sexta-feira, 29 de maio de 2009

Voz Só


Aflige-me o equilíbrio do corpo, o sentido da mente,

vejo-a e sonho com paisagens primaveris e rostos

e rostos encantados.

 

(Ternas saudades). Despertas

pelos graves de uma doce alucinação solitária

num palco inundado pelas cores e pelas cores

e pelo magnífico som da trompete e do saxofone.

Ela ali, ali com duas pernas de pedra e peitos angélicos, uma

face vagabunda que me descompõe o raciocínio. E o teclado

que mantém o ritmo atordoado, o bater

que é mais um e mais um e mais um. E mais tantos saltos

e despejos de emoções que nos fazem viver

a excessividade de uma vida de alvoroço.  

Clama, clama e silencia. Como se testando o sopro, o seu sopro.

O éter da sua vida efémera que é prodígio e se desfaz

em pequenas situações de êxtase que ela, apenas ela, enxerga.

Chora, sente. Ri, esfarela-se.

Dança o seu bailado ensaiado e decora e relembra os passos ritmados

que lhe acodem o poderoso vociferar.

 

A voz só que canta e canta.

E desespera no seu mundo intranquilo. Os holofotes que a difamam

e os braços erguidos que lhe suplicam, recomeça.

(Recomeça).

Como se perdida no atempado metro que ela própria criou, não

está perdida, somente maravilhada.

Aturdida.

(Bebe).

Leva à boca a sua droga amiga, tão amiga, e

a cada gole, dá mais um passo. E a cada passo, mais um erro.

Mas o público é ignorante, esquece, pede mais.

(Suplica).

 

Implora pela voz que o guia e o embala, implora pela voz que o seduz.

Roga pela voz só. 


David Campos Correia

Sente e sê

Reanima
espanta o Deus adormecido
no magnífico dia
quebra o enguiço
o sinuoso capricho

Dispara o raio de Neptuno
na noite obscura
ilumina a coruja taciturna
de cobres flamejantes

Sente e sê
a sede de ser diferente

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Dots Obssession

Há gritos inúteis.
Por isso, devo sondar
os movimentos,
as aventuras,
as intuições,
as montanhas verdes desdobradas...
Hoje, senti
nos meus ossos
cinco almas ferozes e confusas.
Mas não te despertei.
Dormias, entre
lençóis de tesouras entrançadas.
Dormias.
Não me atrevi a tocar-te.
As chamas e os olhares
destas cinco almas ferozes
e confusas teriam
jantado à tua mesa- e o drama
da obscuridade deve escapar-te.

Gérard de Cortanze "O movimento das coisas"

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Many times



Many times Juan Munõz 1999

Exposição Bilbao 2008

O tempo O tempo

Qual o tempo que demora
a cair o botão
na camélia junto ao muro?

Qual o tempo? Qual o tempo?

Qual o tempo que demora
o aroma de uma rosa
o cair da folha seca
o voo da borboleta
o pio de uma gaivota
0 respiro de um golfinho
o arrulho de uma rola?

Qual o tempo? Qual o tempo?

O tempo da natureza
não tem relógio
não faz barulho
o tempo não demora

o tempo o tempo
na natureza
qualquer que seja
não se gasta
mais se gosta
dá-nos asas de chamas
olímpicas infindas
segue o seu ritmo.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Torga

CANÇÃO DO SEMEADOR

Na terra negra da vida,
Pousio do desespero,
É que o Poeta semeia
Poemas de confiança.
O Poeta é uma criança
Que devaneia.

Mas todo o semeador
Semeia contra o presente.
Semeia como vidente
A seara do futuro,
Sem saber se o chão é duro
E lhe recebe a semente.

Miguel Torga

Paradoxo 41

De tanto querer
Esquecer a dor que trouxeste
Não lembro agora a dor
Não lembro há muito mais
O amor inteiro que me deste.

É tanto o arrependimento
De pisar no esquecimento
A desilusão que já não és
Que hoje quase volto atrás
Procurando as feridas

Rebobinando o drama
Para amar-te,
Para que possa lembrar
O amor inteiro que me deste.

