terça-feira, 7 de agosto de 2012
Ode ao divino que aí mora - um poema de Ana Luísa Amaral
Como posso dizer que o teu corpo é divino?
Nele eu faria o pino até insensatez,
romperia as comportas até tocarem sinos
que, num tom muito fino, te cantassem os pés.
(Falei agora em pés por causa de aqui estar,
com dor em pé direito e tom quase de Orfeu;
mas deixa-me falar, permite-me voltar
a falar do teu corpo como a fingir de céu).
Como posso dizer que o teu corpo é divino
sem cair no lugar do mais comum mortal?
Que eu queria fazer pino além de Escorial
no sítio do teu corpo mais fundamental,
ou seja, o teu tendão onde se assenta o pé,
onde se assenta a mão e o sítio mais central,
ou seja, o teu olhar, ou seja, outro qualquer
(divino por divino, permite-me dizer
que tanto vale pino como vale destino
ou outro desatino conjugado a viver).
Deixa-me então falar do teu corpo: num hino,
tecer-lhe algumas glosas em tom de malmequer,
dizer-lhe que assim tanto por êxtase divino,
é difícil manter-me rimada e sem arder
em chamas muito altas pouco celestiais,
mais perto de outros cantos que não sejam o céu,
mas que o sejam também, porque entre inferno e céu,
a diferença não há: descerre-se-lhe o véu
e o que sobra por certo é um excesso de amor,
que não está muito longe do divino rubor
que habita no teu corpo e que divino o faz.
Como posso dizer que o teu corpo é divino
se o divino é sem nome, se o nome lhe é fugaz?
Rimarei com divino o que puder. E então:
sino, menino, tino, desatino ou até
(ainda que mais rime) a planta do teu pé,
a mais leve tremura que habita a tua mão.
E o tom que iniciou sobre o teu corpo o hino
desviou-se, subiu a lugar de outra cor:
romantizou-se o tom, enterneceu-se o amor,
e já não me apetece falar-te que não seja
de uma forma macia, redonda de cereja
e doce como nêspera em humano fulgor.
Por isso volto aqui, por isso este poema
tem que se contentar com ser o que eu quiser:
um tempo de ternura, um tempo de colher
frutos tão sumarentos que o Verão invejaria
e os deuses no Olimpo seriam deslumbrados,
e nem fúrias do Hades, e nem Melancolias,
e nem as Parcas todas - todos silenciados!
Por isso aqui persisto, em lugar que talvez
interrogue a certeza do lugar do divino,
mas onde eu faço o pino até insensatez,
e depois me detenho, em mil e um cuidados.
E onde são divinos os deuses que não vês,
mas muito mais divinos podem ser os teus pés,
porque assim tão amados, até insensatez,
como os teus dedos podem sê-lo insensatamente,
até pico maior que os faça de repente
uma explosão de estrelas em poético furor.
Preparou-se o poema para assim: "meu amor",
e um beijo muito impuro, e tão incastamente
que se rasgue o divino até humana festa,
forma de aqui te ter - porque ter-te presente,
maneira de dizer-te que o que resta é tu seres:
flecha onde o arco mora e a língua se demora
na palavra mais longa, diluviana e tudo:
um sítio de veludo bordado a horizontes
de corpóreos limites, de sonhos consistentes,
de uma matéria igual à matéria em que o tempo
faz, lentamente, o pino, e elege, ao fazê-lo,
outro lugar divino: esse teu tornozelo
- onde se encostam, calmas,
as matérias que digo.
Ana Luísa Amaral lido aqui
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