sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Hora - um poema de Sophia


Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.

Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.



Sophia de Mello Breyner Andresen (lido aqui)

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

nunca te disse o que penso do crepúsculo



                                         William Turner

há um tempo para se ser diferente.
não sabemos de todas as iluminuras do sol
e quando surge o arco-íris o céu é uma fantasia..

a manhã não se revela, está coberta de neblina como um dia do Tamisa
e os olhos caiem sobre as montras como se fossem paisagens
não o vidro duro de fronteiras, não um lugar de objectos
vê-se ao longe o verde de uma planície -

ao teu lado esquerdo pergunto se escutas os mesmos sons
o correr de águas pelas fragas lisas
ao teu lado direito se  escutas os mesmos pássaros de asas esticadas
e os patos de corpo pesado e voo atrapalhado
pergunto ao centro se nos teus olhos também não há um horizonte
que se estende e se descobre pelos segundos que surgem
que habitam e se desenvolvem cheios de raízes
numa aura luminosa e perceptível -

pergunto se sentes um chão de areia na calçada
com os pés abertos, de cinco dedos de cada lado
apesar da montra que existe e não existe
como argumento e  intervalo -

pergunto se imaginas do mesmo modo as praias vazias
um envelope de maresias  e ruídos
uma carta escrita para viajar por cima
e se vês ao longe o mar na recorrência imparável das ondas
na cor branca e nos limos verdes
pergunto se vês as crinas de energia nos reflexos da superfície
e se sentes o calor no pedestal da nuca
na manhã que é manhã e quando não há crepúsculo

nunca te disse o que penso do crepúsculo

é uma aguarela de Turner para lembrar mudanças
na infinitude das águas salgadas
são segredos sussurrados de cores escondidas
na ondulação de  palavras que não se entendem, não se vêem 
mas dizem, dizem numa voz que é modulada de harmonias
na explosão da cor, dizem
dizem, plenas no significado que conduz para além das fronteiras 
para além dos vidros e das fogueiras de pratas e platinas
para além do ouro humano, para além do ouro perecível
que há alma e almas que voam leves
até à planície dos sentidos-

o crepúsculo como linha no fundo do mar diz o que queremos ouvir. 
como esta pluma que se imobiliza na manhã vestida de Tamisa
o crepúsculo diz, assim de surpresa e sem contar
como Turner dizia:
há um tempo para se ser diferente
mesmo que não saibas a hora, o dia e o lugar -

josé ferreira 28 agosto 2012



segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A criança que pensa em fadas

 imagem daqui
              
A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em algum ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Fernando Pessoa/ Alberto Caeiro Poemas Inconjntos

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

josé




as luzes luzem na tua cabeça
e é tão tarde para escrever poemas -
fala antes das estrelas que luzem na luz da noite
como pontos de uma renda na harmonia dos céus.
fala antes dos caules dos lírios e da simplicidade branca
- aquelas folhas encantadas pelos campos –

há luzes na tua cabeça e não queres  a cidade das estradas pretas
dos olhos rápidos, das lebres tontas dos desertos –

pára josé ! pára josé!  e vê a lua ali tão perto
luzem estrelas, luzem estrelas dentro e fora da tua cabeça –

observa josé! observa  josé! na distância da luz há uns lábios carmim  
e haverá  um sonho nos teus olhos
quando adormeces –

 josé ferreira 24 agosto 2012

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Aimez.vous Brahms ?



Os dedos nos pianos quando correm pelas teclas brancas e pretas perseguem a harmonia. A existência no humano assim como na música,  não é uma fuga é uma descoberta pela  melodia, como os violinos, e depois há outros caminhos, a percussão, os ritmos encontrados e desencontrados deste lugar difícil que habitamos,  mulheres e homens, e uma complexidade de cabeças,  com os neurónios cheios de faíscas.

“Sentimento de Si”  palavras de Damásio, título de um livro, a procura de um território desconhecido,  consciência e inconsciência, juntos e em uníssono, ou de um outro modo a dupla face oposta das moedas  que procuram encontrar-se,  que procuram um equilíbrio, o melhor lugar do atingível.