Teatro da boneca

A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca.
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.
Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora também já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.

E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas de todas as malas.
A boneca arromba as portas de todos os armários.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda a parte.
A boneca enche a casa toda.

É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.

A boneca.

A boneca.

(in Litoral nº1)

Regresso...

Caros amigos/as poetas,

certamente ninguém se lembrará de mim porque eu fui aquele que vocês viram apenas na primeira aula, já muito e muito distante, da primeiríssima sessão, em Setembro. Percalços, imprevistos, enfim, toda uma núvem de coisas e mais coisas que me desviaram desse vosso caminho e das vossas invejadas aventuras poéticas!

Pois bem, agora estou de volta - e para o ano lá estarei, regressarei à poesia convosco! Como o título de um livro que ando a ler, estou 'perdido de volta', e às vezes, às vezes é preciso perdermo-nos para nos sabermos encontrar no sítio certo de novo!

Por isso, as minhas sinceras desculpas pelo desaparecimento.
Fica uma nova página recente: circodesombras.blogspot.com, para quem quiser saber 'mas quem é ele afinal...'.

De resto, nada mais a acrescentar. Vou ficando.

David Campos Correia

segunda-feira, 25 de maio de 2009

TEMPO DE EPITÁFIOS

I -
Aqui jaz alguém
num exílio infindável,
um espaço de paz incomensurável,
lugar do Tempo de todos os tempos,
onde apenas floresce
a Memória dos ditosos momentos.


II -
Aqui jaz alguém
em exílio absurdo por tempo incerto,
campo de batalhas sempre deserto,
lugar do Tempo de todos os tempos,
onde apenas cresce
a Memória dos vazios opulentos.


III -
Aqui jaz alguém
em pacato exílio por benquista vontade,
mar imenso sem guerreiros, liberdade,
lugar do Tempo de todos os tempos,
onde apenas se enaltece
a Memória dos actos belos, não nevoentos.


(António Luíz ; VNGaia, 21-05-2009 )

sábado, 23 de maio de 2009

Cidade cebola

Cidade em cebola

que pontos sem cruz
te foram bordados

que finas camadas
enrolam a aldeia
que buscas e segues

nas lágrimas falsas
daquele teu fado

segue, segue-a
mas pela estrada

Improvável arritemia

Ponta
atravessa-me,
leva-me àquela fenda
quero amassar o magma,

dobra-me,
polvilha-me
em milhares de intenções daninhas

embrulha-me em papel de rascunho
ou castra-me
em túneis escuros de manhã,

ao léu, pode ser
mas não ao de leve,

a deslizar é que não!

improvável antologia poética

AMOR COMO EM CASA

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina

Take this Waltz





En Viena hay diez muchachas,
un hombro donde solloza la muerte
y un bosque de palomas disecadas.
Hay un fragmento de la mañana
en el museo de la escarcha.
Hay un salón con mil ventanas.
¡Ay, ay, ay, ay!
Toma este vals con la boca cerrada.
Este vals, este vals, este vals, este vals,
de sí, de muerte y de coñac
que moja su cola en el mar.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

A Árvore

Vivo

Está vivo e dele se espera algo mais
ímpar sem alinhos de prumo
ímpeto de touro embravecido
nas escritas fortes em caligrafia
caudalosa de gritos e arrepios

vivo até ao último dia
sem medo da cicatriz diagonal
do esquerdo lugar da frente
ao sinal mais longo na virilha

vivo e absoluto em qualquer cruz
como o surdo que compunha sinfonias
como um cego entre as bombas de Hiroshima
como os cascos do cavalo nos infernos de Guernica

vivo e sanguíneo
rasgando o ventre dos bosques
as raízes invasivas de rotinas

vivo e resistente
nas tempestades brutas
nas marés vivas das razias

vivo e revolto
como a raiva das águas
que destrói as rochas teimosas
altivas duras
na força de espumas brancas
às ínfimas partículas
areias miméticas de vazios

vivo e dele se espera algo mais
os espirros a gripe
o catarro
a doença benigna
a pandemia das ideias
nos mastros contemplativos.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A Cachoeira de Paulo Affonso

O BAILE NA FLOR


Que bellas as margens do rio possante,
Que ao largo espumante campêa sem par!...
Ali das bromelias nas flores douradas
Ha sylphos e fadas, que fazem seu lar...

