quinta-feira, 3 de novembro de 2011

A minha avó



A minha avó costumava contar histórias assim. Ela era perita no fim do mundo e achava estranho ter nascido com um pé dentro desta espécie e o outro, visivelmente deslocado, na boca mórbida da suspeita e no sexo ufano da ironia. A minha avó passava o tempo a coser mentiras umas às outras, criou o crochet cruel das minudências, e ainda se dava ao luxo de povoar essas mentiras de pássaros orientais, paisagens soberbas onde a serenidade e a percepção sofriam os ventos mal representados da hesitação sombria. A minha avó contava-me contos distópicos antes de eu dormir. Sentava-se na cama e falava da falência da Terra, do advento do cripto-individualismo, da comicidade com que, tantas vezes, se reveste a distorção do real, como, por exemplo, na “demonização baudelairiana do riso”. Dizia poemas onde a guerra e o bom senso amavam-se para sempre e a era da demência era mundialmente aplaudida. E por vezes, perguntava: queres que eu te leve a este planeta? Ou preferes ficar esta noite apenas na casa escura do ensino? Falava exactamente assim. Por intermédio de uma rede organizada de metáforas e tiques da elevação do estilo, levemente apoiada na sua língua bífida e sibilina, nas encostas de um português com 35 % de sotaque romeno e 65% de sotaque desconhecido. Falava assim.
Eu tinha 39 anos naquela altura, quase todos os dias 39º de febre e queria muito dormir. Mas, naquela noite, por mais que a senhora se esforçasse, eu não conseguia. Resolvi recorrer ao serviço de avós ao domicílio, secção avós distópicas para netos cínicos, Avenida Marqués del Abandono, Ciudad Irreal.
Vou protestar, pensei. Vou exigir uma avó nova ainda esta noite. Uma que me conte histórias do princípio. Mas entretanto, adormeci.

3 comentários:

André Domingues disse...

José,

Tem razão. Andava esquecido! ;)
Aqui vai um fresquinho. Um abraço grande a todos.

Andreia disse...

Uma avó com um forte lado lunar.

josé ferreira disse...

Olá André

Uma desconstrução em metáforas? ou uma construção em distopias? diferente e criador como sempre!

Abraço grande