Hoje, dia quatro de Outubro, é dedicado a S. Francisco de Assis, o Santo protector dos
Animais e a data mais bonita e indicada para recordar uma criaturinha encantadora que tem permanecido na minha memória, como um poderoso testemunho de amor e de entrega!
O animal que hoje aqui vou homenagear é, talvez, um dos mais belos e comoventes motivos da tela, onde vou registando, com tinta de riso e de luz ou de lágrimas e de sombra, cada um dos meus dias, embora, na minha vida, tenha sido apenas uma doce e indelével referência: a Xica, uma pequena e graciosa macaca! A tela a que realmente pertenceu e onde deixou gravada a sua marca, em pinceladas de amor, alegria e doçura, é outra, há muito tempo, interrompida!
Nasci em África. Uma África, então, pacífica, bordada de mar e enfeitada de cores alegres e cintilantes, envolta em sol ardente e cheiros doces e fortes, num arrebatamento de pura beleza e imensidão!
Nesse tempo, faziam-se, ao fim de semana, longos e deliciosos piqueniques, mato adentro, alegres pretextos para convívios familiares e de amigos.
Num desses piqueniques, na Anha, ainda eu não era nascida, a minha Mãe viu e nunca mais perdeu de vista, o que ela pensou ser um macaco, ainda pequeno, meio escondido, fugidio, mas curioso e a seguir, interessado mas, à distância, a divertida reunião.
A certa altura, uns olhos grandes, escuros e redondos como contas, cruzaram-se com os olhos claros de minha Mãe. Olharam-se, mediram-se, entenderam-se e começou, então, um silencioso jogo de sedução e conquista.
Vencido o receio, uma mãozinha esguia, escura e felpuda, perdeu-se, confiante, numa outra, branca e fina que a acolheu ternamente. Ao cair da tarde, no regresso a casa, a pequena macaca, (afinal era uma menina ), que decerto se perdera do bando, já tinha um lar, uma família e um nome: Xica!
E, entre a senhora de olhos claros e a pequena macaquita, nascia uma delicada mas forte relação de afecto e de uma imensa ternura!
Uns dois anos mais tarde, nasci eu e lembro-me de, já crescida, ver fotografias, aquelas fotografias antigas, a preto e branco, com uma pequena margem branca, recortada, onde a minha Mãe sorria e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos, como contas e a boca rasgada num pretenso "sorriso" de dentes brancos, se sentava no seu ombro esquerdo e lhe abraçava o pescoço alto e fino, com a mãozinha esguia, escura e felpuda; noutras, as duas, de mãos dadas, olhavam, divertidas, uma para a outra, numa afectuosa cumplicidade; em algumas, já eu aparecia, risonha, ao colo de minha Mãe, enquanto, a Xica, no chão, agarrada à sua saia, olhava atenta e enternecida, quero crer, mas não tenho a certeza, para nós duas.
Lembro-me de uma fotografia, onde eu e a Xica, estávamos sentadas numa esteira; eu, convencida que era a menina mais bonita da minha rua, fixava, em pose, o fotógrafo, que era, certamente, o meu pai, enquanto a Xica, a meu lado, se inclinava, para mim, com a mãozinha esguia, escura e felpuda pousada, docemente, no meu braço.
Mas, a de que eu sempre mais gostei, era aquela onde eu me aninhava, pequenina, nos braços macios de minha Mãe que sorria, com a Xica, empoleirada no seu ombro, a abraçar-lhe o pescoço alto e fino, ao mesmo tempo que, com o seu peculiar e rasgado "sorriso" de dentes brancos, transbordante de alegria, olhava, vaidosa, para o fotógrafo!
A Felicidade não é permanente! A Felicidade pode estar, simplesmente, nuns minutos, numa hora, quiçá, num dia, plenamente, radiosamente, vividos; pode estar no arroubo de um amor, julgado perdido; no instante fugaz, mas perfeito, de dois olhares que se cruzam e se dissolvem na mesma luz; na esfuziante alegria de um reencontro, há muito tempo adiado; numa notícia boa, ansiosamente esperada; num abraço apertado, tão desejado! Ainda que inconscientemente, sempre pressenti que, naquela fotografia, tinha ficado, para sempre registado, um desses raros e mágicos momentos, de suprema Felicidade que a vida, às vezes, generosamente, nos concede!
E, os dias foram transcorrendo serenos e rotineiros.