E em lindos cardumes
Subtis vagalumes
Accendem os lumes
P'ra o baile na flor.

E então nas arcadas
Das pet'las douradas
Os grilos em festa
Começam na orchestra
Febris a tocar...

E as breves
Phalenas
Vão leves,
Serenas,
Em bando
Gyrando,
Walsando
Voando
No ar!...

Poema original brasileiro de Castro Alves publicado em 1902 no rio de Janeiro.
Como curiosidade o editor era de Paris H.Garnier - Rue de Saints-Péres, 6
e tinha delegação no Rio de Janeiro na Rua do Ouvidor, 71-73(escrevi as palavras como vêem publicadas na edição que referi)

A QUEM SE INSCREVEU NA 3ª EDIÇÃO DO CURSO DE ESCRITA CRIATIVA

Bom dia, meus colegas e minhas colegas da arte de escrita!

Queria só dizer que, com grande pena minha, se vai adiar esta edição para o inicio do ano. Só há 5 pessoas inscritas e isso é muito pouco para a dinâmica a que estamos habituados nas nossas sessões.


Um grande abraço para todas e para todos,

ana luísa

Lembras-te como era

O tracejado branco na subida
escasso movimento na hora do almoço
pouco azul muita nuvem esparsas aves
curiosamente um corvo negro quedo
no campo próxímo de seara
centeio verde a cento e vinte
à hora A25 tarde de Domingo.

Nada de sinos. As estações fugidias
de ondas hertzianas frequência modulada
cassetes impróprias para consumo
mp3 impopular de AC/DC metálicos
permanece o silêncio e a memória.
A paisagem segue indiferente.

Distracção nas curvas de linha contínua
de novo a faixa, rectas de moldura
nas bermas de extensos tufos amarelos
arbustos lilás de lavanda e rosmaninho.

No caminho da autoestrada a Natureza não fala
sussurra íntima devagarinho por trás da nuca
desfaz as ceras do ouvido contorna o queixo
murmura e solta aromas de outras vidas.

Nos antigos dias de Verão
lembro voos de estorninho
o guloso melro das bêberas
os figos de mel maduro
os pardais e as caturras
de penas negras e alguns
brancos manchas de lixívia.
Recordo o movimento lento
das semanas tardes de sesta
e fugas pelas janelas.

Era pequeno entre o milho macio
de barbas finas e valente
nos cortes de melões e melancias
abóboras maciças.

Sigo a subida da estrada rolam as árvores
no rodopio de encostas a nitidez
de um pressentimento
retorno a uma Natureza que de hoje
é a mesma de outros tempos:
"Lembras-te? Lembras-te como era?
Vê como crescemos!"

Naqueles tempos circulava leite fresco
de mamilos em latas de asas e alumínio
ao fim do dia
passavam rebanhos de cajado e campainhas
ao fim do dia
e ceava-se de mãos postas e Avé-Marias
no mês de Maio
ao fim do dia.

Quando todos dormiam o eu noctívago
fugia sem dizer nada
pela noitinha
ao fim do dia.

Os amigos
contavam em cada um de cada um
a sua história algumas da apanha de amêndoa
da vindima outras de colégios internos
de cidades mais libertas menos sofridas
em grupos de dez doze menos meninas
havia sempre namorados
olhares de estrelas
o brilho escasso dos pirilampos
e ouço ainda a permanente melodia
o cantar único dos grilos.

