domingo, 28 de fevereiro de 2010

Porque

«Porque», de Sophia de Mello from blocsdelletres on Vimeo.




Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

prosa ou poesia?


René Magritte "A grande família" 1963


não encontro a diferença
a fronteira, se o universo são palavras.

prosa ou poesia? similares
talvez espelhos milhares de imagens
de orgulhosa insubmissão tão rectilínea
que uma a outra e outra a uma
se inveja e sublima
e não houvesse
entre terra e nuvem
toda a chuva que aproxima

e mais, tanto mais me anima
este gémeo desafio das palavras
quanto
é tão fértil a humana tranquilidade
de saber que existe um paraíso

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Um dizer ainda puro


Klimt 1911


imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonámos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro.


Vasco Gato, "Um Mover de Mão" Assírio & Alvim

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Correntes d'escrita





Amanhã 4ª feira pelas 17H00 tem início o encontro da Póvoa de Varzim "Correntes d'escrita". Ana Luísa Amaral vai animar a 1ªmesa juntamente com outros notáveis das nossas letras. É concerteza um bom programa para quem tiver possibilidade de estar presente. Pelas 22 horas segue-se o lançamento de livros.


1ª MESA: "Escrevo para desiludir com mérito" A.B.L
Ana Luísa Amaral
Eduardo Pitta
Fernando J.B. Martinho
Gilda Nunes Barata
Zuenir Ventura
Catherine Dumas - moderadora
AUDITÓRIO MUNICIPAL DA PÓVOA DE VARZIM


22h00
Lançamento de Livros
Ana Luísa Amaral, Inversos - Poesia 1990-2010, Dom Quixote
Inês Botelho, O Passado que Seremos, Porto Editora
J.J. Armas Marcelo, A Ordem do Tigre, Teorema
Lourenço Pereira Coutinho, Cinco de Outubro, Sextante
Manuel da Silva Ramos, Três Vidas ao Espelho, Dom Quixote
Tânia Ganho, A Lucidez do Amor, Porto Editora

23h00
Sessão de Poesia

AXIS VERMAR

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

pés de sandália


Juan Romero " A casa do pastor" 1990

o rosto no brilho de marfim vê a água,
rápida, na fonte de pedra no meio do bosque.

o rosto. um ponto branco juntando verde e água;
uma terra vestida de um tom musgo de veludo
do qual se liberta uma névoa que sobrenada,
esvoaçando, a transparência do espaço.

o rosto, depois o corpo nos pés de sandália
roda as árvores de ramos verdes,
onde pássaros cinzentos de bicos acesos
dão as notícias, as notícias do bosque:
hoje cresceram mais folhas - trezentas.

o rosto que passa entre este e aquele lado;
a fonte, a árvore, o musgo, em pequena dança,
lava a alma do poeta num banho de certezas;
solta e salta nos olhos de água.

o rosto do bosque.
um ponto branco no liame dos braços ruboriza.

os pássaros dão logo a notícia-

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Inquérito


Hiro Yamagata "Bubbles" 1983


Pergunta às árvores da rua
que notícia têm desse dia
filtrado em betume da noite;
se por acaso pressentiram
nas aragens conversadeiras,
ágil correio do universo,
um calar mais informativo
que toda grave confissão.

Pergunta aos pássaros, cativos
do sol e do espaço, que viram
ou bicaram de mais estranho,
seja na pele das estradas
seja entre volumes suspensos
nas prateleiras do ar, ou mesmo
sobre a palma da mão de velhos
profissionais de solidão.

Pergunta às coisas, impregnadas
de sono que precede a vida
e a consuma, sem que a vigília
intermédia as liberte e faça
conhecedoras de si mesmas,
que prisma, que diamante fluido
concentra mil fogos humanos
onde era ruga e cinza e não.

Pergunta aos hortos que segredo
de clepsidra, areia e carocha
se foi desenrolando, lento,
no calado rumo do infante
a divagar por entre símbolos
de símbolos outros, primeiros,
e tão acessíveis aos pobres
como a breve casca do pão.

Pergunta ao que, não sendo, resta
perfilado à porta do tempo,
aguardando vez de possível;
pergunta ao vago, sem propósito
de captar maiores certezas
além da vaporosa calma
que uma presença imaginária
dá aos quartos do coração.

A ti mesmo, nada perguntes.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Vida Passada a Limpo'

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Intervalo (II)


Ricardo Asensio "Amanhecer de um Rio" 1968

Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.

Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.


Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.

Um dia em que se possa não saber.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Brasserie


Cartier-Bresson "Brasserie"

o rapaz ruivo pôs um belo de um sorriso
a uma rapariga morena que lia o jornal.
esconderam ambos um mar rubro e oculto.
sem darem as mãos voaram até um planeta
alto e distante. não se via. existia
sem consequência.

ainda hoje se lembram as mesas da brasserie
na esplanada nada fria de Paris.
acrescenta-se o que poderia ter sido
enquanto se escrevem poemas, se leêm livros
e se lembra uma avózinha muito curiosa
no dia dos namorados.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Café Del Greco

O mancebo entrou no Café Del Greco e pediu organino à marinheiro e o empregado disse: aqui não servimos música tocada por marinheiro, e também não servimos os marinheiros que tocam música, só servimos pasteis de chaves com muito fermento e cerveja também com muito fermento. O mancebo disse: Quero que as coisas com fermento se fodam!! Foi até à máquina de dar dinheiro, no fundo do café e meteu lá dinheiro e ficou sem o dinheiro porque não há máquinas de dar dinheiro. Pediu um prego no pão e o dono do Café del Greco deu-lhe um prego no pão. O mancebo saiu e foi ver o mar, a lua estava cheia e o mar tinha-se ido embora, depois o mar voltou e o mancebo chamou por um mexicano e o mexicano veio a fumar pela praia, com um passo muito lento. O mancebo e o mexicano sentaram-se na mesma duna e o mar sentou-se também numa duna. O mar pediu lumes ao mancebo e o mancebo disse: Eu não tenho lumes – E o mexicano disse: eu tenho lumes – E o mar começou a arder, e depois calçou umas botas de saltos altos e dançou como um tornado de fogo, e o mexicano disse que o mar era sexy e masturbou-se enquanto o mar dançava – É que dá-me tusa! Fodasse ver o mar dançar – Voltaram ao café del Greco e comeram dois pregos cada um e dois finos cada um.

Linha de Sintra

Alguém disse ao condutor da linha de Sintra que une as Caldas a São Pettersburgo, ó condutor de comboios, tu és um génio, porque nos levas na rota perfeita – E o condutor de comboios da linha de Sintra disse: Eu não sou um génio, sou só um conjunto de limões em fuga, vocês são guiados por um conjunto de limões que não sabe para onde vai e leva tudo consigo; Leva consigo várias carruagens e todas elas descarrila e volta a alinhar, um conjunto de limões pintado em todas as naturezas mortas do século XVIII, com limões de extrema direita e limões de extrema esquerda, um conjunto heterogéneo que usa ceroulas de todas as coras e chora na direcção do vento, se o vento vem de norte chora para sul, se o vento vem de sul chora para norte.
Alguém ejaculou por cima da natureza morta e esse sémen ficou na história da Arte europeia – Pense – Disse o condutor da linha de Sintra, com bons modos – Eu sou um espelho e um conjunto de limões em fuga e às vezes no meu comboio invoco um incubo para que lance um terramoto, e esse incubu lança o terramoto e o terramoto é de escala 7 e deita abaixo todas as bibliotecas, e o terramoto faz com que o comboio descarrile, e ao lado da linha de Sintra, corre um cavalo na direcção que lhe apetece, se lhe apetece correr para norte vai para norte, se lhe apetece cavalgar para o inferno o inferno abre-lhe as portas, então esse cavalo que às vezes bebe do Tejo e outras vezes bebe do Sado e quando quer ir para norte vai beber ao Douro, corre com medo do terramoto – O cavalo tem atrelado um arado e um carrilhão suíço que acorda as mulheres para irem extrair sal. E como a terra treme e o terramoto é muito intenso, o cavalo espalha-se pelo Alentejo e foge para um lado e depois para o outro, ao ritmo que a terra quer – E o arado deixa na terra uma sismo-gravura, ou um sismo-poema que a terra dita, em linguagem trémula ao cavalo que corre, O arado escreve – O Paraíso é igual a Paraíso + Inferno – Ou outro aforismo ridículo que só um tremor de terra poderia escrever. E vêm a chuva e apaga a frase que outrora se lia do alto.

