da fraqueza
junto a uma girândola de círculos de urgência, sirenes autênticas
no alarme gritante e injusto de um céu de inverno -
passa das duas horas e não há vivalma no asfalto.
é a noite cerrada como as portas altas dos museus da cidade.
não há quadros, nem a luz das obras de arte,
porque se criou a mentira do facto na criação errada, a falácia,
falácia apenas, simplesmente, como por vezes a democracia
que parece justa e é ingrata –
cai aquela chuvinha flácida que mal se enxerga,
uma chuvinha sem qualquer ruído, de pouco brilho,
uma água sem rumo, parada pela dúvida, pela escolha do escuro,
parada pelo húmido musgo verde sobre a cor do granito,
o desequilíbrio do muro, tão forte na erosão dos ventos,
mas que treme no desfazer da terra, a possível perda,
o suporte que lhe serve de alicerce –
as notícias despedem o ministro italiano,
a Grécia é um desassossego sem dracmas,
o Mediterrâneo está morto de cansaço
e o peito bate de ritmos céleres, passadas de lebres,
naquele lado tão frágil dos medos, o esquerdo,
escorrendo como um choro, um desencanto próximo,
a possível perda, o quebrar dos espelhos –
não é tarde e não é cedo -
há uma chávena de chá preto em cima da mesa,
ainda quente.
a persiana corre como um comboio expresso,
de trilhos ao lado,
coloca a ténue fronteira de plástico
entre o quarto e a cidade, o opaco.
mas não decide o fim da transparência,
não elimina o singular, o mármore único da aura -
não é tarde e não é cedo -
há uma chávena de chá preto em cima da mesa,
interrompe-se o poema -
josé ferreira 10 de Novembro de 2011
quarta-feira, 9 de novembro de 2011
Criação - um poema de Cesare Pavese
Fernand Léger
Estou vivo e de manhã surpreendi as estrelas.
A companheira dorme ainda e não sabe.
Dormem todos, os companheiros. O claro dia
vejo mais nítido que os rostos submersos.
Passa um velho à distância, a caminho do trabalho
ou a gozar a manhã. Não somos diferentes,
ambos respiramos o mesmo esplendor
e fumamos tranquilos para enganar a fome.
Também o corpo do velho deve ser puro
e vibrante – deveria estar nu ante a manhã.
Esta manhã a vida escorre-nos na água
e em terra: em torno o fulgor da água
sempre jovem e a descoberto os corpos de todos.
Haverá o grande sol e a aspereza da praça
e o rude cansaço que nos verga para o chão
e a imobilidade. Estará a companheira
- um segredo de corpos. E cada um dará sua coisa.
Não há voz que rompa o silêncio da água
de manhã. Nem nada vibrando sob o céu.
Apenas um calor que dissolve as estrelas.
Treme-se ouvindo vibrar a manhã virginal,
como se nenhum de nós estivesse acordado.
Cesare Pavese
terça-feira, 8 de novembro de 2011
e ao anoitecer - um poema de Al Berto
segunda-feira, 7 de novembro de 2011
Visitações, ou o poema que se diz manso - um poema de Ana Luísa Amaral
Lilla Cabot Perry
De mansinho ela entrou, a minha filha.
A madrugada entrava como ela, mas não
tão de mansinho. Os pés descalços,
de ruído menor que o do meu lápis
e um riso bem maior que o dos meus versos.
Sentou-se no meu colo, de mansinho.
O poema invadia como ela, mas não
tão mansamente, não com esta exigência
tão mansinha. Como um ladrão furtivo,
a minha filha roubou-me a inspiração,
versos quase chegados, quase meus.
E mansamente aqui adormeceu,
feliz pelo seu crime.