Cento e vinte à hora tarde de Domingo
quando chego chego perto
no tracejado branco das descidas
sinto-me criança menino
encosto o carro na sombra
sento-me no tronco de oliveira
e observo as primeiras pintas
nas cerejas
e as "Maias" fulgurantes
companheiras de cores explosivas
na côr de lírios.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Palavras maestrinas

Amo-te e nem sequer suspeitas
se nunca o disse
pois no último breve passeio
desceu a ave nocturna
na estranha chuva ácida
importuna
que estanque fez
o som tímido das cordas

doces palavras esbeltas
prisioneiras no bojo de um frasco
frágil no rio náufrago
descaindo transparente
no lugar de um mar desconhecido.

Amo-te e nada disse
no falar dos peixes
no discurso mudo
míope e trôpego de passos lentos
pálido hesitante nas sombras
círculos de hipnose
nas sete saias da noite errada.

Dobrámos a placa de lata vermelha
o stop da tabacaria; livros e revistas.
No eclipse momentâneo o cordão impotente
desapertou
roeu a calçada
esfiapou de linhas fracas.

Nada disse.


Amo-te muito e tu não sabes
mais e mais em cada praça
nos ângulos plácidos das esquinas
nas outras veias inscritas
de linhas claras pequenos fios
que de batuta me conduzem

ao dia de cenários
onde escavo a memória
e encontro
sempre alguma história
ainda muitos sentidos

à noite na insónia
onde soçobro triste;
aperta-me a ausência
soltam-se as lágrimas
desmoronam as muralhas
de tudo o que podia ser
e não existe


adormeço

na tela de um outro mundo
lugar idílico
cartas ridículas
palavras maestrinas
largas soltas e belas
de um amor
que então digo.

sábado, 16 de maio de 2009

Então queres ser escritor?

Mandaram-me este texto que resolvi partilhar com vocês, porque concordo plenamente com ele. Eu já forcei algumas (muitas) vezes a escrita. Mas a escrita não se força sob pena de ser apenas esforçada.

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração da tua cabeça da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.

se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.

não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.

quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.

não há outra alternativa.

e nunca houve.

Charles Bukowski (1920-1994)
versão de manuel a. domingos

Cristal

És o meu mundo
onde se afastam águas
e se afogam perigos

Onde a música das estrelas
cintila a noite

Onde as asas do sonho
e as cores da fantasia
eliminam sombras.

Neste teu mundo
desvaneço
esfumo
mãos de areia
perdendo o mar

E nele sempre me encontro
no céu dos deuses
das nuvens mansas

Entre o perfume das rosas
a carícia das brisas
dos jardins precisos

Qual pedra de cristal
refletindo
brilhos no teu olhar

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Iluminações - uma cerveja no inferno

Esta cerveja! essa rua!
A miséria que isto sua!

Mas trago o curso perfeito
Da ventura, dentro do peito.

Saudemo-lo cada vez
Que cantar o galo gaulês.

Ah, é tarefa cumprida:
Está dono da minha vida.

Levou-me a alma, corpo, escorços
E dispensa-me de esforços.

Esta cerveja! essa rua!

A hora da fuga, ó sorte,
Será a hora da morte

Esta cerveja! Essa rua!


Tudo isto foi. Hoje, sei saudar a beleza.



Jean-Arthur Rimbaud
'Iluminações - uma cerveja no inferno'
Tradução de Mário Cesariny

3ªFase com Ana Luísa Amaral

Caros colegas de navegações poéticas

Ainda não foi possível iniciar a 3ªfase devido a não haver um nº mínimo de inscrições.
Há ainda a possibilidade de início na próxima semana se até segunda feira se atingir os doze participantes.
Se puderem divulguem.
Se puderem participem e publiquem no blogue escritos, ideias, factos de forma a manter acesa a diversidade criativa dos poetas aprendizes!

Saudações poéticas a todos

Sentimento

Quero o calor do Sol
e um leque sem brocados
leve como a pena
que desliza
na seda dos poemas

Quero o brilho da caruma
num abraço de pinheiros
a melodia dos pardais

Sem o vidro fosco
que afasta
a clara luz do sentimento:

que é puro
que é belo
dá prazer.

What a wonderful world

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Europa aleg(O)ria

Gnomos no sonho de obeliscos
nas antenas Eiffel de Paris
olhar no Sena
corcunda na ponte de Neptuno.