Nuno Brito

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Como podemos esperar


Sopretán Doménech "nascimento de uma sereia" 1993


Como podemos esperar.
Aguardar o que nossas mãos possam reter.
Uma palavra. O olhar cúmplice. Se as coisas
têm já o estado do vento
o que nas ruas fica das vozes ao fim do dia.

Aguardar mais aguardar nada
quanto mais se repete uma palavra
«estou sentado virado para a parede desta casa»
baixo, mais baixo ainda,
«estou sentado virado para a parede desta casa».

Fazer que não haja sucedido o sucedido.
O prazer de sentir chegar as coisas
o riso sob a chuva
o frio que faz. Aqui

como podemos esperar uma noite de lua e vento?

João Miguel Fernandes Jorge, in "Direito de Mentir"

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

íntimo


Robert Doisneau

o acaso de uma tempestade: o trovão, um relâmpago de luz
e tão tectónica e imersa é por vezes a revolução
difícil, tão difícil, interna
um mergulho numa nuvem de quadros sem assinaturas
estilo código genético de um rio pessoal
íntimo, tão íntimo, arterial
capilar, tão fino quanto um fio de uma agulha
que solta a gota de sangue;
não coagula, segue em frente e surpreende
no excesso de ruído ou de silêncio
querendo dizer o mesmo -

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Lorca lives


Leonard cohen/Luis Bunuel "los olvidados"


Lorca lives in New York City
He never went back to Spain
He went to Cuba for a while
But he's back in town again

He's tired of the gypsies
And he's tired of the sea
He hates to play his old guitar
It only has one key

He heard that he was shot and killed
He never was, you know
He lives in New York City
He doesn't like it thought



Lorca Vive

Lorca vive em Nova Iorque
Não chegou a regressar a Espanha
Foi até Cuba por uns tempos
Mas está de volta à cidade

Fartou-se dos ciganos
E fartou-se do mar
Detesta tocar a sua velha guitarra
Que tem apenas um tom

Ouviu dizer que tinha sido alvejado e morto
Nunca chegou a sê-lo, sabias
Ele vive em Nova Iorque
Embora não lhe agrade

Leonard Cohen (tradução de Vasco Gato)" O livro do desejo" Quasi

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

dupla face do sonho


Gerhard Richter "Abstracto" 1995

as faces, as duplas faces de ser ou sermos
prisioneiros de um inesquecido impossível.

viajemos no lugar presente na barca que divaga
pleno indicador de magnetismo de bússolas
sem o desnorte das estrelas viciadas e azedas
sem as luas tristes e ázimas de homens pesados
e fardos de árvores, feixes de sombras;
segundo dizem os sábios não se cortam os ramos
sem eles não cantam as aves.

viajemos no lugar precioso das sementes
que nascem, que crescem, crescem
no esforço de romper as terras. Sementes
que descobrem o sol e a sede dos rios.
sementes que enxugam as lágrimas das musas
e sobem o sorriso dos lírios.

viajemos nos braços de prata dos espelhos
gémeos de lábios doces na profundidade
das diferenças.

poucos são aqueles que sentam e escutam
a serenidade dos montes, as dificuldades
dos arbustos onde dormitam os coelhos
e saltam súbitas as raposas. poucos
são poucos.

viajemos nas escondidas naturezas
e na sobrevivência dos segredos
como sonâmbulos nos sentidos
entre quatro paredes de quartos brancos
sem o pudor das vestes
velhas chagas puritanas
que não mostram todos os destinos
nem as capacidades interditas
dos lábios permanentes.

viajemos na dupla face do sonho
nem que ele seja sem o ser
ou sermos, princípios de desejos
impossíveis de esquecer.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Tenho mais almas que uma


Gerhard Richter "Abstracto" 1992

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis, in "Odes"

Festa campestre: o girassol, o gelo

Julian Artl passou uns tempos em minha casa. Era editor de uma revista de literatura que começava a receber boas críticas. Escreveu uma novela fragmentada e dois livros de contos. Nunca os publicou, só tinha um exemplar de cada uma das obras, com encadernações baratas. Apagou os ficheiros do computador. Nunca os tinha enviado por mail a ninguém, embora me tivesse lido vários contos e partes da novela ao telefone. Num domingo de chuva foi até à foz, estacionou o carro e atirou os três exemplares para o fundo do rio, na parte onde saíam uns esgotos e onde as taínhas saltavam e lutavam pelo seu pedaço de lodo – Como se fossem escritores – Disse-me ao telefone Artl – As taínhas pareciam escritores – Ri-me, não da frase em si, mas da sua voz, de quem tinha bebido muito. Falou-me sobre taínhas e literatura acidental. Imaginei as pastas de papel no fundo do rio. Alguns dos textos mais sinceros e completos que tinha lido, forravam o fundo do rio.
Enquanto tinha estado em minha casa, tinha por hábito, cozinhar gelatina ao fim da noite. Gelatina de morango com rum. Comia enquanto via um filme, não falava muito. Às vezes quando chegava a casa, via-o a cozinhar a gelatina artesanal. Comprava no supermercado, folhas de gelatina de marca branca, e com um marcador azul, usada para escrever nos cd’s, escrevia nas folhas de gelatina alguns contos completos. Um dia vi, seis folhas de gelatina que serviam de páginas a um conto. Li todo o conto. Artl estava no quarto de banho, não reparou que eu já tinha entrado. Toda a casa cheirava a haxixe e o espanta espíritos estava desalinhado. A panela estava cheia de água e de rum.


Percebi porque é que o meu dálmata estava doente. Artl dava-lhe gelatina de rum e morango enquanto eu estava a trabalhar. Nunca saía de casa, por mais que eu lhe dissesse, para ir ao parque, ao estádio, conhecer a cidade, ver igrejas e museus, Artl era licenciado em História de Arte.
O cão comia a gelatina feita com as folhas onde estavam alguns contos inéditos de Artl. Reparei no seu prato as bordas da cor do morango que ele lambia até à aflição. Imaginei, que Artl pusesse também xanax esmigalhado na gelatina ou uma ou outra droga legal que mandava vir pela net. Para o estômago do dálmata a mistura devia ser corrosiva. Tinta de marcador cozida na água, rum e muito açúcar. Reparei que o dálmata dormia na varanda de barriga para o ar. Parecia estar a ter um sonho erótico. Talvez de uma cadela spaniel. Imaginei também Artl a aparecer no sonho do meu cão, com uma taça de gelatina e a Spaniel excitada ao lado dele. Chamei-o várias vezes mas não acordou. Deixei-o dormir e liguei a televisão para ver o resumo das notícias do dia. Artl saiu do quarto de banho. Sentou-se à minha beira. Fiz de conta que não tinha visto o seu conto. Falamos um bocado. Depois disse-me que estava a fazer gelatina e foi à cozinha. Pôs o rum a cozer com as folhas onde estava o seu conto.

