Cesare Pavese usou a expressão " O mar parece azeite" e Luís Miguel Nava escreveu o verso "O mar no seu lugar pôr um relâmpago".
São duas frases poéticas, a propósito das quais vou permitir-me divagar, com singeleza e humildade, porque a Poesia, no verdadeiro sentido da palavra, não habita em mim! Não sou poeta! Não é poeta quem quer, ou quem escreve muito, mas quem, como se fora um deus, tem essa chama mágica, esse dom precioso, dentro de si!
O poeta escolhe as palavras, brinca com elas, junta-as, separa-as, mistura-as, a seu gosto e nascem frases assim. como aquelas duas.
O mar, a mim, nunca me pareceu viscoso como o azeite, mas, talvez deslumbrante, como uma cascata luminosa, translúcida de espuma, encantador como um rebanho de carneirinhos brancos e azuis ou, aterrador como um abismo negro, insondável, medonho, em noite de temporal!
Eu nunca pensaria substituir o mar por nada, talvez porque o mar sempre fez parte da minha vida e tenho, por essa massa líquida, imensa e magnífica, com cheiro a sal e a algas, uma atracção irresistível!
Mas, se o fizesse, porque não substituí-lo por um vasto campo de miosótis, pequeninos e azuis, onde eu pudesse dançar descalça, ao som de uma melodia fantástica e única, que o mar tivesse composto e tocasse, onde quer que estivesse, só para mim?
Falando de criação poética, muitos poemas, partindo da fixação descritiva de um determinado aspecto da realidade exterior - a paisagem, o céu, o mar, as flores, os animais - desenvolvem-se num lirismo puro, através da análise de vivências, (experiências), sentimentos, emoções e ideias.
Fernando Pessoa, ortónimo, num dos seus belíssimos poemas sobre a impossibilidade de compatibilização entre o pensar e o sentir, (a dor de pensar), observa o gato que saltita na rua e "pegando" nele, segreda-nos, baixinho, essa dor que o consome:
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.
Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.
És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
Há na escrita poética uma abolição de espaço e de tempo, uma libertação do real e, sempre presente, o anseio do poeta tocar o infinito, o inefável, o indefinível e transcender-se, transcendendo, assim, a realidade.
Nesse sentido, a sintaxe rigorosa dissolve-se pois, a poesia tendendo para a musicalidade, para o ritmo, não pode ser espartilhada por regras, sejam elas quais forem!
A este respeito, Fernando Pessoa afirma: "A arte que se faz com a ideia, e portanto com a palavra tem duas formas - a poesia e a prosa.... Poesia e prosa não se distinguem, pois, senão pelo ritmo. O ritmo corresponde, é certo, a um movimento íntimo da alma ..."
No texto lírico, poético não existe uma história para contar, não é uma narrativa, nem o poeta pretende despertar, no leitor, o desejo de saber como vai acabar o poema.
Como Gomes Ferreira, singelamente, nos confessa, neste extracto de um bonito poema:
" Que bom não saber como um poema acaba!
(...nem que sol segreda
O fio de baba
dos bichos-da-seda).
Apenas palavras que se buscam no papel
Com astros dentro famintas de encontrar."
O carácter não narrativo e não discursivista do texto lírico acentuou-se sobretudo com o movimento literário - o simbolismo.
A Poesia simbolista é uma arte subjectiva e fragmentária, que, como a música sugere,
não diz!
Ao som plangente do seu "Violoncelo", pareceu-me sentir Camilo Pessanha guardar, num suspiro triste, pesado de lágrimas, a sua profunda mágoa e o seu aterrado espanto pela perfeita actualidade do seu poema, datado do fim do século XIX, no País, decadente, quase em ruptura, em que hoje vivemos! Ou, será: em que hoje temos de sobreviver?
Pois, como escreveu José Augusto Saraiva, "...das arcadas do violoncelo emerge um choro convulsivo, que é justamente uma elegia pela pátria amortalhada... este poema, de 1900, é um requiem por Portugal...,na curva mais funda da sua decadência".
Neste belíssimo poema, Pessanha recorda-nos a simbologia da passagem das águas do rio e o som choroso, nostálgico do violoncelo!
Violoncelo
Chorai arcadas,
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...
De que esvoaçam,
Brancos os arcos...
Por baixo passam,
se despedaçam,
No rio, os barcos,
Fundas soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas(ouçam)!
se se debruçam,
Que sorvedouro!...
Trémulos astros...
Solidões lacustres...
- Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
- Chorai arcadas,
Despedaçadas, do violoncelo.
Contudo, para se escrever um poema, tem de se ter experiência, lembranças que se esqueceram mas, que retornam, cristalizadas em nós. O poema não é só sentimento, emoção! É trabalho, aperfeiçoamento e busca.
Como Rainer Maria Rilka afirma num texto admirável e muito belo: " ...Ah, os poemas são tão pouca coisa quando os escrevemos cedo. Devia-se esperar e acumular sentido e doçura ao longo de toda uma vida...Pois os versos não são só sentimento (esses têm-se cedo que baste),- são experiências. Por causa de um verso, tem de se ver muitas cidades, pessoas e coisas, tem de se conhecer os animais, tem de se sentir como os pássaros voam e de saber os gestos com que as pequenas flores se abrem pela manhã...Tem de se ter lembranças de muitas noites de amor..., de gritos de trabalhos de parto e de mulheres que dão à luz, leves, brancas, adormecidas e se fecham....E também não chega que se tenha lembranças. Tem de se poder esquecê-las... Porque as próprias recordações não são nada.Só quando se tornam sangue em nós, e olhar e gestos, já sem nome e impossíveis de distinguir de nós mesmos, só então pode acontecer que, numa hora muito rara, desponte no meio delas a primeira palavra de um verso e delas se desprenda."
E, a propósito de duas frases poéticas "O mar parece azeite" e " O mar no seu lugar pôr um relâmpago", o que eu divaguei, os caminhos que trilhei e o que eu gostei de escrever este texto, com Pessoa, com Rilka, com Gomes Ferreira, com Camilo Pessanha, a meu lado! Tão extenso e tão incompleto...
Foi, também, privilégio meu, ter junto a mim, bem ao alcance da mão, o precioso apoio
do Professor Doutor Vitor de Aguiar e Silva, de quem tive o imenso gosto e a honra de ter sido aluna!
" O mar parece um imenso oleado, ondulante e pardo " e "O mar no seu lugar pôr incontáveis cerejeiras em flor e uma fonte´imensa de água e de luz"! Um mar só meu, muitas, muitas cerejeiras perfumadas, em flor, e uma fonte magnífica, só minhas! Para me encantar, para me libertar, para me encontrar e nunca, nunca mais me perder! De mim!
Maria Celeste Carvalho
1 comentário:
Celeste, muitos parabéns! o seu texto comoveu-me. como o outro a seguir, sobre a "sua" África, com imagens muito fortes. obrigada.
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