quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

engordando

na escuridão de afectos
há fome, há sede
uma fome faminta de fogo
uma sede sedenta de céu
em partículas de tempo encalho
num corpo do qual me alimento
inspiro odores que da pele se soltam
ferro os dentes alvos na carne rosada
dilacero secretos entremeios que torno meus
e eu engordo
vou engordando

bebo o sangue, grosso e escuro
da cor de reposteiro de sacristia
corpo e sangue d'alguém
alguém sem nome, sem rosto
anónimo, sem identidade
que importa! alguém. ou talvez ninguém
dos olhos sugo a alma
e é dela que me lambuzo
os dedos, o queixo
ponto alto do bródio, delírio do palato
e eu engordo
vou engordando

até nos ossos de marfim afio os caninos
e a seiva leitosa sorvo em orgasmos sacudidos
seca. deixo-te seca.
pele e osso. transparente como um cadáver.
folha seca de Outono que se calca e quebra
num som de estalidos debaixo dos pés
foguetes em dia de festa. sem festa
seca como uma folha de papiro
amarelecida, envelhecida antes do tempo,
com o impiedoso bater dos ponteiros
seca
numa nudez frágil de alma depenada

de um golpe desprendo-me
arrumo desarrumada, num caixote qualquer,
sem etiqueta, na minha memória mais remota
tão mais que já perdi e de vez esqueci
levou-te o vento do norte
em mil grãos de poeira, desfragmentada
outro chão, outro colo.

na escuridão de afectos
um outro corpo do qual me alimento
e eu engordo
vou engordando

Clara Oliveira

1 comentário:

josé ferreira disse...

Olá Clara
que poema forte e imensamente enriquecido. gostei muito. o princípio de "escuridão de afectos",
o "engordo/ vou engordando", "até nos ossos de marfim afio os caninos" e muito mais.

Abraço