Notre Dame dos segredos
flutua nas brisas do vento norte
levita sopra invisível
na praça áurea de Bruxelas;
"necessidades" de um menino
na praia D calma e deserta.

Dunquerque atrapalha Calais
onde surge
o túnel união de cocos
águas de Tamisa sirenes Big Ben
nos aromas etéreos de Versailles
onde se passeiam ninfas
nas quatorze sinfonias
de um "poéte Antoinette".

Desce a chama da estátua
na rapsódia azul de Gershwin
sobem fumos no castelo da àguia
liberdade sem suástica.

Cria-se estima
na marquesa de "pera"
na capital dezanove
século judeu de Viena.
Betellheim explica o lobo
à solta
nos bosques de Bolonha
o sorriso ingénuo de criança
e
sem siso
há um índio aflito
alter ego de Voltaire
nas correntes da Bastilha.

Quando se ergue a noite
surge o sonho e a poesia
a (in)sensata terapia
sem medidas
réguas tortas cambalhotas
parece loucura
mas cura.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Starry starry night

Invenção

Perto estava e não te via
nervoso de areias trémulas.
Surpresa na mão suave
estendida
ao cabelo repuxado
na espera.

Estranhei os círculos não desenhados
à volta do pilar
da esquina
na partida:

"-Que procuras? Porque olhas?
Alguém a espiar?"

"-Não! Invenção!"

Caminho breve leves passos
nos dedos na mão
sem saber voando
dois palmos
acima do chão.

terça-feira, 12 de maio de 2009

La lecture

Os meus nos teus

Quis costurar nas minhas pálpebras
o olhar teu
adormecer de frente
não ser órfão de uma ternura
ao acordar
pois sempre que quisesse
sossegar
nesse olhar que é o teu
olhava as minhas pálpebras
dentro dos meus
de olhar inteiro
nos teus da cor do céu.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Pálido Ponto Azul



Uma poesia feita de ciência a 6,4 biliôes de quilómetros da TERRA na voz de Carl Sagan!

domingo, 10 de maio de 2009

Cinco gotas e um "lapsus"

Soltaram o calor
nos primeiros dias de Maio
coloquei as folhas e os livros
sobre a mesa de mar na esplanada.

Águas escorriam céleres
perto
soltando ruídos vagos
som submerso de algumas palavras.

Trouxe memórias de uma ilha
onde
os sumos frescos dos frutos
saciavam a sede diurna
rodeados de uma brisa amena
e a velatura
da imensa mancha azul
extensa e lisa.

Eram as noites mais quentes
de loucura
onde
intensas luzes dança
cobriam peles nuas
de brilhos raros
vestindo-se por vezes
de um sensual abandono
no intervalo
do malte dos whiskies
e o álcool das cevadas.

Escuto os ecos longínquos
enleado
nesse quadro repentino
que surge nítido
no espelho oceânico
como seta subtil
no duplicar de falas
que passa no copo nas palhas
ou que parte
escondido noutras salas.

E há o gesto distraído
a queda abrupta de um postigo:
cinco gotas caídas sem abrigo
(como se fossem sem cuidado
e não o "lapsus" de um preciso reflexo
o suster inclinado de um pouco de alma).

Soltaram o calor
nos primeiros dias de Maio
e na praia
há uma rocha
um rosto uma ilha
que larga
limos verdes
um ouriço roxo e alcalino
cabelos de alga
e por fim
devolve ao mar espuma
a imagem já difusa desse quadro
um Titanic de naufrágios
uma ânfora adormecida
nos corais de plâncton
no aquário dos abismos
de um profundo Oceano.