Alguns contos consegui salvar nos dias seguintes. Enquanto Artl dormia, descobri um por cima da sua mala. No total doze folhas escritas com uma letra perfeita. O conto falava de um homem que vai ver uma exposição de escultura clássica. As personagens, as estátuas do museu falavam entre si sobre o visitante, que era uma atracção. Falavam dos seus calções, do seu penteado. Como se o museu fosse móvel e fosse todas as pessoas que entram e saem. Um museu vivo e único, sempre aleatório de gente que entra e sai. Trouxe-o para a beira do computador e transcrevi-o. No fim havia um pequeno aforismo sobre a perenidade do suporte.
Art foi embora três dias depois. Ao contrário daquilo que pensava, a saída de Artl foi para o meu cão, indiferente, como se ele nunca tivesse entrado. A sua passagem na literatura foi feita do mesmo modo, como se nunca tivesse escrito.
Transcrevi de uma folha de gelatina “Três caras no gelo”. Nunca mais tive notícias suas

Três caras no gelo
……………………………………………………………………………………………

Ao lado da sepultura de Adriano há um ringue de gelo, um castelo e um homem estátua. Há também uma ponte com muitos anjos, um anjo de bronze no cimo do castelo, e um marroquino que vende guarda-chuvas. No ringue de gelo está uma rapariga sozinha a patinar, como que por missão, repete-se (como que por missão) a rapariga parece a rapariga mais triste do mundo, mas cumpre a sua missão, patinar, ser triste, estar neste conto.
A rapariga patina e escreve um poema no gelo, que não aparece porque no gelo já há muitas riscas, tal como em muitos braços e na alma de muitas patinadoras solitárias. Há muitos riscos que se fazem, e sobretudo, os riscos não se podem apagar, aconselhou-me, um anjo, um verdadeiro anjo, que para apagar um risco, se tem que desenhar um novo risco por cima, seja na memória, nos braços, numa conversa, em toda a história da humanidade: Nada se apaga, tudo se constrói/escreve/ relaciona por cima. E há vários riscos e os riscos de baixo, que não cicatrizam, na (memória, nos braços na parede) vão perdendo em força, porque há informação nova que se sobrepôs. Amanhã vou fazer uma tatuagem, a imagem de uma rapariga que levanta voo agarrada a uns balões; Foi desenhada por Banksy nos muros da Palestina. Pedi na loja das tatuagens que ocupasse toda a parte de cima do braço direito.


Patinei durante a tarde toda, mais uma vez ele não ligou, ninguém passava ao lado do castelo, patinava sozinha, só um homem de chapéu estranho me olhava; Parecia a pessoa mais sozinha do planeta, tirava apontamentos, consigo ver sem os olhos, consigo patinar no gelo, e sentir o meu sexo quente, enquanto tenho uma visão de cima do castelo, do outro lado da ponte, vejo pelos olhos do que tira apontamentos, vejo o seu caderno quadriculado cheio de escrita nervosa e rascunhado. Vejo como se estivesse no Google Word, no topo de um satélite, o homem estátua, os que olham o homem estátua, aquele indiano que o aguarda à entrada da ponte, porque sabe que ele vai passar ali e está a chover, e provavelmente vai comprar um guarda-chuvas, e isso dá-me riso. Escrevi um poema no gelo, metia as palavras “girassol”, “Perenidade” e "meta-gelo" – Tudo me dá vontade de rir. Várias coisas ficaram por dizer, debaixo do gelo há um girassol.

Só me falta vender um guarda-chuva, aquele é americano, tem dinheiro, vou-lhe vender um guarda-chuva, sei por Alá, e depois vou para casa. Está frio. Está frio fodasse.

Julian Artl

Nuno Brito

Ode ao gato


Gerhard Richter "Abstracto" 1992



Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A beleza em cada ser é uma alegria para sempre




A THING of beauty is a joy for ever:
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o’er-darkened ways
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
’Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven’s brink.

Nor do we merely feel these essences
For one short hour; no, even as the trees
That whisper round a temple become soon
Dear as the temple’s self, so does the moon,
The passion poesy, glories infinite,
Haunt us till they become a cheering light
Unto our souls, and bound to us so fast,
That, whether there be shine, or gloom o’ercast,
They alway must be with us, or we die

Jonh Keats "Endymion"


A beleza em cada ser é uma alegria eterna:
o seu encanto torna-se maior e nunca se há-de perder
no nada; reservar-nos-á ainda um refúgio
de paz, onde adormeceremos, habitados por sonhos
suaves, uma íntima plenitude, uma respiração branda.
Comecemos, assim, a tecer em cada manhã
uma grinalda de flores para nos unirmos à terra,
apesar do desalento, da ausência daqueles
cuja nobreza amávamos, dos dias cheios de escuridão,
de todos os caminhos insalubres e misteriosos,
abertos para os nossos anseios; sim, apesar de tudo,
uma forma de beleza afasta o sudário
das nossas almas sombrias. Assim é o sol, a lua,
as antigas e novas árvores cuja benção faz germinar
a sombra sobre os humildes rebanhos; os narcisos
e o mundo verdejante que os cerca; e os límpidos rios
que para si criam um dossel de frescura
durante as estações ardentes; os silvados do bosque
enriquecidos pelo belo, nascente esplendor das rosas;
e também, a magnificiência do destino
que imaginamos para os mortos poderosos;
e as histórias encantadoras que lemos e escutamos;
fonte inesgotável duma imortal bebida,
que vem do limiar do céu e para nós se derrama.

E não é apenas durante algumas horas breves
que ficamos presos a estas essências; assim como as árvores
murmurando à volta de um templo logo se tornam
tão amadas como o próprio templo, também a lua
e a paixão da poesia, glórias infinitas, tantas vezes
nos assombram, até serem uma luz vivificadora
para a alma, e tão estreitamente nos cingem
que, fique a brilhar o sol ou se apaguem os céus,
para sempre hão-de existir em nós, ou morreremos.

Tradução Fernando Guimarães "Poesia Romântica Inglesa" Relógio D'Àgua

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A Estrela*

Não sei se ele está em todo o lado, mas sim que
é apenas a vontade de rir...

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I.

O meu marido é soldador e chega tarde a casa. Quando chega já está a dar o telejornal. O meu marido chega e põe-se em frente à televisão da cozinha. Dá algumas palmadas no cão. Depois muda para outro canal onde estão a dar as notícias do desporto e vê com atenção as notícias do Dínamo de Bucareste e vem sentar-se à mesa quando já está tudo frio.


II.