Esta é apenas uma introdução a uma complexidade que existe no humano e que o separa da natureza conforme a percebemos, porque a natureza procura um equilíbrio sem peso, e atrai imenso nessa autenticidade própria do instante, do momento,  que se esgota sem culpa pelo antecedente, preparando sempre o seguinte. 

A extrema leveza de ser é uma característica da natureza seja na planta, na flor, na erosão do monte, no espanto de um cume branco, frio e envolto em nevoeiro translúcido, ou de uma  luz longe de muito e mais perto ainda, do infinito.

No reino animal o instinto guia, é um domínio infra do humano.  A estaca mais abaixo, o primeiro degrau da pirâmide e supomos que perante o laço mais apertado é o limiar de uma realidade, um caminho, que tememos e  podemos atingir. A irracionalidade da loucura muitas das vezes mais não significa que a sobrevivência do indivíduo.

Em todos os lugares procuramos o equilíbrio, quem o negue não percebe, é uma fuga sem destino. Caminhamos com a alma numa mão e com a planta dos pés pousada nas pedras e nas areias do caminho.

Os caminhos têm paragens como os autocarros, por vezes tocamos a campainha e saímos, olhamos uma outra paisagem e procuramos qual a cor da terra, da erva, das casas, das pessoas, procuramos a identidade que nos guie e o equívoco que nos afaste, procuramos raízes, raízes de harmonia e melodia, e um lugar de bem-estar, um lugar tranquilo como um lago na Suiça, límpido, sereno, num grande espelho a olhar o céu e a esperar os cisnes.  

Os lugares nunca são completos, têm as fases pisca-pisca, no entanto em todos eles há sempre páginas escritas e tijolos que se erguem,  direitos nas paredes,  e em espaços nas janelas e nas portas de fechaduras e cheiro de madeiras, ou em esquadrias, com muitos vidros.

Os lugares, todos os lugares são sempre de passagem para um lugar lá à frente, e esse é o lugar da existência, o futuro que desconhecemos.

Esse lugar do futuro equivale a uma estátua de cada indivíduo e é única, e essa é a razão, a razão interminável do humano, tão mais valiosa quanto mais se multiplique, fazendo parte como células da estátua de outros indivíduos, das suas almas e dos seus caminhos, como um tecido, que ganha forma, que se estende, e que se aproxima, cada vez mais de um mundo melhor e mais completo, e do infinito.


josé ferreira 22 agosto 2012

terça-feira, 21 de agosto de 2012

os olhos ardem como fogueiras de verão



                                                       Imagem daqui

os olhos ardem como fogueiras de verão.
os zumbidos de abelhas nos cantos dos ouvidos são aviões sem aeroporto
são margens sem rio.
a febre é transparente  como cristais de chumbo
grávidos de peso e claridade.

onde começa a dança das palavras, onde termina  o sonho?
se há génese de um lado do outro é o infinito
será sempre o infinito.

há estrelas por todo o lado. as estrelas são o caminho das febres
são as temperaturas elevadas do corpo, são a fusão do espírito
a sublimação da alma. 

onde termina o teu  sonho?
nunca
para  que seja um lugar de surpresa
para que te atinja e levite 
leve como o ar e o éter
na face mais lisa dos sentidos –

há um clamor de mar no eco das montanhas
há um clamor de rio no eco das encostas
há um clamor líquido nos remos das barcos
e no bico dos pássaros. 

onde termina o teu sonho?
nunca
 as estrelas e as abelhas são raízes de zumbidos
são visitas nas portas doces das flores.

onde termina o nosso sonho?
nunca
e o mel da alma é o motivo –


josé ferreira 21 Agosto 2012

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

duas bicicletas e um chapéu vermelho




duas bicicletas e um chapéu vermelho
subiram lentamente o monte
perna a perna
rodando
em círculos, sem vértices, redondos
na amplitude das correntes –

verde, tão verde,  de cada lado do silêncio
foi o caminho
enquanto os pulmões abriam e recebiam
a altitude do ar
a pressa do vento
a promessa de escutar o horizonte
 atraídos pelo íman,  de cima
no plano alto dos sentidos  –