sábado, 9 de maio de 2009

Tombo rolante

Tombo redondo

à tua partida

rolante sem ruído

relutante sem luta


À roda te exibes

acrobata de bola

como se esquinas

(que te limparam)

de alavancas te calhassem


Tombo de roda

roliço maciço

de culto alisado

de pele macia


Pára, estanca

tolo redondo


se fui eu que te alisei

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Frases em branco de humor

Quieta água suspensa no olhar
Gota de riso e choro
Quieto sangue suspenso num batimento
A dor cardíaca de existir
Faltam-me verbos para descrever a vida
Faltam-me tempos verbais
Advérbios de modo, nomes e adjectivos
A gramática finita sem som
O papel branco sem som
O meu dizer neste instante que já foi
Quieta água suspensa
No olhar
Gota
De riso e choro
Os tempos da minha dor
Os advérbios cardíacos do meu tempo
A vida sem gramática
A matemática da poesia
A vida sem som
O sonho quieto
Em mim
Aguarda despertar
No tempo presente
Numa gramática nova
A ternura do amor.

Abraço

A ternura dos sorrisos estrelados das crianças
O embalo lento do berço da vida
Os balanços fortes em mares revoltos
A procura dentro e fora de nós
A chegada ao abraço
Corpo duplo de um momento.

Mar

Sem terra
As fronteiras são só terra
A terra continua até ao mar
Os limites estão em nós
Nas nossas mentes
Sem guerra
As fronteiras são só guerra
A guerra continua até ao mar
As guerras estão em nós
Nas nossas mentes
A dor
Fronteira da nossa emoção presa
A dor continua até ao mar
A pele
Fronteira do corpo interno
A pele continua até à dor
A paz, o infinito e o amor estão em nós
Nas nossas mentes
Sem fronteiras
Sem limites
Continuam até ao mar
O amor somos nós.

Sopro

Chega antes de tudo existir.
O sopro.
Ar em rodopio em nós.
O nosso respirar.
As folhas que dançam.
A gente que dança, que voa, que envolve o ar.
Respiro fundo.
Suspiro.
Sopro.
Assobio.
Inspiro.
Expiro.
Falo.
Canto.
Declamo.
Tudo é vento.

Ritmo

Ritmo.
A sincronia exacta da tua voz em mim.
Os gestos em pausas de silêncio.
O teu corpo sem som.
A tua forma.
Magra, esculpida de ritmo.
A sincronia exacta do teu corpo em mim.
Os abraços em pausas de tempo.
O teu corpo sem cor.
Tempo parado em cor.
Escrevo a tua cor.
Ritmo.
O teu ritmo.
O meu ritmo.
A nossa dança.
A sincronia exacta do teu ritmo em mim.
Os beijos em pausas de espaço.
O teu corpo sem matéria.
Tempo parado e etéreo.
Escrevo a tua voz.
Ritmo.

Som

Se eu fosse esta música que ouço
Sem corpo nem dor
Só som
Vibração organizada em mim
Sopro criativo, olhar interno
Alma em notas de percepção
Se eu fosse esta música
Era pura abstracção
A física invisível dos sentidos
A massa sólida da dor
Sem corpo nem cor
Alma em notas de percepção
A tua música no meu olhar
Silêncio do tempo em abraços
Silêncio em música de abraço
Tempo da dor em contratempo
O teu ritmo descompassado
Era pura abstracção no meu corpo
A música da tua ternura em mim
Era pura abstracção
A física invisível do teu rosto
O beijo da existência
Magma encarnado
Música encarnada
Era pura abstracção
A música tem o nome da liberdade
O elixir respirável da vibração
Se eu fosse esta música que ouço
Sem corpo nem dor
Só som
Olho a partitura em branco
A música por escrever, por inventar
Canto para ti e adormeces

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Matrioska e Saber

r
Matrioska - Inside & Out 1973


SABER


saber
é saber saber-te
sabermo-nos unir

unirmo-nos
é conhecermo-nos
sabermos ser

por fim sermos
é sabermos
sabermo-nos

conhecermos
a surda áspide

Ana Hatherly, in "Um Calculador de Improbabilidades"

Sonhos

Famintos dos lugares
perdidos no Oceano;
histórias invulgares
secretas viagens
sucessos abstractos.

Pensamentos tintos
de cores em arcos
olhos enleados
nos labirintos
da mente.

Mudas irrealidades
quiméricas ilusórias
segundos alternados
em estados de alma.