Nunca falta sopa lá em casa, porque o meu marido e os meus filhos, graças a Deus, gostam muito de sopa, desde pequeno que o meu marido gostava, e os meus dois filhos são iguais. Comem duas ou três tigelas e às vezes pedem mais. Por isso normalmente não comemos muito ao jantar. Às vezes são só umas sandes. Normalmente faço-lhes sopa de hortaliça, sem passar muito, e feijão, ponho muito feijão na sopa e estrelas. Ponho uma massa de estrelas de que os meus filhos gostam. Antes fazia sopa de letras. Mas o meu marido queixou-se das letras e eu mudei de marca. Agora compro de uma marca branca, mais barata, mas ele gosta mais.
O meu marido trabalhou na Grécia dois anos antes de me conhecer e diz que na Grécia a massa de letras é com caracteres e que sabe melhor. Mas diz: Os gregos não punham as letras todas, porque ficava caro às fábricas fazer moldes para todas. Tinham


que ser moldes muito pequeninos e era um investimento inicial muito grande, para aqueles que se decidiam a abrir uma fábrica de transformação de cereais. Eram uns pobres, depois uma mudança no destino, no rumo das estrelas e esses pobres diabos com um empréstimo ou outro lá iam criando as suas fábricas. Contava o meu marido. Na Grécia qualquer massa de letras só tinha o Alfa, o Beta e o Ómega, as letras mais populares, algumas marcas tinham também uns pontinhos, que faziam de ponto final. Mas a sopa era boa, dizia ele. A sopa dos russos também. O meu marido viveu um ano na Rússia, quando tinha 20 anos, trabalhou numa adega de um amigo que já estava lá há mais tempo. Dizia que a sopa dos caracteres russos também era boa. Esses punham os caracteres todos e por isso a sopa sabia melhor, porque ao paladar juntavam-se novas texturas, e os russos têm muitos caracteres e falam muito rápido.

III.

Agora ponho estrelas na sopa e ele não se queixa. Mas às vezes pega no pacote da massa quando estou a cozinhar e não diz nada, mas eu sei aquilo em que ele pensa. Um dos sócios da fábrica de transformação de cereais é o Serj: um antigo amigo nossa. Cresceu junto com o Óscar. Tinham sido colegas de escola e de seminário, e depois ainda na tropa. Percebo bem o meu marido, a sua expressão quando olha para a embalagem da massa de estrelas.
Quando saíram da tropa, o Óscar foi para a Rússia, primeiro como montador de pneus, depois a trabalhar numa adega. O Serj entrou numa empresa de construção civil e passava a vida no sul a fazer ginásios e estádios. Passado pouco tempo casou-se e foi viver para Bucareste. Dividia com outro homem um táxi, fazia o turno da noite e o outro fazia o de dia. O negócio começou a correr-lhes bem e compraram outro táxi. Passado algum tempo tinham seis táxis novos e bons e alguns motoristas a trabalhar para eles. Ele continuava a conduzir um dos táxis da noite. Compraram mais alguns carros. Nessa altura a Anna tinha acabado de nascer e, no baptizado dela, ele disse ao meu marido que tinha levado o Emil Cioran à praia. Disse-lhe que o apanhou em frente a um hotel a fazer sinal para o táxi parar e que queria ir a Constanta.



IV.

- Ia muito calado. Eu ia falando para passar o tempo. Ele pediu-me um cigarro porque a essa hora já estavam todos os sítios fechados e seguimos até ao Mar negro. Ia embalado com a música e adormeceu. Depois foi tirando uns apontamentos num bloco preto. E eu disse que era uma grande honra levá-lo à praia. Ele saiu do táxi e foi até à beira-mar. Tirou os sapatos e molhou os pés. A água devia estar muito fria. Eu fiquei ao lado do táxi a olhar para ele. Parecia o homem mais triste do mundo. Depois voltou e pediu que o levasse a um apartamento de um amigo. Deixei-o lá.


V.

Juntaram-se depois com outro sócio, e os três criaram uma empresa de camionagem. Compraram dois autocarros usados. No início faziam só duas linhas regionais, que traziam as trabalhadoras dos arredores de Reslta para o centro da cidade. Mulheres que vinham às 6 e meia da manhã para as fábricas de calçado. Ao fim da tarde as camionetas também iam cheias para as levarem para casa.
Fizeram depois um acordo com a câmara da cidade para levar crianças dos arredores para as escolas mais próximas e por isso tiveram que comprar mais camionetas. Em pouco tempo cobriam mais linhas e tinham uma frota de sete camionetas, uma delas com ar condicionado para as viagens para Deva.


VI.

Depois ele vendeu a parte dele. Era na altura muito amigo de um empresário de Arad e decidiram criar a fábrica de transformação de cereais. Era uma fábrica pequena nos arredores da cidade, tinha 40 empregados. O negócio ia correndo bem, ia dando para aguentar as despesas com o pessoal e os fornecedores. Os clientes eram armazéns de retalho no Oeste. Para sul havia as grandes fábricas de transformação de cereais que exportavam para a Bulgária e para a Sérvia. Com essas não podiam competir. Os

produtos da empresa só estavam numa mercearia ou noutra, todas muito afastadas umas das outras. Mas a carteira de clientes era boa e o negócio não era arriscado.


*

VII.

Pouco tempo depois de ter criado a empresa comprou uma casa perto da nossa; Vinha cá algumas vezes por ano com a mulher e a filha, a Simona que nasceu mais ao menos ao mesmo tempo da nossa Anna. No início O Serdj não vinha muito aqui porque a empresa ainda lhe dava muito trabalho, mas depois passou a vir mais e no verão costumavam ficar aqui cerca de 3 semanas. Às vezes tinha que ir mais cedo embora, mas a mulher e a filha ficavam mais uma semana ou duas e depois iam lá ter. A filha, a Simona dava-se bem com a Anna, brincavam juntas aqui em casa, ou iam até à biblioteca ou ao parque. Só lhes pedia para virem antes de ficar escuro.

VIII.

A Anna andava no ballett aqui e Simona andava no ballett em Arad. Fechavam-se no quarto e punham-se a dançar. O Óscar tinha-lhe comprado uma aparelhagem de música nos anos dela e os tios davam-lhe cd’s de compilações. Punham a música alta e ficavam a dançar. Os gémeos ainda eram pequeninos. Às vezes um deles entrava, ou entravam os dois, e elas punham-nos fora, outras vezes punham-se a penteá-los com totós. Os gémeos riam-se e ficavam todos a dançar, muito inocentes. A Anna pegava numa caneta e fazia de conta que era um microfone e cantava por cima das músicas, em frente ao espelho. Saltava as palavras do inglês que não percebia. Os gémeos saltavam em cima da cama. Às vezes entrava lá o cão. Outras vezes eu ia lá pôr ordem e meter-lhes a música mais baixo. A Simonna era um bocado mais alta do que a Anna. Entretanto a Simona e a Anna entraram para o ciclo e continuaram amigas. Só se viam no Verão quando o Serj voltava. Íamos falando pelo telefone durante o inverno e sabíamos as



novidades deles e eles sabiam as nossas, a vida do dia a dia. O crescimento da Anna e o crescimento da Simona.
A Simona era boa aluna, tirava muito boas notas, a Anna também era boa aluna, mas a Anna estudava pouco por isso tirava notas mais baixas, mas o suficiente para passar, era responsável e isso chegava-nos. A Anna gostava mais de ler novelas, contos ou romances que o Óscar lhe comprava quando tinha de ir à cidade. Novelas de autores romenos e búlgaros muito populares, ou então da Ennid Blinton. Mas a Anna ia à biblioteca procurar outros livros de que gostava mais e ficava a ler. Eu não posso ler muito por causa dos olhos, mas a Anna lia muito.



VIII.