dentro de cada um morava um segredo
a alma dupla, a constelação gémea
como se antes de subir o monte
em cada um se abrisse o peito
como uma porta desconhecida
ao som de uma harpa, de um chamamento
preparando aquele único instante
irrepetível
como o nascimento:

dois que existem sobre o verde
dois unidos no pensamento
quatro símbolos em uníssono:

fogo, ar e terra,  e um mar infinito

no espelho dos olhos, nas ondas do corpo
na dupla luz do brilho, no olhar líquido
e um reflexo:

um lago e um  cisne–

josé ferreira 19 Agosto 2012

sábado, 18 de agosto de 2012

Fixei-a nos olhos



                                                          José Ferreira


Quando o sol declinava,
já quase a desaparecer,
fixei-a nos olhos
para que não deixasse de cumprir a promessa de visitar-me como um sol,
no momento em que a lua, por entre as trevas,
inicia a viagem nocturna.

E veio, então, como a claridade da aurora
a abrir caminho por entre as trevas.
Perfumavam-se os horizontes à minha volta,
anunciando a sua chegada como o aroma anuncia a flor.

Recorri com beijos a marca dos seus passos
como recorre o leitor as letras de uma linha.

E com ela passei a noite, enquanto a noite
mais ao longe dormia, e o amor despertava
por entre os ramos do seu tronco,
a duna das suas ancas,
a lua da sua face…

E umas vezes a abraçava
e outras a beijava,
até que veio separar-nos
o estandarte da madrugada.

Ibn Safar Al- Marînî ( séc. XII) em Imagens da Poesia Europeia por David Mourão Ferreira

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

a morte é uma coisa muito pouca - um poema de Vasco Gato




a morte é uma coisa muito pouca
em nada se compara ao crescimento das constelações
a morte não respira nem se expande desde o centro
como fazem as estações desde o coração da terra

e assim eu sei que um sorriso é precioso
porque respira e alarga-se dentro dos olhos
e quando chega ao lugar em que a mão se abre
é já uma forma de sossego uma lua coberta de luar
um modo certo de trocar nomes em dias de excepção


 Vasco Gato
in  Um Mover de Mão, Assírio e Alvim, 2000.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Ode ao divino que aí mora - um poema de Ana Luísa Amaral




Como posso dizer que o teu corpo é divino?
Nele eu faria o pino até insensatez,
romperia as comportas até tocarem sinos
que, num tom muito fino, te cantassem os pés.
(Falei agora em pés por causa de aqui estar,
com dor em pé direito e tom quase de Orfeu;
mas deixa-me falar, permite-me voltar
a falar do teu corpo como a fingir de céu).
Como posso dizer que o teu corpo é divino
sem cair no lugar do mais comum mortal?
Que eu queria fazer pino além de Escorial
no sítio do teu corpo mais fundamental,
ou seja, o teu tendão onde se assenta o pé,
onde se assenta a mão e o sítio mais central,
ou seja, o teu olhar, ou seja, outro qualquer
(divino por divino, permite-me dizer
que tanto vale pino como vale destino
ou outro desatino conjugado a viver).
Deixa-me então falar do teu corpo: num hino,
tecer-lhe algumas glosas em tom de malmequer,
dizer-lhe que assim tanto por êxtase divino,
é difícil manter-me rimada e sem arder
em chamas muito altas pouco celestiais,
mais perto de outros cantos que não sejam o céu,
mas que o sejam também, porque entre inferno e céu,
a diferença não há: descerre-se-lhe o véu
e o que sobra por certo é um excesso de amor,
que não está muito longe do divino rubor
que habita no teu corpo e que divino o faz.
Como posso dizer que o teu corpo é divino
se o divino é sem nome, se o nome lhe é fugaz?
Rimarei com divino o que puder. E então:
sino, menino, tino, desatino ou até
(ainda que mais rime) a planta do teu pé,
a mais leve tremura que habita a tua mão.
E o tom que iniciou sobre o teu corpo o hino
desviou-se, subiu a lugar de outra cor:
romantizou-se o tom, enterneceu-se o amor,
e já não me apetece falar-te que não seja
de uma forma macia, redonda de cereja
e doce como nêspera em humano fulgor.
Por isso volto aqui, por isso este poema
tem que se contentar com ser o que eu quiser:
um tempo de ternura, um tempo de colher
frutos tão sumarentos que o Verão invejaria
e os deuses no Olimpo seriam deslumbrados,
e nem fúrias do Hades, e nem Melancolias,
e nem as Parcas todas - todos silenciados!
Por isso aqui persisto, em lugar que talvez
interrogue a certeza do lugar do divino,
mas onde eu faço o pino até insensatez,
e depois me detenho, em mil e um cuidados.
E onde são divinos os deuses que não vês,
mas muito mais divinos podem ser os teus pés,
porque assim tão amados, até insensatez,
como os teus dedos podem sê-lo insensatamente,
até pico maior que os faça de repente
uma explosão de estrelas em poético furor.
Preparou-se o poema para assim: "meu amor",
e um beijo muito impuro, e tão incastamente
que se rasgue o divino até humana festa,
forma de aqui te ter - porque ter-te presente,
maneira de dizer-te que o que resta é tu seres:
flecha onde o arco mora e a língua se demora
na palavra mais longa, diluviana e tudo:
um sítio de veludo bordado a horizontes
de corpóreos limites, de sonhos consistentes,
de uma matéria igual à matéria em que o tempo
faz, lentamente, o pino, e elege, ao fazê-lo,
outro lugar divino: esse teu tornozelo
- onde se encostam, calmas,
as matérias que digo.