Favos de surpresas
agridoces -

Sonhos!

terça-feira, 5 de maio de 2009

Rambla mental de Gaudi

Sangria
E um dia
sol de quente
Na rambla
de tanta
gente

Tapas
olhos para
olhar de frente
a morte que
se talha
rente

Tantos
ossos coluna
e pedra na sombra
que se sagra
à frente

Nascem
os bichos
só pedra e sangue
no mastro
que se ergue
urgente

Cresce
família na
cor viva e pedra
que é osso
de um som
emergente

Soltos
Os pássaros de
toda a terra
ressoam
na rambla
da mente
ressoam
na rambla
da mente
ressoam
na rambla
da mente

de profundis amamus


(Pintura de Cesariny)


Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso


Mário Cesariny - Autografia e outros poemas de pena capital - Assírio & Alvim

domingo, 3 de maio de 2009

Dia da Mãe - Azul "Celeste"

Tem o nome nascido no céu
o signo sem pecado
deu-me luz quando venci o mar
e agarrado ao fio apareci
choroso do outro lado.

Um dia de Outono
que me apercebo indefinido
sem o pontuar de humores:
raios de sol? gotas em linhas?

A "brasileirinha" diziam quando pequena
nas terras do Côa íngremes e sós
onde volfrâmios eram ouro de montes
e os homens nos vales davam saltos
sem fronteiras na França distante
salvação e aventura de emigrantes.

Ainda menina sem remos nem fama
tocou as margens do Douro
no comboio das fornalhas
em bancos corridos de paus e napas;
impossível esquecer as galinhas carecas
entre redes malas de cartão e cestas
os rodilhos os aventais
na Régua os cântaros de água fresca.

Chegou no abraço de um Porto
abrigo onde o barco acostou
e não mais partiu:
foi aí que eu nasci.

Devo-lhe os versos o som das rimas
as palavras ensaboadas
nas águas do rio.

No início lia contava as histórias da Biblia.
Nos dias de Maio as novenas
os cânticos das músicas de "Maria"
nas terras de Fátima da Cova (Dei)ria
(assim se cantava e eu de mãos juntas
e ar distraído assim ouvia).

Pequeno na altura do cotovelo
ensinou-me as artes do bolo
sem mecanismo de braço firme
nas rodas de um "salazar":
castelos de claras
gemas desmaiadas de doçura
manteigas derretidas
e o nome que guardo na memória
raiados de Carrara "mármore"
"mármore" assim o bolo se chamava.

Talvez se tenha formado no pó das farinhas
alguma névoa e fantasia
um princípio de alma
que acredita
na força das palavras
na poesia.

Enfim que mais dizer
se não que em ela fui um todo
recebendo recebendo recebendo
o consolo o carinho o próprio sono
nos cuidados que só uma mãe sente
como sendo
únicos divinos
voando perigos ouvindo os ventos
amainando as feras dos destinos.

Mãe que tens nome no céu
e és menina do Rio
hoje sempre todos outros
o dia é teu
e vejo-te azul na cor
de uma flor delicada
miosótis
o pequeno ponto amarelo
sabes mãe
esse lugar é o meu.

sábado, 2 de maio de 2009

A curva dominante



(1936) A curva dominante

“ Eu andava em busca de determinada hora, que era e é a mais bela do dia em Moscovo...Por um instante, o sol faz com que toda a cidade fique misturada numa única mancha.” Kandinsky

Fio d"água

Fio d"água
que declina o caminho
comum
de afluentes riachos.
Serpente de reflexos
em descida plena
de nós e sulcos.
Turbulência emergente
ruído borbulejo
que ecoa, escoa
e cai
na planície do desejo.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Poetas andaluces

!º de Maio - azinheira

Que a voz não te esmoreça

Maio maduro Maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul

Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era o dia da festa
Maio de amores
Era o dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar

Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar

Numa rua comprida
El-rei pastor
Vende o soro da vida
Que mata a dor
Venham ver, Maio nasceu
Que a voz não te esmoreça
A turba rompeu


José Afonso