Outro dia entrei no quarto dela, que nunca foi arrumado. Ficou como estava depois de ela morrer. Só fiz a cama. Mas não mudei a roupa da cama. E também não arrumei a secretária nem arrumei a mesinha de cabeceira que está com um livro do Cioran em cima, com uma marca na página 30. Diga o que disser o escritor, foram as últimas frases que a minha filha leu. Por isso eram frases verdadeiras, certas, porque a minha filha morreu em paz. Outro dia vi qualquer coisa no jornal que o Óscar deixou em cima da mesa da cozinha. Tinha um artigo sobre Cioran. O Serj uma vez levou O Cioran à praia, já lhe tinha dito? As coisas correram bem ao Serj. Teve uma filha que era muito estudiosa. Mas perdi o fio à meada. Disse-lhe que andavam as duas no liceu? E aí o Serj começou a vir menos vezes aqui. Ele ainda vinha algumas, mas muitas vezes sozinho e por pouco tempo, porque a Simona já não gostava tanto de vir. Gostava de estar com a Anna, e falavam muito ao telefone. Mas a Simona, sabe as idades! A Simona tinha lá o seu grupo de amigos, e se calhar o seu namorado. A Anna tinha aqui o seu grupo de amigos e o seu namorado. A Simona já não gostava de sair da cidade. A cidade é animada no verão, é quando estão de férias, tem de se aproveitar a idade. O Serj vinha. Mas poucas vezes; Não é bom para um homem andar sozinho.






*

A Simona dançava muito bem. Uma vez fomos a Arad vê-la dançar. A uma academia numa festa de Natal da escola onde ela andava. No fim fomos jantar todos à Pizza Hut de um centro comercial do centro. Ficamos duas noites em casa do Serj, era o fim-de-semana antes do Natal. Os gémeos estavam já no ciclo. Trocámos as prendas no restaurante. A Simone dançava muito bem e cantava muito bem.


*

Mas a Anna dançava… Como dizer… A Anna Dançava… É engraçado…
Veja, tenho-a na carteira: Esta é a Anna quando tinha 6 anos. Foi tirada na cozinha de nossa casa. Eu disse ao Óscar para me deixar arrumar a vassoura primeiro. Para que a vassoura não aparecesse na fotografia. Antes dele chegar, a Ana estava a dançar na cozinha com o cão à volta dela aos saltos. A televisão estava ligada num programa da manhã e passava uma música animada de uma banda brasileira em digressão na Roménia. A Ana dançava com uma tshirt que o Óscar lhe tinha trazido de Bucareste. Uma tshirt com uma girafa estampada, a girafa só tinha duas patas e uma bola de futebol ao lado. Tinha uns calções curtos à jogador de futebol dos anos 70, uma gravata cor-de-rosa e uns óculos de sol. A Anna gostava muito dessa tshirt e dormia com ela. Naquele dia de manhã tinha acabado de acordar. Eu tinha-lhe aquecido o leite com chocolate que estava em cima da mesa já frio. O Óscar chegou a casa com uma máquina fotográfica. Tinha-a comprado em segunda mão a um cliente que passou pela empresa.
Tirou várias fotografias. Vê aqui esta… Quando chegou à noite já vinha com elas todas reveladas. Sentou a Anna no colo e mostrou-lhe. Disse: Quem é esta menina que eu precisava mais de ver do que o Moisés precisava de um mar para separar?
Dizia-lhe sempre isso. E a Ana dizia que não tinha sido o Moisés, porque um tio já lhe tinha dito. E ele voltava a repetir e a dar-lhe beijos.



Às vezes à noite ia-se despedir dela ao quarto. Dava-lhe um beijo na testa. Depois contava-lhe uma história que inventava. Uma vez espreitei e ouvi o Óscar a contar-lhe a história do Pastor. Ela adormeceu a meio, mas ele continuou até ao fim:



História do pastor:

Havia um pastor que tinha um rebanho de cem ovelhas e queria pô-las a pastar num prado, mas o prado ficava do outro lado do mar. Então apareceu Moisés e disse, eu parto o mar em dois, e tu as tuas ovelhas passam pelo meio. O pastor agradeceu. Mas Moisés mudou de ideias e disse: Afinal, só deixo passar um de vocês dois, por isso escolhe, ou passas tu, ou passam as ovelhas todas. O pastor disse: Então Moisés que passem as ovelhas todas, porque elas precisam de ir pastar e eu posso ficar aqui a dormir porque depois ainda me espera uma longa viagem de regresso. Moisés abriu então o mar para as ovelhas passarem. Depois de passarem todas, o pastor pôs-se a dormir na praia, mas passado pouco tempo Moisés acordou-o e disse-lhe: Pastor, tenho fome, quero comer sandes de queijo de ovelha. Tenho aqui pão, mas falta-me o queijo de ovelha. Eu abro-te o mar, e tu vais buscar as ovelhas, e recolhes o leite de uma delas para fazer queijo e trazes-mo para pôr no pão. O Pastor aceitou, e Moisés voltou a abrir o mar. Quando o pastor chegou ao outro lado não encontrou as ovelhas, só encontrou um homem que lhe disse: Eu sei onde estão as tuas ovelhas pastor, mas só tas dou se matares o Moisés, é que ele está sempre a abrir e a fechar o mar, e por isso eu tenho que matá-lo, mas é melhor que não seja eu, porque se eu o fizer, fico com as culpas e posso ser julgado por isso. Assim, eu dou-te esta pedra e tu vais lá e atiras-lha, e depois eu devolvo-te as ovelhas. – O Pastor ficou desorientado, mas aceitou. Pegou na pedra e foi ter com Moisés que lhe perguntou se ele já trazia o queijo de ovelha. O pastor não respondeu atirou-lhe com a pedra à cabeça e Moisés caiu. O Mar tinha ficado aberto, e o pastor voltou para trás para apanhar as ovelhas. O homem estava à sua espera, agradeceu-lhe, mas disse: Agora pastor, vou ter de ficar com uma comissão de 40% por ter ficado este tempo todo a olhar pelas tuas ovelhas. E perguntou o pastor: Quanto é que é 40% das minhas ovelhas? – O homem disse – Tu tens 100 ovelhas, por isso 40% do teu rebanho, são 40 ovelhas para mim. O Pastor deu-lhe então 40 ovelhas, e ficou só com 60. Voltou outra vez para trás com as suas 60 ovelhas. Foi então que, atravessando o caminho que Moisés criou, encontrou uma estrela-do-mar e guardou-a no bolso. Mas entretanto Moisés acordou, porque tinha estado só a fingir que estava morto e disse-lhe – Com que então pastor, para além de não me teres trazido o queijo de ovelha, ainda me tentaste matar, e eu que tanto te ajudei ao abrir o mar em dois para tu passares. Então Moisés prendeu o pastor e as ovelhas numa jangada e pediu a Eólo, o deus dos ventos, que lançasse uma tempestade sobre o barquito e que eles fossem lançados à sorte dos deuses. Então Eolo lançou ventos fortes que criaram ondas gigantes sobre o mar e o barquito quase ia ao fundo. Ficaram vários dias à deriva no alto mar até que o pastor se lembrou de rezar à estrela-do-mar, e pedir-lhe muita sorte.

A estrela-do-mar ajudou-o e indicou-lhe o caminho da Irlanda, que era o sítio mais seguro. O barco chegou são e salvo a uma praia da Irlanda, onde há muitos pastos relvados, e o pastor soltou aí as suas ovelhas.

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IX.

Nessa altura a Anna já estava na Academia de Ballett, e em dois anos tornou-se a mais talentosa do grupo. A professora e o director da Academia um dia falaram com o Óscar e disseram-lhe que seria bom levá-la para Bucareste para ter aulas na Academia de Bailado Clássico Nacional. Uma das melhores Academias de Dança Europeias. Disse que ela quase de certeza seria admitida, porque tinha muito talento. Mas isso implicava muitas perdas; Também muitos ganhos. Eu e Óscar falamos disso várias vezes. Sobre a Anna ir para Bucareste. Abandonar a escola aqui? Irmos todos viver para Bucareste? Mas e os gémeos? E começar tudo? A Academia em Bucareste tinha também escola que a Anna poderia frequentar. O Óscar dizia: A minha menina vai ser uma Estrela. Foi a decisão de que mais me arrependi. O meu marido de vez em quando fala nisso. Decidimos que se veria no fim da escola. A Professora achou sensato, porque a decisão implicava também muitos custos e estávamos com pouco dinheiro.