Ana Luísa Amaral lido aqui

domingo, 5 de agosto de 2012

IX - um poema de Natália Correia


                    Portinari

IX

Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.

                      Natália Correia

sábado, 4 de agosto de 2012

La Cathédrale Engloutie - um poema publicado há três anos no mesmo dia





Depois daquela poesia a seguir ao almoço
no hábito que não é o nosso
desceu o sono, o farto sentir do cansaço
o abrir de uma rosácea que pedia descanso.
Dessa forma se fecharam os olhos
na calma branca de uma parede incompleta;
lugar onde caiu faz três anos o quadro colorido
de um prego inseguro e superficial.
Seguiu-se o ruído de mundos leves
entrando e saindo, uma brisa breve de ritmos
escutando o sentir interior mais íntimo
afastando as sombras de um teatro antigo.

Os véus opacos desvendaram segredos
apenas a pássaros pequenos
que debicavam migalhas sobre a mesa -

Nas almofadas os dois rostos estavam serenos
sem o indício inseguro, no indício da faísca
que de lua em sol subia os lábios felizes
(felinos eram os corpos em corpos que não miam
no jeito encolhido de um beiral de Agosto).
De olhos fechados os dois dormiam, dormiam, dormiam -


No primeiro acordar foi tão nítido o sonho:
uma catedral engolida de ondas
ao som de um piano no breve instante.
Sobrou suspenso, não deglutido um vitral
filtrando cores de um sensível arco-íris
nos dois rostos calmos como os fenos
- quando não há mais ventos - e o mesmo som
dentro de uma longa e larga jarra, em cima da mesa
vestida de fios finos de estrelícias
de aromas de narcisos
nascidos nas puras águas de uma ilha
onde habitavam os poemas
e à volta, num grande mar
as almas de todos os rios -


josé ferreira 4 de agosto de 2009

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Matilde - Um soneto de Pablo Neruda




Matilde, nombre de planta o piedra o vino,
de lo que nace de la tierra y dura,
palabra en cuyo crecimiento amanece,
en cuyo estío estalla la luz de los limones.

En ese nombre corren navíos de madera
rodeados por enjambres de fuego azul marino,
y esas letras son el agua de un río
que desemboca en mi corazón calcinado.

Oh nombre descubierto bajo una enredadera
como la puerta de un túnel desconocido
que comunica con la fragancia del mundo!

Oh invádeme con tu boca abrasadora,
indágame, si quieres, con tus ojos nocturnos,
pero en tu nombre déjame navegar y dormir.

Pablo Neruda Cien Sonetos de Amor



MATILDE, nome de planta ou pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura,
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por enxames de fogo azul-marinho,
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragrância do mundo!

Oh invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me, se queres, com teus olhos noturnos,
mas em teu nome deixa-me navegar e dormir.

Pablo Neruda Cem sonetos de Amor lido aqui