Quando eu tinha dois anos, a minha Mãe adoeceu gravemente e viajámos, à pressa, para o Continente, na vã esperança de a salvar e onde, porque a doença podia ainda ser contagiosa, nenhum familiar nos quis receber! Foram amigos que nos ajudaram e acolheram! De coração aberto e sem medo, numa preciosa dádiva de solidariedade e de afecto!
A Xica e a Pequenina, a cadela enorme que, de pequenina só tinha o nome, lá ficaram,
em África, entregues aos cuidados dos meus tios.
A Pequenina deixou de comer uns dias e sentiu, profundamente, a falta dos donos mas, recuperou. O instinto primário de conservação da vida foi mais forte do que o desamparo da ausência, do que a opressão da saudade!
A Xica, a macaquinha meio-selvagem, encontrada sozinha no mato, não!
Deixou-se ficar, teimosamente, sentada num recanto do jardim, com os olhos grandes, escuros e redondos como contas, à espera de ver entrar a minha Mãe, a qualquer momento.
Nunca mais comeu, nunca mais quis brincar, recusou, furiosa, sentar-se no ombro da minha tia e nunca mais saiu do recanto onde seria mais provável ver chegar, enfim, a luz que lhe iluminava a vida, cada dia mais débil, os olhos, sem expressão, cada vez maiores e mais redondos!
Uma manhã, pouco tempo depois, os meus tios encontraram a Xica estendida, imóvel, as mãozinhas esguias, escuras e felpudas, abertas num pungente abandono, o olhar vazio, transfixo. Tinha morrido!
A minha Mãe, que faleceu meses depois, nunca soube que a Xica, a macaquita indefesa que resgatara do mato, resgatando-a, assim, da fome, da solidão e do perigo, tinha desistido de viver, mergulhada na tristeza da sua falta, esgotada da angustiante expectativa de a voltar a ver e abraçar!
Eu, a filha única, desejada e querida, sobrevivi à dor, sem remédio, da sua perda; ao vazio, nunca inteiramente preenchido, da sua ausência; à amputação dolorosa do pequeno mundo dos meus afectos e bebi, cada dia de vida, a haustos longos e ávidos! Mas, a Xica não! A Xica desistiu e deixou-se morrer, presa numa dolorosa teia de amargura e afundada no desespero de uma infinita saudade!
Às vezes, nas minhas noites de insónia, como esta, imagino-as juntas, num jardim imenso, luminoso e perfumado: a minha Mãe sorrindo e a Xica, os olhos grandes, escuros e redondos como contas, para sempre feliz, sentada no seu ombro esquerdo, enquanto a abraça, amorosamente, com o seu bracinho longo e peludo, como na velha fotografia , a preto e branco mas, onde, incompleta, ainda permanecem vazios, os braços de minha Mãe!
Nota: Só é possível tirar a cria a uma macaca, matando-a! Imagino hoje, como a minha Mãe deve ter sentido então, o desespero da mãe da Xica e dela própria, quando, desgraçadamente, se perderam uma da outra!
Mas, só assim, a Xica pôde ser uma benção de dedicação, de ternura e de alegria na nossa família, especialmente, para com a senhora de olhos claros, a quem dedicou, amorosamente,
inteiramente, apaixonadamente, a sua vida!
Maria Celeste S. M. Carvalho
3 comentários:
Há memórias que vivem acesas dentro de nós. A que a Celeste Carvalho aqui trouxe - a Xica e a Senhora de olhos claros - é um hino ao amor e à fraternidade. É, para além disso, um doce grito de saudade. Da Xica e, sobretudo, da Senhora de olhos claros. A história é entretecida com os fios da saudade e da fidelidade. Quando nos perdemos dos outros que amamos, sem remédio de jamais os encontrarmos, guardamo-los no coração para sempre.
Gostei imenso e fiquei muito sensibilizado, porque há outra menina que não partiu, pois soube guardar para sempre na memória e no coração a Senhora de olhos claros, outra forma afectuosa de escrever, trazendo-a à vida por momentos, MÃE. Sentidamente.
José Almeida da Silva
Texto lindo... A vida faz-nos destas coisas... Felizmente, vejo que a Celeste, de alguma maneira, hoje, conseguiu preencher um pouco dessa sua “tela, há muito interrompida”, com “tinta de riso e luz”! Na certa, a Xica e a Senhora de olhos claros estão lá, nessa fotografia inacabada, sorrindo sempre, para si, e para os seus momentos de felicidade! Beijinhos para a menina mais bonita daquela rua!
Elza
Uma ternura, Celeste. Gostei muito.
Enviar um comentário