A Simona dançava bem, mas não tinha tanto talento e quando entrou no ciclo desistiu da dança.

Mas há algum tempo a Simona conheceu alguns músicos. A Simona canta bem. Criou um projecto a solo. Começou a dar vários concertos. Um produtor de espectáculos abriu-lhe os caminhos da televisão e a Simone começou a aparecer em todos os programas da Manhã, nos serões da noite, nas emissões especiais. Hoje, as suas digressões são muitas. Ela é bonita, canta bem, alguém lhe escreve as letras e já lançou quatro álbuns: Sim estou a falar da Simona que apresenta agora um concurso para cantores. Essa mesma, minha senhora. A mulher que aparece em mais capas de revistas no nosso país. Sim, é essa Simone.


*

Nos últimos tempos a Anna queixava-se que lhe doía muito a cabeça. Por telefone. Ligava e dizia que lhe doía e que estava com dificuldades em concentrar-se nas aulas. Disse-lhe para tomar vitaminas e que me explicasse melhor que tipo de dores eram. Estava em Bucareste no último ano de Biologia. Vivia num apartamento, que dividia com duas raparigas. Não disse ao Óscar para não o preocupar. Ele andava com muito trabalho. Tinham recebido uma grande encomenda do principal fornecedor, a ser entregue em Janeiro.
Telefonei à Anna um dia pela manhã para o telemóvel mas ninguém atendeu. Liguei várias vezes. Depois ela ligou-me, disse que estava em aulas e estava com o telemóvel em silêncio. Perguntei-lhe se estava melhor. Disse que não. No início pensei que pudesse ser sistema nervoso, estava a acabar a primeira semana de Dezembro. Aproximavam-se os exames e para além disso tinha dois trabalhos de grupo que tinha que entregar antes do dia 20. Mas fiquei preocupada. Telefonei para a empresa e mandei chamar o Óscar. Ele atendeu. Disse que tínhamos de ir a Bucareste buscar a Anna porque ela não se sentia muito bem. Ele veio logo. Estava nervoso. Expliquei-lhe pelo caminho. A Anna tinha desmaiado na noite anterior e ainda não tinha ido ao médico.


Telefonei à Anna pelo caminho, disse-lhe para ela não sair de casa. Quando chegamos ela estava a dormir no quarto, uma das colegas delas levou-nos lá. Acendemos as luzes e chamámo-la. Ela acordou. Disse que estava tonta. Levantou-se, tinha pouco equilíbrio. Fomos ao Hospital Universitário. O Óscar ia a conduzir muito depressa. Uma das amigas dela veio também. Estava preocupada. Foram muito rápidos a atender-nos. Fizeram exames na mesma noite. Eu estava na sala de espera com a amiga da Anna e íamos falando. A sala estava cheia. O Óscar estava sempre a vir cá fora fumar. Telefonou para o director da empresa e disse que ia ter de ficar mais uns dias em Bucareste. A Anna ia ficar internada. A amiga disse para ficarmos lá em casa e dormimos no quarto da Anna esses dias. Um dia de manhã o médico, que era muito simpático, falou-me do tumor. Um tumor cerebral, maligno e galopante. Um tumor em forma de estrela. As minhas irmãs e a minha mãe vieram para Bucareste. Trouxeram os gémeos. Passado três dias, o médico disse que não valia a pena ser operada. O melhor seria voltar para casa, onde poderia ficar mais à vontade e estar em família. Voltamos para casa e foi o último Natal da Anna.


X.

Passamos ainda juntos o Ano Novo, mas no início de Janeiro começou a piorar muito rapidamente. Perdia cada vez mais o equilíbrio. Estava cada vez mais tonta. Não tinha dores, mas a medicação que as tirava deixava-a desorientada, com muitos lapsos de memória. A casa estava sempre cheia de visitas, familiares e amigos. A minha filha perdia cada vez mais o equilíbrio. E o Óscar andava cada vez mais à deriva, e os gémeos andavam cada vez mais à deriva e o cão também andava à deriva.

Então sonhei a morte. Uma morte europeia e travesti, com uns boxers apertados e às riscas. Nunca esquecerei o seu cheiro. Carrego-o todos os dias por baixo da língua como uma bola de algodão. Veio buscar a Ana. Com os seus boxers às riscas. Nunca vi figura mais ridícula. Acho que me ri dela no sonho, parecia uma personagem de uma novela negra japonesa, mas com menos classe:



Não percebi se era um homem ou uma mulher, parecia um relâmpago preso dentro de um casaco verde da Prada, um relâmpago reprimido, mas ainda assim colossal , com as suas virilhas acesas, muito controlado, como uma dama aflita prestes a perder a controlo. Um relâmpago de saltos altos, muito compridos, pronto para explodir num orgasmo de luz e som, num Big-Bang desorientado. Mas que se controla e só explode para dentro, cada vez mais para dentro, muito educadamente minga até um estado inofensivo. Até ser um relâmpago-menino. O casaco verde ficava-lhe extremamente sexy a essa morte branca e láctea, como uma Puma feita de nata que, num voo muito elegante se atirou à minha cara: Um país a ambicionar o esquecimento.



Uma manhã, a Anna ainda dormia e eu fui à cozinha preparar-lhe torradas, adivinhando que ela já não deveria demorar muito a acordar. Depois fui ao quarto dela e deixei lá o prato. O livro do Cioran estava aberto. Ajeitei a marca e fechei-o. Deu-me um quase ataque de pânico que se parecia um rio. Mas controlei-me e não comecei a chorar. Vim para a porta de casa e aí explodi, um choro logo controlado e reprimido. Depois um sorriso, porque podiam aparecer os meninos que deviam estar quase a acordar, coitadinhos, a imagem dos dois a dormir quase me fez outra vez explodir. - Não chora – Disse para mim como se fosse uma criança, repeti as frases em pensamento várias vezes, mas com vozes interiores diferentes, sem dizer nada, imaginei muitas vozes cómicas a dizerem-na: Não chora, um antigo colega de escola a dançar um twist muito divertido e com uma panela na cabeça, a dizer a frase, e depois ri-me, e não conseguia parar de rir. Passou uma mota em frente a casa, e o homem com o seu capacete ridículo ficou a olhar para mim e eu tive vergonha. Depois ri-me ainda mais do capacete dele e imaginei-o a dançar. O meu riso era já uma ameaça profunda e tive medo de ficar preso a ele, atrelada à loucura, atrelada à mota do homem do capacete ridícula e ser arrastada pela estrada até ao Mar Morto: E lá o homem da mota estacionar ao lado de Cioran que escreve, em cima de um banco no seu caderno preto, o esboço do livro que a minha filha estava a ler; Lembrei-me dos meninos, fui lavar a cara muito rápido, sem me olhar


ao espelho. Entrei no quarto. Estavam a dormir. Fui ao meu quarto ver o Óscar. Estava a dormir, parecia uma criança. Beijei-lhe a testa. Fui à sala, o cão estava a dormir mas a ter pesadelos e soluçava como se fosse ter um ataque. Meti-lhe a mão no pelo e acordei-o devagar, ele levantou o focinho, acalmou-se e voltou a dormir. Depois vesti-me para ir comprar cigarros ao Óscar, porque ele estava sem tabaco. Trouxe-lhe também o jornal.