Ana Luísa Amaral
domingo, 6 de novembro de 2011
Shakespeare e a epígrafe
Charles Curran
voltaria sempre ao lugar da epígrafe
ao cruzar de olhares
às palavras não ditas:
escondem-se, escondem-se, em ruas de sombras;
ruas que escutam os sonos, os sonhos
tão aflitos de serem puros, de serem perfeitos
como naquele filme num alto de um monte
outros actores -
voltaria sempre ao lugar das praças longas
às noites miraculosas de músicas ruidosas
um pedido de dança
no meio de tantas pontes
e muitas letras no tamanho grande
fugas no silêncio sem nenhum outro ramo
como um poço fundo, uma ausência
a incerteza de algum dia subir no bico de uma cegonha
uma água de aromas -
voltaria sempre às janelas perdidas
às luas feridas na distância
aos raios de sangue na tempestade das lágrimas
ao meu caminho patético de um sofrimento de alma
porque a vida dá tantas voltas
e há círculos que se formam
que se abraçam
como se fossem as últimas horas;
um fugir de noites
em semanas escorregadias –
voltaria sempre ao som da harpa
às cordas que se encontram
dedilhadas e suaves
amplificando e extenuando o som
pelos braços do inverno como um tempo sem tempo
na invenção de inverter as setas desferidas
recomeçar o pensamento; os primeiros versos
a primeira luz, a primeira praia, o primeiro vento
o primeiro Vesúvio fluorescente, o primeiro –
lembro-me
da mesma forma que quando escrevo no presente
nunca afasto as teclas do piano, as cordas do violino
e ao mesmo tempo
os bosques e as silvas, uma corrida de mãos unidas
longe de todos os limites; um chão de pedras
uma cama de outono, uma sagração da primavera
uma cavalaria rusticana, sem mágoas e sem cinzentos
e ao mesmo tempo
as asas da borboleta, a proximidade suspensa –
voltaria, nesta hora fechada de granitos, ao lugar dos silogismos
nesta particularidade de Damásio ter provado
que Descartes era um náufrago do juízo;
não há certezas, nem tão pouco somos sofistas
procuramos o possível, o plausível
e as sementes crescem como degraus ascendentes
riscos, cores e linhas
porque a vida dá tantas voltas e é sempre autêntica
como as nascentes, onde as águas nascem
e os rios –
José Ferreira 5 Novembro 2011
sábado, 5 de novembro de 2011
a meu favor tenho o verde secreto dos teus olhos
Vladimir Kush
A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer
A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.
Alexandre O'Neill
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
A minha avó
A minha avó costumava contar histórias assim. Ela era perita no fim do mundo e achava estranho ter nascido com um pé dentro desta espécie e o outro, visivelmente deslocado, na boca mórbida da suspeita e no sexo ufano da ironia. A minha avó passava o tempo a coser mentiras umas às outras, criou o crochet cruel das minudências, e ainda se dava ao luxo de povoar essas mentiras de pássaros orientais, paisagens soberbas onde a serenidade e a percepção sofriam os ventos mal representados da hesitação sombria. A minha avó contava-me contos distópicos antes de eu dormir. Sentava-se na cama e falava da falência da Terra, do advento do cripto-individualismo, da comicidade com que, tantas vezes, se reveste a distorção do real, como, por exemplo, na “demonização baudelairiana do riso”. Dizia poemas onde a guerra e o bom senso amavam-se para sempre e a era da demência era mundialmente aplaudida. E por vezes, perguntava: queres que eu te leve a este planeta? Ou preferes ficar esta noite apenas na casa escura do ensino? Falava exactamente assim. Por intermédio de uma rede organizada de metáforas e tiques da elevação do estilo, levemente apoiada na sua língua bífida e sibilina, nas encostas de um português com 35 % de sotaque romeno e 65% de sotaque desconhecido. Falava assim.
Eu tinha 39 anos naquela altura, quase todos os dias 39º de febre e queria muito dormir. Mas, naquela noite, por mais que a senhora se esforçasse, eu não conseguia. Resolvi recorrer ao serviço de avós ao domicílio, secção avós distópicas para netos cínicos, Avenida Marqués del Abandono, Ciudad Irreal.
Vou protestar, pensei. Vou exigir uma avó nova ainda esta noite. Uma que me conte histórias do princípio. Mas entretanto, adormeci.
por uma luz real
A rapariga debaixo da luz verde
da árvore
parecia usar a máscara disforme
dos pesadelos.
Era uma imagem nítida,
quase branca.
Fumava.
Olhava-me para dentro do medo
sem rosto
debruçada, lenta, circular.
Era noite.
Eu estava na rua à tua espera.
Na rua não, no carro.
Eu estava no carro de vidros abertos
de olhos abertos
debruçada.
Mas felizmente tu chegaste
com a tua luz real (tão real)
para me interromper o pesadelo.
Filipa Leal lida aqui
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Balada do amor através das idades
Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigámos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.
Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.
Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.
Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.
Carlos Drummond de Andrade
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