terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A venda e o cigano estão no banco

Eis o resultado do trabalho oficinal de Escrita Criativa II sobre três versos (um octassílabo e dois heróicos quebrados) de um poema de A. M. Pires Cabral, in Que comboio é Este. Edição do Teatro de Vila Real, Dezembro de 2005.

A venda e o cigano estão no banco.
O comboio era uma tenda triste
e um grito de telemóvel insiste.
Ninguém atende, nem o saltimbanco
que resite ao som atrapalhado.

E lá fora espantam-se as árvores
com os palhaços que vieram da cidade.

O circo está assim montado
e o cigano vende um Ipod usado
e a clientela aplaude o saltimbanco
que compra o roubo
com um ar experimentado -
saltimbanco de olhos vendados,
sem vara e sem cautelas,
o comboio e nós dentro
.

Joana Espain e José Almeida da Silva

Eu, Inquisidor

Que faço quando tudo arde?
Sá de Miranda, 1481-1558
Eu,
Inquisidor,
única esperança
de remissão,
ardo nas chamas da salvação divina.


Eu,
Inquisidor,
convoco o homem
o herege pertinaz,

posto a tormento no suplício
vê nascer a verdadeira fé
em cima do potro ou nas cordas do polé

essa criança que ofende
o Pai
reacende as brasas do amor celeste


Eu,
Inquisidor,
nada vejo:
nem sonhos,
nem palavras,
nem a carne rosácea que perante mim se disforma

vejo a alma
o pecado e o vício
é este o meu santo ofício.


Eu,
Inquisidor,
queimo as palavras, os sonhos,
a carne cinzenta que perante mim se reforma

e quando tudo arde,
sou eu sublime
sou eu santidade.


Raquel Patriarca
nove.dezembro.doismileoito

Desperta-me de noite

E este é o segundo:

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas

A trégua
a entrega
o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

Desperta-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo

E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vai descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

As nossas madrugadas

Há dois poemas da Maria Teresa Horta que parecem também eles um canto e contraponto. Quase não sei qual deles gosto mais. Deixo os dois para que escolham. Este é o primeiro:

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciume
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lenços que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

Minha Senhora de Mim






Comigo me desavim
minha senhora
de mim

sem ser dor ou ser cansaço
nem o corpo que disfarço

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

nunca dizendo comigo
o amigo nos meus braços

Comigo me desavim
minha senhora
de mim

recusando o que é desfeito
no interior do meu peito

Maria Teresa Horta

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Vinicius e Pablo Neruda

Em tempos ouvia com frequência uma cassete (fita magnética inscrita da pré-história da tecnologia) de uma actuação ao vivo de Vinicius, Toquinho e o Quarteto em Cy. Neste registo havia lugar à poesia (a poesia também é um lugar... um refúgio que pelo menos a mim me preenche, dá espaço ao sonho e ao tempero das emoções) e havia uma sentida homenagem a Pablo Neruda. Dizia o grande poeta brasileiro :" malvado ano de 1973 que levou de uma só vez três Pablos, não três Pablitos... três Pablões" referia-se a Pablo Picasso, Pablo Casals e Pablo Neruda cada um em sua superior arte sem substitutos.

Nesta recordação resolvi publicar dois poemas que a voz inconfundível de Vinicius recitou na companhia (tantas vezes minha) dos acordes perfeitos de Toquinho e um coro celestial das vozes femininas do Quarteto em Cy, terminando na apoteose final de palmas (...e ruídos das gravações imperfeitas, alguns encravamentos que engoliam as fitas e obrigavam ao enrolamento manual com a ajuda de um lápis levando a fita à frente e atrás na esperança de conservar a preciosa cassete, o que foi conseguido).

Não vos chateio mais com conversa de "chacha", aqui vão os dois sonetos:


Soneto de homenagem a Pablo Neruda

Quantos caminhos não fizemos juntos
Neruda, meu irmão, meu companheiro...
Mas este encontro súbito, entre muitos
Não foi ele o mais belo e verdadeiro?