*

Peço desculpa pela obsessão minha amiga, mas há muito tempo que não falava com ninguém. No quarto rezei a São Longuinho e fiquei a olhar para a Anna. Rezei também a Santa Cecília e só pedi que fosse sem sofrimento a partida. Vi duas joaninhas, no parapeito da janela a subirem para umas flores muito bonitas, que uns amigos tinham trazido para a minha filha. As joaninhas subiram até às pétalas e voaram pelo quarto até à testa da Anna. Pousaram na sua testa e depois desceram devagarinho com as suas patitas como se mancassem felizes em direcção aos olhos da Anna, pousaram na parte de cima das pálpebras e depois levantaram voo e saíram pela janela.

Alguns dias depois, como num milagre medieval, sonhei, que uma Nossa Senhora muito bonita me chamava, levantei-me da cama e fui ter com ela, os seus braços não eram de carne, mas sim de relâmpago. Também a sua auréola era um relâmpago vivo e circular, como que trabalhado durante anos por Volcano e Júpiter. Era o mais perfeito círculo que havia visto. A Nossa Senhora trazia um vestido lindo e toda relâmpago abriu os seus braços. Senti-me muito atraída, como se já não fosse mulher, mas sim um homem, tinha um desejo incontrolável de possuir aquela mulher tão linda. Foi isso que fiz no sonho, abraçamo-nos e deitamo-nos na cama da Anna, e fizemos amor durante muito tempo. O sonho foi lindo. Lembro-me que o relâmpago era cada vez mais brilhante e sincero, vestia também ele o casaco verde da Prada, e não o manto branco com que me chamou. Nossa Senhora dos Relâmpagos estava cada vez mais bela…


Levou-me pela mão até à Anna.

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Nunca gostei de estrelas, quando me lembro de estrelas, penso em chaves de estrelas e no Óscar a mudar o pneu do carro. Penso numa faca que tenho para cortar piza, que também é em forma de estrela, penso nas estrelas de Natal, e penso nos gémeos que birram todos os Natais, porque querem os dois pôr a estrela no cimo da árvore. Pego nos dois e põem os dois a estrela. Penso nas estrelas-do-mar que a Anna nunca viu, porque o Mar Negro é muito salgado e as estrelas-do-mar dão-se mal na água muito salgada: Preferem-na mais límpida, clara e doce. Penso também em estrelas de música, como a Simona, penso em estrelas de futebol, como o Dan Petrescu. Penso na relação que elas podem ter com a gente a sério, porque as estrelas só existem e brilham na relação que têm com as pessoas.
Mete-me nojo ver homens a olhar para as estrelas, imaginar o que é que esses pobres diabos podem estar a pensar. Rober Diaz descreve-os como “pedófilos a olhar para o crepúsculo”.

Acabei por ler finalmente o livro de Emil Cioran. Despertou-me a atenção a frase:
O momento em que pensamos ter compreendido tudo, dá-nos ar de assassinos – A frase estava sublinhada pela Anna, num traço forte e seguro, de confirmação. Ao lado numa das margens a Ana escreveu estas duas frases:



- O momento em que pensamos ter compreendido tudo é ridículo -
- Compreender tudo é ridículo -



Nuno Brito

O Viking e o menino autista

A Estrela II

As estrelas-do-mar têm simetria radiada e algumas delas podem ter um metro de diâmetro. Se um dos braços da estrela for cortado, pode-se desenvolver uma estrela nova.
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1.
Era domingo. Num Mc Donalds da Floresta Negra, Hanz olhou para o seu filho, autista de elevado grau, que estava a brincar com o boneco do Shreck que era o brinde do Happy Meal. Passavam uma semana no sul da Alemanha e iam depois visitar a Áustria, num carro alugado. O menino comia o seu hambúrguer sem nunca olhar para o pai. O pai foi lá fora fumar um cigarro, via através do vidro o filho a continuar a brincar. Não adiantava dizer-lhe para vir, isso demoraria horas e no interior do Mc Donalds da Floresta Negra não estava ninguém a não ser os empregados. O pai abriu o mapa das estradas da Baviera, teriam de estar na Pensão antes da meia noite. Ainda eram cinco horas e já era noite. Ascendeu outro cigarro e deixou-se estar por várias horas a olhar pelo vidro, para o seu filho, que continuava a brincar com o boneco, como se só tivessem passado 3 minutos. O pai abriu a porta do carro, ligou a música numa estação comercial e fumou cigarro após cigarro até às 23h15. Depois foi chamar o menino. Seguiram pelas estradas cheias de curvas da Baviera, até à pensão. No outro dia iam ver o castelo de Neuchvenstein, cuja reprodução já haviam visto na Disney World de Orlando.

2.

Na altura o menino não prestou atenção aos homens mascarados de Pato Donald ou de Mickey, mas brincou durante muito tempo com os bonecos do Mickey e do Pato Donald, com os objectos em si.
O Q.I. do menino era o mais avançado da sua turma. Parecia ter incorporado toda a obra “Sedução” de Baudrillard e saber que tudo é simulacro, parecia ter ido ainda à frente de Baudrillard e saber que aquilo que o homem cria é também o homem.


3.

Na escola especial para autistas aconselharam Hanz a levar o filho a um acampamento de escuteiros. Ele passou lá duas semanas. Depois o pai foi buscá-lo. Durante esse tempo houve muitas actividades. A cada menino foi pedido que escrevesse um pequeno conto, cujo tema fosse a Floresta Negra, O conto deveria ter no máximo duas páginas. Os orientadores não conseguiram convencer o menino autista a escrever, porque este estava a olhar para o chão e para as árvores. Os outros meninos apanhavam pinhas e liam e aprendiam a fazer nós (o nó do marinheiro, o nó do enforcado). Escreveram cada um o seu conto. Depois foi publicada uma antologia dos meninos escuteiros com as suas visões da Floresta Negra. 40% dos contos eram sobre castelos, 34% eram sobre fadas das montanhas. Hanz levava no banco de trás do carro a antologia. Claro que não estava lá o do menino.
Mesmo assim, Hanz foi até à janela da pensão, pegou na antologia, acendeu um cigarro e leu os contos todos dos meninos saudáveis. Percebeu então que o escritor é aquele que não escreve. E que a literatura é simplesmente tudo o que não pode/ não foi / nunca será escrito.


4.

No dia seguinte passearam pela floresta Negra e ao lado da estrada o menino encontrou uma estrela-do-mar. O pai olhou-a. Podia ter caído de algum carro, de alguém que vinha da praia e a trazia ao vento por fora da janela. A praia mais perto era a 1000 quilómetros. Mas as estrelas-do-mar são sobreviventes. Pensou, sem saber porquê, que se podia tratar de uma estrela-do-mar autista. Uma estrela-do-mar que soubesse tudo, todos os segredos de toda a gente. Meteu-a no bolso do menino.




5.

Assim que chegaram a Zurique Hanz descobriu um alfarrabista mesmo ao lado do parcómetro onde se dirigiu para pagar o estacionamento do carro. Entrou na livraria com o menino e descobriu na secção de História, um livro que se chamava – Doenças Psiquiátricas no Antigo Regime – Era uma obra de História da Medicina. Abriu-o ao acaso numa das páginas e viu o capítulo: O Autismo na Idade Média.

