quarta-feira, 2 de maio de 2012

a carta que te escrevo ( XIV )



escrevo-te esta carta para que a guardes
como um instante de tempo, um fragmento, uma memória
um I remember you well que se inscreva sem matéria
por dentro do cérebro, como um quarto que se abre
no lugar do belo, num firmamento, numa âncora de céu.
vou-te contar, começa assim:

a memória é sempre uma janela sobre a vida
é como um grande livro, uma bíblia de muitas folhas
desde papiros a folhas da china, de casquinha, finas muito finas –

nem sempre sabemos os números, aquela página, aquela letra
no entanto surge um dia por um motivo. um motivo bom pode ser um sorriso
uma forma de encostar os olhos, de ser original, ou apenas um encontro por acaso
de surpresa como quem diz: ao bater assim depressa este batuque de selva
é porque significas, muito, sabia, desconfiava, mas agora que sinto as plantas dos pés
a escorregar, a querer parar muito, a transpirar e  a tropeçar, é porque …
a memória é um livro, muitas páginas escritas de sílabas e verbos
de pele, muita pele desde aquele primeiro grito quando pela primeira vez
pela primeira vez se respira, quando pela primeira vez …

sabes, I remember quando numa catequese -  um segredo há muito guardado
- uma mão pequenina  num intervalo, tornou-se concha no ouvido
num intervalo, uma mão pequenina, e eu era da mesma idade
com uns calções de alfaiate, uma camisa amarrotada, um pé rodando sobre o outro
uma meia branca, um sapato esmurrado, todo vermelho
com as mãos  cruzadas ao fundo das costas, todas baralhadas
e depois muito de repente, um salto e uma cara alegre
e a menina da mão pequenina riu muito
e disse devagarinho: queres ser meu namorado
num intervalo
entre fixar dez mandamentos e rezar de cor todas as orações que levassem os pecados –
num intervalo, há muito tempo –

sabes, hoje quase não saí de casa, li de corrida algumas das linhas
e juntei algumas letras, que não as minhas, para perceber as notícias
as más notícias dos jornais.
e queria ter saído muito
sair ao acaso pela rua como se fosse África, uma aventura
para sentir a química, um ar que sufoca, por acaso
e encontrar-te com duas magnólias e dezenas de prímulas sobre o braço
depois um saco de quem vem das compras, do supermercado
assim subitamente e por acaso –

nessa altura uma ajuda é preciosa e torna-se mais suave caminhar
falar das coisas, de muitas coisas, como por exemplo, das focas
do Pólo Norte, da sustentabilidade do planeta ou de Freud
das últimas descobertas sobre o sonho como uma pedra polida
que espelha no rodar dos olhos não tanto do inconsciente  que pensávamos
mas mais das vezes, uma realidade semi-acordada –

ou então falar de experiências e devagar sentindo da mesma forma
como há muitos anos a mão pequenina,  dizer um segredo
e ilustrar uma pérola com a luz do dia, depois amadurar os dedos
torná-los mais corajosos para apertarem as sombras e os medos
para mais tarde recordar, remember and remember  you well, antes de acordar –

desculpa, e é tarde, e não aconteceu –

antes de escrever a décima quarta, esta carta
estava de rosto fechado, depois clareei
depois comecei a esticar os remos como se estivesse no leito de um lago
um Windermere perto de Lancaster
depois o movimento  e era um rio – Tamisa, Reno e Sena;
aquela cidade que se acende de muitas lâmpadas e transporta milagres –

depois um rápido e um Kayak, um coração a querer  tornar-te célebre
a querer ser maior, a querer adorar o Sol, a suportar o calor.
 e por fim o mar, o grande mar, uma baía, um cabo, uma imensidão de ondas
de espumas, de barcos, de aves em visitas de águas –

o mar –

espero que estejas confortável e morna,  com as pálpebras junto da janela
e a olhar a lua
como se ela fosse a nossa grande amiga, alguém que faz força
alguém que faz força para que as estrelas se libertem –

espero que toques com os dedos o bordado inglês das cortinas
como uma despedida, sensível
e que sintas o sono, um caminhar pequeno, um som no ouvido
para que te deites, para que te encostes na fronha da almofada
e que sintas um aroma, um aroma de algodão doce na cidade
como se fosse um ombro depois dos pés cansados
 junto de uma ponte de uma outra cidade
uma ponte de Neptuno, não de tridente mas com uma lira
uma voz grossa, a encontrar o acorde secreto das cordas
os dedos de uma canção
que adormeça como um berço, como uns olhos de mãe
na proximidade de um cheiro e da compreensão perfeita –

e espero que adormeças
como sempre
com a orquestra de asas e de anjos
como se não fosse sonho
e dormíssemos ambos –

as palavras tornam-se mais longínquas como um eco que se escoa
como encostas que se juntam
fazendo cessar  todos os ruídos –

ouço vozes, sinto-te cansada, os meus olhos também caiem –
desejo-te a  noite boa e guardo-te os lábios  –



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