Canto maior, canto menor - dois cantos
Fazem-se agora ouvir sob o Cruzeiro
E em seu recesso as cóleras e os prantos
Do homem chileno e do homem brasileiro

E o seu amor - o amor que hoje encontramos...
Por isso, ao se tocarem nossos ramos
celebro-te ainda além, Cantor Geral

Porque como eu, bicho pesado, voas
mas mais e melhor do céu entoas
teu furioso material!

( 1960 )

De seguida Vinicius leu um outro soneto escrito em 1938 a bordo de um barco que o conduzira a Inglaterra. Chama-se "Soneto da separação" e foi aqui adaptado à partida do grande poeta chileno. ( algo que nunca acontecerá porque nos deixou a sua poesia )


Soneto da Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais do que de repente
Fez-se triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.



Espero que gostem!
Saudações poéticas a todos!

domingo, 7 de dezembro de 2008

Ninguém me dissera

Deixo-vos um poema de José Rui Teixeira, poeta e sobretudo amigo (um amigo que eu gostava de ter partilhado convosco na primeira sessão de Escrita Criativa). Um poema de memórias, afectos, perdas.


Só depois desci as escadas, já o verão escorria

pelas paredes e os dias cabiam debaixo do alpendre.


Ninguém me dissera que os incêndios são homens

a arder no interior das suas memórias com as mãos

nas têmporas e demónios à volta da mesa. Ninguém

me falara da roseira que houve no jardim, já a morte

induzia a intempérie contra o meu corpo parado.

Ninguém me explicara que se sobrevive sem útero

na margem dos dias.


José Rui Teixeira

DO INDOMÁVEL MONSTRO

Está estupendo o convite! Vai ser um prazer estarmos de novo juntos.

Fiquei muito comovida -- e (porque não dizer?) muito orgulhosa por ter tido algum papel na criação do "monstro", que, graças a vós, se tornou "indomável": através do que escrevem, do que divulgam (fantástico o ter encontrado pouco depois todos os poemas que referi na última sessão!), dos comentários, da partilha.

Parabéns. Sim, este blogue "dá vontade de comer". Uma vontade que fica sempre aquém da possibilidade, porque ele se tornou imparável. Que continue indomesticado e sempre nas margens do possível -- o mais belo lugar para viver.

Um grande abraço amigo,

ana luísa

sábado, 6 de dezembro de 2008

Um poema de que gosto

Voltando à questão das emoções e da forma de ganharem vida e transpirarem nos sentidos das palavras, deixo aqui um outro poema de José Luís Peixoto que me parece reflectir bem este facto. È um poema que reflete a perda do pai, a perda da mãe e no final, apesar de se tratar de um poema de saudade, a presença boa das memórias, do não-esquecimento.

Na hora de pôr a mesa, èramos cinco


na hora de pôr a mesa éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

No rosto do céu

ESte foi o resultado do último trabaalho de grupo
de dois esforçados aprendizes na arte descascar palavras.
Foi necessário pôr de molho em àguas várias, cozê-las,
descompô-las e no fim saborear. Este foi o resultado:

No rosto do céu


O banco levado pela corrente
feito de tábuas tortas
flutuando sobre o mar
um silêncio de almas mortas.

Já não escuto as vozes
só os braços das ondas
as espumas de manto
a mão a perna o banco.

Na sina da sorte
no rosto do céu
em ti, meu banco, morte,
eu deposito a vida.


Apresentamos também uma segunda versão


O banco levado pela corrente
feito de tábuas tortas
flutuando sobre o mar
ruído grito de gaivotas.

Já não escuto as vozes
só os braços das ondas
as espumas de manto
a mão a perna o banco.

Na sina da sorte
no rosto de céu
em ti, meu banco, morte,
eu deposito vida.

Elza e José

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Segredo

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

Maria Teresa Horta (Lisboa, 1937-)

[Creio nos anjos que andam pelo mundo,]

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia (Fajã de Baixo, S.M., Açores, 1923-1993)

Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

António Ramos Rosa (Faro, 1924-)

Não posso adiar o coração

Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa (Faro, 1924-)

Serenata Sintética

Rua
Torta

Lua
Morta

Tua
Porta

Cassiano Ricardo (S. J. dos Campos, SP, Brasil, 1895-1974)