Comprou o livro e saiu. Era uma edição dos anos 60 e a capa parecia da cor da estrela-do-mar. Voltaram para Hamburgo e nesse mesmo dia, numa consulta, o médico aconselhou que o menino andasse com um cartão ao peito que tivesse os seguintes dados, o seu nome, o nome do pai e as respectivas fotografias. Deveria também ter a fotografia de um objecto com o qual o menino tivesse grande afinidade. A técnica não era nova. O cartão foi feito. Hanz tirou uma fotografia da Estrela-do-mar e a mesma foi anexada ao cartão, que passou a estar sempre ao peito do menino. O cartão tinha também os números de telefone do pai e da clínica.


Algumas variantes sobre a origem do autismo:

1. Índios da América do Norte:

Os autistas são meninos que olharam demais para a lua

2. Antiga Grécia

2.1
Os autistas eram os meninos que nadavam no fundo do lago cuja superfície servia de espelho a Narciso. Os meninos eram filhos de Cassandra e Cronos e de vez em quando entravam nos túneis subaquáticos que iam dar ao mar Negro. Aí alimentavam-se de estrelas-do-mar. As meninas autistas em vez de as comerem metiam-nas nos cabelos e


voltavam para junto do lago de Narciso. Não era a si próprio que Narciso via. Mas todos os outros.

2.2.

Os meninos autistas eram gatos negros transformados em meninos

2.3.

2.3.1

Os meninos autistas eram filhos de Narciso e de uma mulher em tudo igual a si,
(Outra variante)

2.3.2.

Os meninos autistas eram filhos de Narciso e de uma mulher que era também ele próprio.

3.

Margarida da Suécia era muito amiga de um menino-autista, que dormia no quarto ao lado da Rainha. Cantava muito bem e pensava que ninguém o ouvia. Era ele o músico preferido da Rainha.




4.

No deserto que circundava Babilónia, um estafeta do rei descobriu uma estrela-do-mar. Como era sinal de boa sorte, nesse sítio o rei mandou erguer uma cidade de várias pontas e povoá-la com todos os meninos autistas da Babilónia. Aí criariam a letra cuneiforme, o princípio da escrita através do qual todas as histórias seriam contadas.


Nuno Brito

A escrita da Estrela

A escrita da estrela:
……………………………………………………………………………………
O Paraíso é outra pessoa


Ao fundo do túnel que era feito de cabelos loiros, distinguiu um espelho com uma frase a batôn, aproximou-se e viu a sua cara com grandes manchas. Acordou. Eram três da manhã.

Foi até ao computador, abriu o gmail, só tinha um novo, dizia: URGENTE: Reencaminhe por favor este e-mail; por cada e-mail enviado este bebé queimado recebe 0,001 euros. Abriu todas as fotografias do bebé queimado. De nenhumas teve medo, parecia completamente queimado, já não parecia um bebé, mas uma rodilha com carne.
Enviou o mail para todos os seus contactos. Imaginou a rede a ficar repleta de mails do bebé queimado, mails que se cruzavam, várias pessoas os iam receber e enviar engordando uma informação de várias pontas, sempre em expansão até à mãe do bebé ter o dinheiro suficiente na sua conta para a operação do bebé em Cuba. Imaginou a conta a ficar recheada enquanto o e-mail em forma de estrela ia crescendo, engordando as suas pontas cada vez mais benignas e fluorescentes. Imaginou a estrela com as suas pontinhas a bater à porta dos camponeses. E os camponeses, do Cáucaso à Finlândia, a virem abrir as portas das suas casas. E as mulheres dos camponeses a perguntarem - quem é a esta hora? E os camponeses com as suas meias de lã grossa a abrirem a porta à estrela que, com todas as suas pontas, entra por todas as casas. Enfia-se em cada lugar da Rede. Espalha-se benigno. Uma estrela hiper-real, feita unicamente de solidariedade.

Ouvia o Adagietto da quinta sinfonia de Gustav Mahler, enquanto consultava vários sites com tatuagens; Guardava algumas das imagens numa pasta para depois escolher melhor. Tirou alguns contactos que gravou directamente no telemóvel.




Foi à janela. Depois sentou-se ao computador e escreveu “A Estrela”. Começou também a escrever “O Viking e o menino autista”. Os dois contos ficaram completos no dia seguinte.

magma


Ángel Charris "O gato de Gerhard Richter" 1998


peço que não me peças o silêncio
o magnânimo que me acompanha
de lábios fechados, mudas palavras
para afirmar tudo o que já sabes.
retomo indefeso todo o desejo
mesmo que submerso de segredos
sob cores de uma máscara de veneza.

peço que não me peças o silêncio
a âncora do fundo, que me atravessa
corpo, braços, mãos e mãos e tudo
sabendo que são líquidas e inclinadas
as águas mais profundas do meu rio
e levam, levam, levam ao mar.

peço que não me peças o silêncio
quando sinto nas voltas das ondas
as tuas mãos compreensivas e circulares
e procuro em cada gota o grão de sal
que povoa todos os nossos lugares
de letras, de poemas e gavetas
de sinais. as belas rosas de ventos
de norte a sul, depois do cair dos poentes.

não me peças o deserto. o nosso deserto.
por isso recomeço. recomeço
como um gato manso no teu muro branco
e peço, peço que nunca me peças o silêncio.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

de propósitos

O mundo vem aos abismos
de bolas de sabão
que gingam

sei porque tenho um manto
de lance finito
onde se desenham

e um canto
numa escala branca
que o mede a medo

deram-me
um manto
uma escala
e a tortura do gingar

de uma janela

Kalamus



Jean-Michel Folon "A propósito da terra e do céu" 1989



Full Of Life Now (original)

Full of life now, compact, visible,
I, forty years old the eighty-third year of the Sates,
To one a century hence or any number of centuries hence,
To you yet unborn these, seeking you.

When you read these I that was visible am become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my poems, seeking me,
Fancying how happy you were if I could be with you and become your comrade,
Be it as if I were with you. (Be not too certain but I am now with you.)

From “Kalamus” – Leaves Of Grass



Pleno de Vida Agora (tradução)

Pleno de vida agora, concreto, visível,
Eu, aos quarenta anos de idade e aos oitenta e três dos Estados Unidos,
A ti que viverás dentro de um século ou vários séculos mais,
A ti, que ainda não nasceste, me dirijo, procurando-te.

Quando leres isto, eu que era visível, serei invisível,
Agora és tu, concreto, visível, aquele que me lê, aquele que me procura,
Imagino como serias feliz se eu estivesse a teu lado e fosse teu companheiro,
Sê tão feliz como se eu estivesse contigo. (Não penses que não estou agora junto a ti.)


Tradução José Agostinho Baptista

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Cessa



Jesús Alonso "sem título" 2000


Na árvore única uma folha esguia.
Porque resiste assim facetada, larga
Em contraste de ramos definidos,
Nus e finos, plácidos, esquiços,
Postados no meio de uma planície
De fundo impreciso, branco, vítreo?

A folha única permanece íntima
No carvão carregado de uma mão
fechada que liga ao braço, aguarda.
Só cessa na próxima folha, a primeira
Que desabotoa, abre e emerge
lenta; não baça, não seca, de seiva.


Uma chuva tracejada, monótona
No meio da folha mínima
Na árvore quieta,
Um pequeno mar de água na terra cinzenta.

Única e aberta a janela de guilhotina
Sobre a mais difusa planície
Que acentua a única árvore
A única folha.

Ouço ainda, ainda
Uma chuva lenta de morrinha.
Cessa -

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Álcool


Joan Miró "Camponês catalão em repouso" 1936


Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d'auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de côr e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d'inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi alcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'